Publicado em 17/05/2013 por Clínica
Alamedas
Eliane Brum
A crença de que a felicidade é um direito tem tornado
despreparada a geração mais preparada
Ao conviver com os bem mais jovens, com
aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para
virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e,
ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das
habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada
porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço.
Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque
desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre
muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da
felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.
Há uma geração de classe média que
estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à
tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo,
cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria
apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.
Tenho me deparado com
jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas –
onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram
ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso
não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se
com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.
Como esses estreantes
na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de
lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para
conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade –
e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o
mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os
insistentes.
Por que boa parte
dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para
quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido
marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho
testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam
“felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los
de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem
reciprocidade.
É como se os filhos
nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar
os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem
frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo
educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta
e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se
confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de
suas capacidades individuais?
Nossa classe média parece desprezar o
esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto.
Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para
conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o
cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de
Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no
máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu
lugar no país.
Da mesma forma que
supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não
menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes
a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de
traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro
pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso.
Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.
Basta andar por esse
mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que
a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o
emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas
habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e
as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que
ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.
A questão, como
poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram
com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o
projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém
descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento
é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no
confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer
se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.
Me parece que é isso
que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo,
o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir
aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e
da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da
vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo,
porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído
sobre a ilusão da felicidade e da completude.
Quando o que não pode
ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar
significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E
não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de
crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o
cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.
Se os filhos têm o
direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia
garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria
possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas
estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só
é possível fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade – e,
como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas
materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a
possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma
mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de
consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta
que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem
buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo
funcionando.
O resultado disso é
pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se
desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito
nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir
que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o
atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que
paralisa.
Quando converso com
esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e
riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo
o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem
coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades
iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a
própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza
de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas
é nesse movimento que a gente vira gente grande.
Seria muito bacana
que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um
curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você
sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para
jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com
dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou
tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa
dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como
um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto
ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil
equilíbrio doméstico possa ser dito.
Agora, se os pais
mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por
existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir
que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a
fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou
para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque
eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou
transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.
Crescer
é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é
insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo
injustiçado porque um dia ela acaba.
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