Jociane Negrão
Falar sobre o Tempo e sua importância na
manutenção do Poder, o Poder Temporal, não é fácil. Ao propor este desafio,
pensamos na primeira aula que tivemos sobre esse assunto, e quem nos despertou
para ele foi a Profa. Maria Elise Rivas. Estranhamente, ao entrar na sala, diferente
das outras vezes, ela falou “Graças a Deus”.
Digo diferente porque utilizar uma expressão exclusiva do Cristianismo
não é algo comum nela. Ela sempre nos remeteu ao conhecimento de Síntese, mas
nesse dia, ao entrar na sala de aula ela disse “Graças a Deus”.
Ao
iniciar sua aula com este jargão coloquial, ela nos remeteu à construção da
idéia de Deus pelo Cristianismo. O Cristianismo construiu, fundamentou sua teogonia
e teofania na escrita, por meio do Torah, o Antigo Testamento, e depois por
meio dos escritos que datam o mais antigo cerca de 70 anos após a morte de
Jesus, e que vieram a se chamar Novo Testamento. A esta união de livros do
Antigo Testamento e Novo Testamento deu-se o nome de Bíblia, o livro sagrado do
Cristianismo. A este processo de utilização de um livro sagrado como referência
chama-se Tradição Escrita. Cristianismo, Judaísmo e Islamismo são as Religiões
do Livro, e consideradas como as Religiões Tradicionais.
Contudo,
ao analisar as religiões do planeta, observa-se que uma parcela considerável
delas não utiliza o livro sagrado, entre elas podemos citar as religiões
ameríndias, as religiões africanas, as religiões orientais, e as religiões
primitivas da Europa. A toda essa parcela deu-se o nome de religiões
primitivas, apenas pelo fato de não possuírem um livro referencial. Suas
teogonias, teofanias, hierofanias, cosmologia e cosmovisão são embasadas na
Tradição Oral. O conhecimento é passado de geração em geração, de mestre a
discípulo, por meio de um processo iniciático.
Segundo
Durkheim, toda religião é caracterizada pelo Mito, pelo Rito e pelo Ethos. As
religiões tradicionais ou de tradição escrita têm muito bem caracterizados
estes princípios. Monoteístas, seus ritos são bem determinados, passo a passo.
As religiões orais são politeístas, multirreferenciais, polissistemáticas e,
portanto, policêntricas. Politeístas porque não utilizam uma única divindade,
mas um panteão, cada um com sua importância, daí a multirreferencialidade. São
polissistemáticas porque não há uma única forma de realizar um rito, mesmo que
ele seja destinado à mesma divindade. E policêntrico porque não há um único
modelo a ser seguido, exemplo disso são as religiões afro-brasileiras, com suas
inúmeras escolas (Culto da Jurema, Candomblé de Caboclo, Toré, Xambá, Babassuê,
Xangô, Tambor de Mina, Umbanda, Candomblé, Catimbó).
Nas
religiões de tradição oral, o tempo é o tempo mítico, ou seja, o tempo
vivenciado pelo mito. Não há marco inicial, o mito é revivido em cada rito. O rito
reatualiza o mito. É comum ouvir “... no
início dos tempos...” como referência nas historietas desta tradição, como
exemplificam os Itans do Ifá. A idéia de tempo era bastante diferente, própria
de cada povo. Por isso, os calendários são tão diversos. Normalmente, o tempo
era determinado pelas colheitas, pelas estações ou pela necessidade de
comercialização dos produtos.
Portanto, se a
idéia de tempo era algo pouco importante na tradição oral, como se deu a passagem
do atemporal para o temporal? Do tempo circular para o seqüencial?
Nas religiões
monoteístas, a necessidade de legitimar a idéia em construção (Deus) deu o
início a todo este processo de desconstrução das Tradições Orais. O Tempo foi
esse símbolo legitimador. Ao construir a imagem do Deus monoteísta, ocorreu o
marco inicial do Tempo. Portanto, o Tempo nasce com o Monoteísmo. E o
Monoteísmo utiliza a escrita como ferramenta primordial.
A história da
tradição escrita é totalizadora, com profundas ligações com a tecnologia e a
urbanização. Com o início da escrita, todas as culturas que não se
fundamentavam nela passaram a ser consideradas primitivas e atrasadas. As
culturas agrárias, relacionadas com a natureza, passaram a ser desprezadas, em
detrimento da urbana, distanciada dos valores antigos.
As culturas
mercantilistas, e depois as industrializadas necessitavam de uma marcação
temporal específica, uma forma de determinar lucro e produtividade. Não havia
mais o interesse apenas pelo sustento do clã, da prole, do coletivo. O
interesse agora era o enriquecimento individual, a exploração dos processos
produtivos, a hegemonia do poder. A riqueza determinava o poder.
A escrita, que era
apenas um método, passou a ser o método, tornando-se referência de progresso
cultural, avanço social e poder.
Construiu-se um
modelo de Homem de Bem, a ser defendido e implantado pelas nações “avançadas”.
Este Homem de Bem era justificado pela Fé que só pode existir naquele que lê e
respeita o Livro Sagrado.
Desacreditar,
ridicularizar e inferiorizar as culturas orais foi apenas o começo do processo.
Basta ver como os calendários antigos foram substituídos pelo calendário
cristão para perceber como se deu o processo colonialista e explorador do homem
europeu sobre os povos dominados.
Na tradição oral, o
conhecimento está livre para ser interpretado, modificado e ritualizado
conforme a compreensão de cada época e de cada povo. Não há rigidez. Há
mobilidade, abraçando todas as formas de compreender o sagrado. Ela estuda o Homem como sagrado.
Na tradição
escrita, o conhecimento está fechado, limitado pela fé, e pelo dogma. Não
permite reinterpretação. Estuda-se o Divino como ser poderoso, digno de
adoração e medo. O Homem passa a ser aquele ser insignificante, criado pela
Divindade, e por ele será castigado, se não se submeter às suas leis, escritas
é claro no Livro Sagrado. A conduta moral e ética passa a ser ditada pela fé,
permitindo a dominação da maioria analfabeta, pela minoria alfabetizada.
Domina-se o pobre e ignorante pelo medo à Deus. Vende-se uma ideologia de
submissão à vontade de Deus, e quem a representa é o Papa, o Rei, o senhor
feudal, e posteriormente, o patrão.
O homem deixou de
compreender a vida como um processo natural de nascer, crescer e morrer. Suas
idades eram determinadas pela infância ( pureza), pela vida adulta
(maturidade), e depois pela velhice (sabedoria). O homem passa agora a
compreender sua vida pela produtividade e pela força. Ao envelhecer, deixa de
ser valorizado e ouvido. Passa a ser considerado imprestável, doente, senil. É
notável a diferença com a qual o idoso é tratado nas culturas primitivas e nas
industrializadas. Incapazes de
acompanhar o processo tecnológico, seu conhecimento, adquirido com o esforço ao
longo dos anos, é desprezado, e agora, o sábio ancião é considerado um velho
inútil, desatualizado, imprestável. O jovem, valorizado pela vitalidade e
agilidade, passa a considerar-se força motriz da sociedade, não tendo mais como
referência a imagem do ancião sábio a direcionar-lhe o ímpeto da juventude. Deslocou-se o ancião para a periferia e o
guerreiro para o centro.
O homem moderno
trocou a Sabedoria dos anos pelo Poder do lucro e da força. Como resultado, uma
sociedade frívola, superficial, sem princípios éticos, tampouco espirituais.
* Este texto é parte do artigo apresentado na FTU, no IV Congresso Brasileiro de Umbanda do século XXI. Autores:
Ariel Couto (FTU), ariel_couto@hotmail.com;
Fernanda R. do Nascimento(FTU), fernanda.reg@hotmail.com;
Jociane Negrão(FTU), jn.negrao@uol.com.br;
Paulo Feijó(FTU), paulofeijodasilva@yahoo.com.br;
Rodrigo Fagundes Bueno(FTU), buenorf@msn.com;
Wilson Lopes (FTU), w.lopes@aasp.org.br.
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3 comentários:
Muito bom este texto minha querida Obaositala, continue produzindo materiais de grande valia para os que querem aprender verdeiramente!
ygbere
Muito bom este texto minha querida Obaositala, continue produzindo materiais de grande valia para os que querem aprender verdeiramente!
ygbere
Muito obrigada Ygbere!!! Seu elogio é um grande estímulo!
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