Por muitos apelidado de "o homem mais feliz do
mundo", Matthieu Ricard (foto) brindou a comunidade com a sua
palestra sobre os Hábitos da Felicidade numa TEDtalk de grande importância para
todos os que acreditam que é importante ser feliz.
Era para ser cientista mas acabou monge budista. Filho do
filósofo Jean-François Revel e da pintora Yahne Le Toumelin, o francês Matthieu
Ricard, 65 anos, cresceu no meio intelectual de Paris e doutorou-se em genética
molecular. Aos 38 anos abandonou a carreira para ir viver nos Himalaias e
tornar-se monge budista, mas o interesse pela ciência permaneceu.
Desde 2000 que ele é membro do Mind and Life Institute,
que promove o diálogo e a investigação entre cientistas e budistas, e participa
em estudos sobre a consciência e o treino da mente com investigadores de
vanguarda. Numa das mais recentes, os cientistas ligaram 256 sensores ao seu cérebro
enquanto meditava e as imagens mostraram o mais alto nível de atividade alguma
vez registado no córtex pré-frontal esquerdo, associado às emoções positivas. A
escala variava entre +0.3 a -0.3 (beatífico) e os resultados de Matthieu Ricard
situaram-se fora da escala por mais de -0.45. Foi a primeira vez no mundo que
isto aconteceu.
É conhecido por ser o homem mais feliz do
mundo. Porquê?
Receio que isso não seja culpa minha. Um
jornalista lembrou-se de usar essa expressão, mas não corresponde à verdade.
Surgiu no contexto das investigações científicas sobre os efeitos da meditação
feitas pelo Instituto Mind and Life Institute, nos EUA. Fui um dos
participantes, mas houve outros e, de resto, os resultados são relevantes
precisamente porque não se resumem a uma pessoa.
Em que consistiram essas experiências?
Basicamente no estudo do cérebro de monges
experientes em meditação. Pegamos num conjunto de pessoas que nunca tinham
meditado e ensinamos-lhes técnicas de meditação budista, que praticaram por um mês.
Depois usamos eletroencefalogramas e ressonâncias magnéticas para comparar a
atividade do cérebro dos monges e dos meditadores recentes durante a meditação.
Nos recentes havia poucas diferenças, mas nos monges a meditação sobre a
compaixão ativou de forma poderosa o lobo frontal esquerdo, que é a zona do
cérebro associada às emoções positivas.
Quais são as implicações dessas
experiências?
Mostram que é possível modificar padrões
cerebrais – aquilo a que se chama neuroplasticidade – neste caso com o objetivo
de sermos mais felizes. Já sabíamos que o treino modificava o cérebro em
músicos ou nos taxistas londrinos obrigados a memorizar milhares de ruas. Agora
sabemos que pode desenvolver zonas associadas à felicidade e ao bem-estar.
Podemos treinar a felicidade, é isso?
Sim. A felicidade é uma habilidade e pode ser
cultivada. Eu não caí em nenhuma poção mágica quando era pequeno. O que
conquistei foi graças a um caminho - o Budismo - que me permitiu aprender estas
técnicas. Fui um adolescente perfeitamente normal, com todas as incertezas e
angústias da idade. Não tive grandes dramas, mas estava confuso e, nesse
sentido, não me considerava feliz. Na altura, a minha motivação era tornar-me
um ser humano melhor.
Não encontrou respostas nas tradições ocidentais?
Não digo que não existam mas não as encontrei
de forma satisfatória. Uma das razões foi porque as pessoas que via a ensinar
não me transmitiam a coerência que vim a encontrar no Oriente. Não é que
fossem más pessoas, mas não eram especialmente boas, por isso tornar-me iguais
a elas não fazia sentido. Quando conheci o Dalai lama foi diferente. Pensei
‘Como é que ele se tornou assim?’. Aquilo interessou-me, porque ele era um
exemplo vivo de que os ensinamentos budistas funcionavam.
O que é que temos de aprender exatamente?
A felicidade é uma forma de ser. Se não somos
particularmente felizes temos de aprender a cultivar essa forma de ser. Tudo
começa por eliminar as toxinas mentais, como o ódio, a obsessão, o ciúme, a
arrogância, o orgulho o desejo, enfim, tudo o que nos torna seres
disfuncionais, e cultivar as qualidades positivas que integram a felicidade,
como o altruísmo, o amor, a compaixão ou a criatividade. Isto faz-se
trabalhando a mente. Aos poucos alguns desses venenos mais grosseiros começam a
esbater-se e o resultado é uma espécie de liberdade grande ou felicidade.
"O mundo não é um catálogo de
encomenda dos nossos desejos e nunca vai ser perfeito. Se vemos a vida dessa
forma estamos em sarilhos"
Esses sentimentos não são o que
nos torna humanos?
A questão não é negá-los. Quando falamos de
emoções positivas ou negativas não é no sentido de virtudes ou defeitos, não há
aqui julgamento moral. É no sentido de que cada uma destas qualidades contribui
para um sentimento de florescimento e bem-estar. Uma emoção é má se nos provoca
sofrimento.
Hoje em dia nunca sente emoções negativas?
Seria arrogante dizer isso, mas posso dizer
que não sinto as mais negativas como ódio. Irritação sim. Mas sinto-as com muito
menos intensidade e assim que surgem estou completamente consciente delas e
possuo uma serie de métodos para lidar com isso. Não as nego. Por exemplo,
quando vim para aqui atrasei-me devido ao trânsito e fiquei com receio de
perder o comboio, o que iria deixar várias pessoas à minha espera…
O que podemos fazer em situações dessas?
Primeiro, perceber que a ansiedade é inútil.
No meu caso, não me ia deixar menos atrasado. Depois, perceber que se deixar a
ansiedade encher a minha mente vou ficar num estado miserável. Uma das
principais qualidades da mente é a capacidade de permanecer consciente de si
mesma. Isso permite-nos tomar consciência das nossas emoções. O que é isso de
estar consciente da ansiedade? É algo diferente de estar ansioso, certo? Uma mente
consciente da ansiedade já não é uma mente completamente ansiosa, está ansiosa
e ao mesmo tempo consciente da ansiedade, logo, já não está completamente cheia
de ansiedade, há uma parte dela livre disso. Se continuarmos a a tornar a mente
mais consciente, a ansiedade vai perdendo força porque deixamos de alimentá-la.
Não a bloqueámos, deixámos só que se desvanecesse. Quando ficamos
familiarizados com este processo, as emoções continuam a aparecer mas com menos
força e gradualmente levaremos cada vez menos tempo a dissolve-las.
Cultiva-se uma espécie de desapego em
relação às emoções más?
Às más e às boas. Mas é preciso ter atenção:
as pessoas confundem o desapego com a indiferença e acham que se trata de não
ter sentimentos, não é isso. Suponha que tem uma experiência fantástica. Isso é
ótimo, não há nada de errado com o prazer, mas se começamos a agarrar-nos a ele
e a transformá-lo numa necessidade, converte-se num tormento. O que
acontece quando temos condições interiores para o bem-estar, é que ganhos e
perdas, prazer e dor, sucessos e falhanços perdem relevância. Então, é
fantástico se as coisas correm bem, mas não é um drama se correrem mal. O nosso
controlo das circunstâncias exteriores é mínimo e no fim estamos sempre à mercê
das nossas mentes.
Vive num mosteiro no Nepal. Trabalhar das 9
às 5 num escritório é mais ou menos desafiante?
Claro que podem dizer que é mais fácil sendo
monge, mas eu trabalho sete dias por semana no mosteiro. Gosto do que faço, não
sei o que significa férias e ninguém me paga. Quando vou para a minha cela o
meu trabalho é meditar, não é um emprego, mas é a minha ocupação.
Fez uma mudança de vida radical…
Foi uma escolha. Antes de ser monge fazia
investigação científica e gostava mas fui à Índia, senti-me melhor do que nunca
e perguntei-me ‘Onde quero passar o resto da vida?’. Se estamos a fazer o que
queremos está tudo bem. Hoje vivo numa cela de 2,5x por 2x9m, com uma vista
fantástica sobre os Himalaias. Não tenho água quente, só uma malga e duas
colheres, não sinto falta de nada. Consigo apreciar quando estou numa casa
confortável, mas se não estiver também estou bem. Vivi 10 anos no Butão. O meu
professor ensinava a rainha-mãe e um dia ela insistiu para ir no carro dela, um
carro fantástico. Então lá ia eu de carro com a rainha-mae do Butão. No dia
seguinte o meu professor mandou-me de volta ao mosteiro e tive de ir nas
traseiras de um camião. Eram circunstâncias diferentes mas eu não sentia ‘Uau
vou num Mercedes’ num dia para me sentir infeliz por ter de ir num camião no
outro. Era divertido.
Há condicionamentos biológicos para a
infelicidade?
Há predisposições que, numa pequena
percentagem, podem ser genéticas, mas a epigenética ensina que os genes podem
ser expressos ou não, ou seja, o facto de haver um master plan, o genoma, não
significa que ele seja executado. É como ter um projeto de uma casa. Quando a
construímos podemos fazer alterações. Também temos de contar com o ambiente: se
crescemos sem amor, com abusos, é dramático porque somos logo forçados ao sofrimento.
Mas ainda assim chega um tempo em que podemos lidar com isso. Existe
sempre um potencial para a mudança.
Nas pessoas habituadas a ser infelizes esse
desafio é maior?
O essencial é perceber que é sempre
possível cultivar condições que nos ajudem a ser melhores. Quando estive a
estudar na Universidade de Montreal havia um professor que costumava correr
quando era novo. Começou a treinar novamente e o ano passado participou na
maratona. A ciência demonstrou que a neuroplasticidade cerebral – a capacidade
de mudar a estrutura do cérebro – é independente da idade. As pessoas mais
velhas são perfeitamente capazes de mudar os seus cérebros com o treino. No
Tibete há imensas histórias de pessoas que começaram a meditar aos 80 anos com
ótimos resultados.
"A felicidade é uma forma de Ser que
integra qualidades como o altruísmo e a criatividade. Podemos cultivá-las"
Porque resistimos à mudança?
É um grande mistério. Acho que temos um tipo
de hesitação em olhar para dentro. Conheci gente nova que me disse ‘Não quero
olhar para dentro, tenho medo do que vou encontrar’. É surpreendente. Não sei o
que é que têm medo, mas contei isto ao Dalai Lama e ele disse ‘Há tantas coisas
interessantes lá dentro. É melhor do que ir ao cinema!’. Há um fator
determinante: a inspiração. Se temos uma razão para mudar é mais fácil. Pelo
contrário, o maior perigo é desistir. Por um lado, as pessoas pensam sempre que
podiam estar pior, por outro admitem que há coisas que gostavam de alterar mas
acham que não é possível porque já são assim há muito tempo ou é muito
difícil. Por isso é que a primeira coisa a fazer é reconhecer o potencial de
mudar. Porque a verdade é que qualquer treino tem sempre um efeito. Sempre. Há
um bocadinho de inércia, esse é o principal obstáculo. Depois precisamos de
algum interesse, e este só aparece se virmos um benefício. No meu caso, foi
conhecer um professor especial, porque vi os resultados do treino à minha
frente, não tive de acreditar porque alguém me disse.
Como reverter o paradigma do ‘não sou capaz
de mudar’?
Primeiro temos que refletir nos aspetos que
nos mostram que é possível mudar. Dizemos que a raiva ou inveja são parte da
natureza humana. Mas há muitas maneiras de ‘fazer parte’. Se algo faz parte da
natureza intrínseca de outra coisa é impossível alterar isso. Mas se não fizer
parte intrínseca posso fazer alterações. Por exemplo, em essência a água é H2O.
Se lhe adicionar plantas fica medicinal, se juntar cianeto torna-se mortal, mas
continua a ser H2O, o que lhe acrescentei não faz parte da sua essência e posso
removê-lo. Há algo parecido na mente. As emoções negativas são como o cianeto e
as positivas como as plantas medicinais, mas existe uma qualidade da mente
independente disso que se chama Consciência Essencial ou Luz Clara da Mente. Esta
qualidade essencial é o que nos permite ter consciência das nossas emoções.
Temos de encher a mente de ‘emoções
medicinais’?
Sim. Por exemplo, se a raiva é o meu principal
problema, qual é o oposto da raiva? Benevolência. Se eu cultivar a benevolência,
enchendo a minha mente com este sentimento, talvez ele se torne mais forte e
neutralize a raiva, porque os dois são mutuamente incompatíveis.
Não é possível ter emoções ambivalentes?
Não, o que chamamos emoções ambivalentes são
de facto emoções contraditórias, mas não ocorrem ao mesmo tempo embora a
oscilação possa ser muito rápida. Sempre que sentimos, nem que seja por
um segundo, amor e simpatia, não podemos querer fazer mal. O que há a fazer, é
aumentar o tempo em que nos concentramos nas emoções positivas e isso é uma
questão de treino.
A meditação tem efeitos sobre o sofrimento
físico?
Há um filósofo suíço chamado Alexandre Jollien
que fala disso. É uma pessoa fantástica, fabuloso filósofo, mas incapacitado
fisicamente. Hoje é um orador inspirador mas conta que todos os dias nos
transportes alguém o ridiculariza. Não é fácil, ele odeia o seu corpo de certa
maneira, apesar de ter ganho paz acerca disso. Nos problemas mentais pode ser
mais difícil, mas a depressão é um campo onde a meditação pode ser muito
poderosa. Há muitos estudos sobre isso. Obviamente é difícil começar a meditar
quando se está no pico de uma depressão porque não se tem vontade, mas nas
pessoas que já tiveram pelo menos dois episódios e estão realmente fartas
daquilo os programas de meditação baseada na atenção plena reduziram em 40% o
risco de recaída.
Se deixamos de meditar os efeitos
perduram?
Perduram porque mudaram a nossa maneira de
Ser. É como andar de bicicleta. Sempre que dominamos uma nova capacidade ela
fica adquirida, ainda que o treino melhore o desempenho. Para aprender a andar
de bicicleta tivemos de alterar circuitos neuronais, o mesmo acontece quando
meditamos. No fundo, meditar é aprender uma forma diferente de experienciar o
mundo. Quando estou a trabalhar não estou a meditar, mas em quase todos os
momentos uso capacidades que adquiri na meditação e assim continuo a
reforçá-las. Fazendo isso a vida torna-se parte da meditação.
Muitos começam a meditar e desistem. A
felicidade dá trabalho?
Sim, mas é um esforço gratificante. A
meditação inicialmente pode não ser divertida. Há uma expressão de tibetana que
diz “No início nada vem, no meio nada fica, no fim nada vai embora”, ou seja,
no início não vemos os benefícios, é quando podemos desistir; no meio vemos
alguns, mas depois deixamos de ver outra vez; no fim atingimos o objetivo e
nunca mais o perdemos. O tempo destas fases varia de pessoas para pessoa, mas
só o facto de começar a meditar já é raro nos dias que correm.
A felicidade faz parte da natureza humana
ou foi uma conquista evolutiva?
Pessoas infelizes têm menos iniciativa e até
menos interesse em reproduzir-se pelo que em termos evolutivos ser infeliz não
é uma vantagem para a espécie. É um facto que em termos gerais, as pessoas dizem
que, apesar de tudo, estão mais satisfeitas do que não satisfeitas com a sua
vida. Não estamos sempre deprimidos porque isso não seria bom para a espécie. É
o que dizem os evolucionistas.
Essa satisfação mediana não é o conceito de
felicidade budista…
O meu conceito de felicidade não se limita a
uma satisfação mediana nem se confunde com o conceito de prazer. O prazer
depende das circunstâncias, pode contribuir para a felicidade ou ir contra ela.
Adoro música clássica, mas ouvir 48 horas de chopin non stop é um pesadelo.
Também podemos sentir prazer a torturar pessoas. A felicidade é quase o oposto.
É algo que está ali, independentemente do sofrimento ou dos prazeres
passageiros. Quanto mais nos confrontamos com os altos e baixos da vida, mais a
reforçamos porque ficamos menos vulneráveis às circunstâncias exteriores.
Podemos ser felizes sabendo que outros
sofrem?
A tristeza é incompatível com o prazer mas não
com a felicidade. Podemos estar tristes sabendo que há pessoas a morrer à fome
mas não temos de estar desesperados e podemos ficar determinados a ajudar.
Neste sentido a determinação em fazer algo para acabar com o sofrimento faz
parte da minha felicidade.
E é possível ser feliz quando somos vítimas
de violência?
Para a felicidade é muito pior fazer mal aos
outros do que nos fazerem mal a nós. Não quer dizer que temos de ser passivos
se nos agredirem, mas se não pudermos evitar só temos de lidar com isso. No
fundo, felicidade é usar todas as circunstâncias de forma construtiva.
Então ser infeliz é uma escolha?
É uma escolha a longo prazo, não agora.
Se algo mau acontece e não estamos treinados para lidar com isso, não temos
escolha senão ficar angustiados. Podemos, a longo prazo, aprender a lidar com
isso. Não temos que nos sentir cupados. A escolha que temos é começar um
processo de mudança.
Vivemos em sociedades que nos fazem
infelizes?
Há um estudo de Michael T. Kasser que mediu os
níveis de consumismo de centenas de pessoas por 20 anos e concluiu que quanto
mais alto menos felizes somos. Não se trata de um julgamento moral mas de uma
constatação. A mentalidade consumista leva à procura dos prazeres imediatos, o
que não traz felicidade. Atualmente os miúdos de dois anos já são inundados de
anúncios. Isto é eticamente errado e um começo tortuoso para a felicidade.
Uma cultura de meditação pode criar
gerações mais felizes?
Pessoas com mentes treinadas poderão fazer
nascer crianças mais propensas a serem felizes. A cultura e a educação têm uma
influência determinante na forma como o cérebro se começa a moldar.
Um budista tem mais probabilidade de ser
feliz do que um cristão ou ateu?
Se aplicarmos os valores do amor e da
compaixão chegamos ao mesmo sítio. São Francisco de Assis encarna todos os
princípios budistas. O Dalai Lama disse uma vez que no budismo não achamos que
exista um criador mas quem acredita tem de amar os outros, que são também
produtos de Deus. Quando foi a Montserrat, na Catalunha, ver um eremita numa
gruta, perguntou-lhe ‘Sobre o que tem estado a meditar na sua vida toda?’. Ele
respondeu ‘No Amor’. E emanava tanto amor que o Dalai Lama ficou realmente
inspirado. No fundo não há assim tanta diferença.
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