O CORPO NO TRANSE RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO
Érica F. C. Jorge
Sumaia Miguel Gonçalves
“Assim, há tudo a observar, e não apenas a comparar.”
Marcel Mauss,1934.
1. INTRODUÇÃO
A frase acima foi uma das várias que podemos destacar de Marcel Mauss ao realizar seu
As técnicas do corpo encontrado hoje agrupado com outros tão importantes escritos em
Sociologia e Antropologia (MAUSS, 2003).
Consideramos a frase fundamental para discutirmos o trabalho em questão que foi
pensado primeiramente para entender como os praticantes afro-brasileiros lidam com o
corpo no momento do transe religioso.
Atualmente a antropologia apresenta variados métodos que permitem a melhor
compreensão do meio estudado sem que haja escalonamento e gradações entre as
possibilidades do estudo das culturas. Entretanto, é no fazer antropológico
(DAMATTA, 1990) que nos deparamos com as dificuldades em olhar o outro com
isenção de valores ou, ao menos, sem construir um modelo comparativo entre várias
práticas religiosas.
É por isso que destacamos a frase acima uma vez que assumimos a postura de observar
e relatar (sem comparar) o que acontece entre as infinitas possibilidades rituais
existentes nas religiões afro-brasileiras.
O trabalho procura, portanto, compreender a maneira de lidar com o corpo em um dos
momentos, se não o principal, do ritual religioso afro-brasileiro: o transe. Para isso
elegemos como estudo a comunidade religiosa Ordem Iniciática do Cruzeiro Divino
fundada e localizada em São Paulo há 42 anos pelo sacerdote F. Rivas Neto.
O templo hoje pratica Umbanda Omolocô, uma Escola afro-brasileira (RIVAS NETO,
2002) que mescla elementos da Umbanda e do Culto de Nação Africano. Nossa
pesquisa de campo foi realizada pelo método etnográfico, que pressupõe observação
participante e entrevistas abertas e foi realizada nos rituais de caboclo e exu que
ocorrem quinzenalmente no terreiro.
2. UNIVERSO AFRO-BRASILEIRO: MAGIA E RELIGIÃO
Algumas temáticas do universo afro-brasileiro foram longamente estudadas como, por
exemplo, o transe (RAMOS, 1934; BASTIDE, 1958; MOTTA, 1988, BIRMAN, 1995),
a iniciação (BARROS, 1993; SILVA, 2005), a mitologia dos Orixás (VERGER, 1997;
PRANDI, 2002), as festas de santo (FONSECA, 1995; AMARAL, 2002) e ervas rituais
(VERGER, 1995; BARROS, 1993, 2000). Já a relação entre aspectos mágicos e
religiosos, fundante nesse universo, foi principalmente pontuada por Montero (1986) e
depois retomada por Lísias Negrão (1996), Antônio Flávio Pierucci (2001) e Arthur
Cesar Isaia (2011).
Marcel Mauss ofereceu muito substrato para o estudo da relação entre magia e religião
que foi abordada pelos pesquisadores acima, desde a publicação de Esboço de uma
teoria geral sobre a magia (1903). Seu escrito é, de certa forma, amparado pela teoria
positivista comteana, a sociologia da religião de Weber e Durkheim, estudos sobre a
mente primitiva com Lévy Bruhl e a antropologia inglesa de Evans-Pritchard, apenas
para citar algumas referências.
Ainda que tenha procurado superar algumas antinomias, Marcel Mauss (1903/2003) se
preocupou em delimitar o campo religioso e mágico, embora em muitos casos tenha
dificuldade ou demonstra a impossibilidade de fazê-lo apontando a complexidade desta
relação. De qualquer forma, explicita as categorias da magia com base em seus agentes,
atos (rituais) e suas representações (ideias e crenças):
A magia compreende agentes, atos e representações: chamamos mágico o indivíduo
que efetua atos mágicos, mesmo quando não é um profissional; chamamos representações
mágicas as ideias e crenças que correspondem aos atos mágicos; quanto aos atos, em relação
aos quais definimos os outros elementos da magia, chamamo-los ritos mágicos. (MAUSS, 2003,
p.55)
A magia compreende agentes, atos e representações: chamamos mágico o indivíduo
que efetua atos mágicos, mesmo quando não é um profissional; chamamos representações
mágicas as ideias e crenças que correspondem aos atos mágicos; quanto aos atos, em relação
aos quais definimos os outros elementos da magia, chamamo-los ritos mágicos. (MAUSS, 2003,
p.55)
Em verdade o primeiro que problematizou a relação entre magia e religião foi Sir James
Frazer e o fez segundo o espírito científico de sua época, valorizando a primazia da
razão sobre qualquer outra forma de compreensão e de significado da realidade humana.
Assim, para Frazer a magia era “um sistema espúrio de leis naturais assim como um
guia errôneo de conduta, é uma ciência falsa e uma arte abortiva”
A mentalidade científica frazeriana escalonava magia, religião e ciência, ficando claro
que a primeira era a mais grotesca e relativa a um pensamento arcaico, mal elaborado.
Já a religião era uma etapa mais “evoluída”, apresentando processos de sistematização,
hierarquia e instituições organizacionais bem definidas. Entretanto, era com o pé
fincado na ciência que o homem chegaria, para Frazer, a interpretações e explicações
verdadeiras e bem fundadas sobre a realidade. A ciência apresentava-se como um
discurso legítimo e superior.
O defeito da magia estava em sua concepção errônea da natureza e de suas leis
particulares. Frazer sistematizou dois princípios: a magia imitativa e a magia
contaminante. A primeira baseia-se na lei que o semelhante produz o semelhante, o
segundo que as coisas que uma vez estiveram em contato continuam a atuar a distância.
Daremos exemplos retirados das próprias religiões afro-brasileiras, foco de nosso
trabalho. As oferendas magísticas visam propiciar bons auspícios. Quando um sacerdote
oferta, por exemplo, um akassá, ele intenta preservar sua integridade espiritual e física
assim como dos “seus”. Um assentamento de Ogum, por exemplo, se constitui por
trazer a força guerreira e ativa deste Orixá para aqueles que o estão cultuando. É o
semelhante produzindo o semelhante.
Já a magia contaminante ou por contiguidade pode ser exemplificada quando um
sacerdote oferta a um adepto um objeto particular, um colar, anel, talismã, a fim de que,
aquele material mesmo a distância, possa veicular suas vibrações. O adepto não viveria
com o sacerdote, mas com suas vibrações já que estas estão retidas no objeto.
Frazer define religião como a conciliação dos poderes transcendentes ao universo
humano (FRAZER, 1996). Assim, a religião teria dois aspectos fundamentais, um
teórico e um prático: a crença nos poderes superiores ao homem e a necessidade prática
de manifestação dos mesmos pelos rituais, fossem estes sacrificiais ou de recitação de
orações. Frazer afirmava que a religião diferia da magia e da ciência, pois estas estavam
pautadas em leis rígidas, processos invariáveis, que não poderiam ser alterados por uma
súplica, ameaça ou intimidação, enquanto a religião pretendia alterar o curso das coisas
suplicando às divindades. De todo modo, mais uma diferença aparece aqui. Enquanto a
magia preocupa-se em coagir, a religião procura suplicar. Na magia a força está nos
magos, indivíduos com notáveis poderes para atuar nos elementos da natureza visando
um fim prático. Na religião a centralidade está nas divindades, com poderes
sobrenaturais e que regem toda a coletividade. O sacerdote é apenas o intermediário
entre os mundos. O mago faz. O sacerdote pede.
Após Frazer, é possível posicionarmos Émile Durkheim no que tange ao estudo da
relação magia e religião. O sociólogo aponta que a magia também possui seus ritos e
crenças como a religião, porém mais rudimentares (grifo nosso), pois que visa fins
técnicos e utilitários. (DURKHEIM, 1996). Segundo o autor, “o mágico tem uma
clientela, não uma igreja, e seus clientes podem perfeitamente não manter entre si
nenhum relacionamento”. (ibidem, 1996:29). Uma grande marca da magia seria então,
para Durkheim, o clientelismo.
Já a religião ele define como “um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a
coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma
comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a eles aderem”. (ibidem,
1996:32). A religião estaria vinculada à suposição bipartida do mundo, aliás, Durkheim
coloca esta como uma das características do fenômeno religioso, sendo o sacerdote o
responsável por intermediar o mundo sagrado com o profano. Já o mago atuaria com a
manipulação de elementos e forças da natureza visando fins práticos, objetivos,
manipulação de elementos e forças da natureza visando fins práticos, objetivos,
materiais.
A razão de evocarmos esta tradição antropológica e sociológica para a presente análise
reside no fato de que estamos lidando com o universo afro-brasileiro, o qual se constitui
justamente pelo imbricamento entre as relações mágicas e religiosas. Em nossa pesquisa
de campo, ao observarmos os rituais e ficou claro que há tanto atos mágicos quanto
religiosos. A liderança exerce também papel de mago e de sacerdote. Ora pratica com
religiosos. A liderança exerce também papel de mago e de sacerdote. Ora pratica com
suas forças próprias uma movimentação magística ora invoca e evoca seres
sobrenaturais, Orixás, caboclos, pretos-velhos, encantados, exus entre outros. É
importante pontuarmos que este trabalho faz parte de um contexto maior, de uma
proposta de mapeamento mais amplo da realidade afro-brasileira na capital paulista. De
qualquer forma, os resultados obtidos até o momento nos sugerem pistas importantes
para a compreensão do que ocorre neste campo.
3. O TRANSE E O CORPO NO UNIVERSO AFRO-BRASILEIRO: A
PESQUISA NA CASA DE FUNDAMENTOS ORDEM INICIÁTICA DO
CRUZEIRO DIVINO.
O transe é um elemento fundante para as cosmovisões afro-brasileiras. Se por um lado é
um ato religioso por excelência, por outro não deixa de ser um ato mágico, como nos
sugere Arturo Castiglioni ao enumerar as qualidades de um mago:
A qualidade essencial e principal do mago, em todas as suas funções e em todas
as suas práticas, é, sem dúvida, a de saber provocar em si mesmo e nos demais,
esse estado de ânimo especial que é necessário para a magia. (...) O estado de
encantamento se pode provocar por uma série de meios, muitos dos quais
conhecemos e que todavia são usados para produzir estados análogos, sonhos,
hipnose, sonambulismo ou alucinação ou nos estados mais simples de redução
crítica ou de diminuição da consciência. (CASTIGLIONI, 1987, 69).
O transe é, portanto, uma prática ritual complexa. Atrai seres sobrenaturais, mas é
fundamental que a pessoa tenha qualidades suficientes para possibilitar o estado
alterado de consciência. Aliás, “nem todos os seres humanos são veículos de espíritos”
(RIVAS NETO, 1994, p.109) e, portanto, há uma vasta lista de competências que são
necessárias para a manifestação de uma divindade no corpo de um ser humano.
O transe pode ser facilitado pelos sacerdotes e magos, por seus cânticos, encantamentos
ou mesmo por bebidas rituais, como é o caso da bebida jurema, álcool e tabaco
(FERRETTI, 1985; CASCUDO, 1962; ASSUNÇÃO, 2010). Nos rituais que participamos
as bebidas não foram utilizadas para propiciar o transe, ainda que as entidades as utilizem para outros fins.
as bebidas não foram utilizadas para propiciar o transe, ainda que as entidades as utilizem para outros fins.
Os transes que assistimos foram mediúnicos e não de possessão dos Orixás.
Presenciamos incorporações de caboclos e exus. O templo-raiz conforme é chamdo
possui atualmente 256 filhos de santo, sendo que destes 137 incorporam e apenas 39
incorporam e atendem mediunicamente a assistência que frequenta o terreiro. Há outro
templos vinculados ao templo raiz que são denominados agrupamentos. Em trabalhos
futuros poderemos nos ater ao detalhamento numérico destes.
A modalidade que presenciamos na pesquisa de campo é concebida como mecânica de
incorporação semi-consciente ou irradiação intuitiva. Nela, a entidade atua em três
partes da constituição etéreo-física do médium: a função psíquica, a função sensorial e a
função motora.
O sacerdote do templo pesquisado recebe uma entidade ligada ao Orixá Oxalá
denominada Caboclo Urubatão da Guia, que em alguns terreiros é vinculado ao Orixá
Oxossi. Encontramos uma descrição da incorporação desta entidade:
A ligação fluídica magnética dessa entidade com o médium começa pelo alto da
cabeça, em sua região posterior, fazendo descer uma sensação de friagem pelo
pescoço até os ombros. Esta se propaga muito rápido pelo tórax, acelerando
suavemente a respiração e a frequência cardíaca (...) e do tórax desce ao
abdome, na região do plexo solar, onde se liga em todo sistema visceral do
médium, dando uma leve rotação harmônica de todo o corpo, levantando-lhe
ligeiramente a cabeça, controlando o psiquismo, o sensorial e a motricidade do
aparelho mediúnico. (RIVAS NETO, 1994, p. 192)
Ao lermos esta descrição imediatamente nos reportamos a Mauss que analisou as
técnicas do corpo em diversas sociedades. Aliás, seu ensaio foi o ponto de partida para a
presente análise. Afinal, seria possível que até as técnicas de transe fossem ensinadas
culturalmente, fossem aprendidas? Uma vez que elas partem da relação do humano com
o sobrenatural, com uma realidade diferente da sócio-cultural, como poderíamos
entender as técnicas do corpo no momento do transe afro-brasileiro? Na realidade o
próprio Mauss sugere que há técnicas do corpo que influenciam os aspectos místicos.
“Esse estudo sociopsicobiológico da mística deve ser feito. Penso que há necessariamente
meios biológicos de entrar em “comunicação com o Deus.” (MAUSS, 2003, p.422).
meios biológicos de entrar em “comunicação com o Deus.” (MAUSS, 2003, p.422).
Nosso trabalho não tem a pretensão de fazer o levantamento das possibilidades
biológico-corporais para facilitar o transe. Antes disso, intentamos questionar se isto era
viável pela lente de quem praticas as religiões afro-brasileiras. Elegemos o método
etnográfico, com observação participante e pesquisas abertas, justamente para que as
representações contidas nas falas dos entrevistados fossem consideradas sob uma
perspectiva êmica (HARRIS, 1968; GEERTZ, 1983), ressaltando o segmento social ao
qual o sujeito pertence. A ideia foi, portanto, não falar de e pelos adeptos da religião,
mas falar com eles.
Neste caminho, encontramos brilhante ajuda da sacerdotisa da casa pesquisada.
Perguntamos a ela como os adeptos aprendiam as danças e a lidar com o corpo:
As danças são adquiridas pelo processo vivencial, por meio dos ritos. Não existe uma
sistematização do ensino dessas danças. É necessário participar da comunidade para
que você assimile essa linguagem simbólica.
Nesta resposta, a prática do ensino das danças estão em conformidade com que afirmou
Mauss sobre a natureza social do “habitus”. Os hábitos são adquiridos segundo a
sociedade e a educação cultural. Neste caso, as danças afro-brasileiras até podem ser
ensinadas pelos pais e mães espirituais mas são melhor apreendidas pelo processo
vivencial, pelos anos de transmissão da tradição pela oralidade. Ao abordar a questão da
mimese na infância quando a criança imita os atos bem sucedidos dos adultos nos quais
confia e que possuem autoridade sobre ela, Mauss afirma que “o indivíduo assimila a
série dos movimentos de que é composto o ato executado diante dele ou com ele pelos
outros” (MAUSS, 2003, p. 404). Exatamente o que encontramos nos rituais afrobrasileiros
e bem informado pela sacerdotisa da casa. Os atos não são reproduzidos mecanicamente,
mas são observados, apropriados e vivenciados.
e bem informado pela sacerdotisa da casa. Os atos não são reproduzidos mecanicamente,
mas são observados, apropriados e vivenciados.
Durante a entrevista aberta também perguntamos como o corpo era visto nas religiões
afro-brasileiras e como ela sentia seu corpo no momento do transe:
O corpo nas religiões afro-brasileiras não tem a concepção de ser algo negativo. O
corpo é uma expressão da espiritualidade, capaz de ser um veículo dessa
espiritualidade. Por isso que dentro das religiões afro-brasileiras há música, canto,
dança, transe, possessão. São vistos como expressão da espiritualidade. É a conexão
entre o corpo do homem e o mundo dos Orixás. É interessante querermos criar
um processo de hierarquização. Isto já está implícito que seja ou material ou espiritual.
Não temos uma ideia de que esta relação, entre o corpo do homem e a divindade, seja
de planos de existência, ou seja, não preciso anular meu corpo para ter uma expressão do Orixá.
É como se fossem duas realidades que se encontram e que nossa consciência mundana, cotidiana,
pelos excessos de vida social, não permitem esses encontros. Mas eles são sempre presentes.
um processo de hierarquização. Isto já está implícito que seja ou material ou espiritual.
Não temos uma ideia de que esta relação, entre o corpo do homem e a divindade, seja
de planos de existência, ou seja, não preciso anular meu corpo para ter uma expressão do Orixá.
É como se fossem duas realidades que se encontram e que nossa consciência mundana, cotidiana,
pelos excessos de vida social, não permitem esses encontros. Mas eles são sempre presentes.
Logo que a sacerdotisa nos deu essa resposta percebemos a diferença entre a
cosmovisão afro-brasileira e a de outros segmentos. O corpo é sacralizado, ele permite o
encontro do mundano com o sagrado, ele possibilita o encontro entre as duas realidades.
Então ela foi questionada se sentia seu corpo no momento do transe e se seria possível
ensinar alguém tecnicamente a entrar em transe.
Você tem durante o transe uma redução do seu estado de consciência pleno, então você
não tem um controle absoluto do seu corpo. É importante frisar que há diferença entre
a incorporação e o transe em si, são coisas distintas. Mas é impossível ensinar algum
filho de santo a entrar em transe, a ter uma incorporação porque o transe possibilita o
encontro de dois planos de existência e a liberação do inconsciente individual e
coletivo, o que torna impossível você ter controle, cada pessoa tem uma expressão
particular e cada Orixá ou entidade vai se manifestar também segundo as
particularidades das pessoas. Aprender a dançar é uma coisa, aprender o transe é
impossível.
Nesta frase a sacerdotisa respondeu ao problema que nos propusemos estudar. O que
nos inquietava era entender se existia a possibilidade de ensino, de métodos para entrar
em transe, pois se assim fosse, qual a importância do mundo sobrenatural? Se tudo fosse
aprendido socialmente, inclusive o transe, significaria que nas religiões afro-brasileiras
qualquer um poderia se candidatar a médium, a sacerdote. Mas a resposta foi enfática.
No transe não estamos no domínio das técnicas. Trata-se de competências, de
qualidades pessoais para revelar a disposição psíquica, o inconsciente individual e
coletivo e, acima de tudo, de permitir que uma entidade de outro plano se manifeste.
Mauss chamava de técnica um ato tradicional e eficaz. “Não há técnica nem transmissão
se não houver tradição. Eis em quê o homem se distingue antes de tudo dos animais:
pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral.”
(MAUSS, 2003, p.407). As danças dos Orixás são técnicas corporais, são assimiladas
(MAUSS, 2003, p.407). As danças dos Orixás são técnicas corporais, são assimiladas
pela tradição de cada escola afro-brasileira e pelo anos de contato com o sacerdote
responsável por aquela comunidade religiosa.
Já o transe, ainda que seja fundante no universo afro-brasileiro, não pode ser ensinado
tecnicamente. E, quando perguntada se no momento do transe haveria maior
importância dos aspectos espirituais, sociais ou psíquicos, a sacerdotisa respondeu:
Impossível dissociar isto. As religiões afro-brasileiras não tem o cunho individual da
espiritualidade. Ninguém se realiza individualmente, assim como elas não tem uma
divisão estanque dos planos de existência. Dentro desses planos todos estão ligados a
esta teia. Nossa mente é muito dividida e vê tudo segmentado. A realidade é uma só em
planos diferentes. No transe as três realidades se fundem. Isso é maravilhoso e único.
Esta última fala também foi bastante indicativa de como o transe é visto atualmente
pelos próprios adeptos afro-brasileiros. Se antes, diversos praticantes consideravam que
a possessão requeria tratamento e por isso procuravam um terreiro de umbanda e
candomblé, atualmente o mesmo é visto como salutar, já que proporciona um bem estar
em diversos âmbitos.
Hoje, o transe não é mais associado à doença. Nina Rodrigues, o primeiro a abordar a
relação entre o contato cultural e religioso das várias matrizes africanas encontradas no
Brasil (RODRIGUES, 2008), analisava o transe da perspectiva patológica. Aliás,
patologia, fetichismo, animismo, histeria, sonambulismo são alguns dos termos
utilizados pelo iniciador dos estudos sobre o negro no Brasil, e denotam claramente “de
onde” ele falava. Rodrigues seguia a perspectiva “médico-científica” e naquele
momento atrelou o transe afro-brasileiro ao desvio, à anormalidade, sendo todas as
práticas associadas a uma forma primitiva de construir sua cosmovisão religiosa.
Graças ao desenvolvimento de novas posturas antropológicas e da valorização da
Graças ao desenvolvimento de novas posturas antropológicas e da valorização da
cultura afro-brasileira no país (danças, culinária, rituais) os próprios adeptos passaram a
afirmar suas crenças e a compreender melhor as suas práticas. Não é por acaso que o
Ministério da Educação e Cultura credenciou e autorizou em 2003 o funcionamento do
bacharelado em teologia com ênfase nas religiões afro-brasileiras, instituição que,
dentre outras cadeiras, ministra disciplinas sobre o transe, sincretismos e tradição oral
afro-brasileira. Isto corresponde ao processo sócio-cultural do país, de legitimação de
elementos da cultura africana pela classe média intelectualizada carioca e paulista
elementos da cultura africana pela classe média intelectualizada carioca e paulista
(PRANDI, 2001).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso trabalho pretendeu levantar discussões sobre a relevância do corpo no momento
do transe afro-brasileiro e se era viável que as técnicas de transe fossem ensinadas aos
filhos de santo. Ainda que tenhamos feito, do ponto de vista metodológico, um estudo
de caso em um templo afro-brasileiro, consideramos que as posições apresentadas tanto
nas observações quanto nas entrevistas apontam para um caminho importante de ser
colocado.
As religiões afro-brasileiras são de tradição oral, assim, todo o conhecimento
transmitido é de pai espiritual para filho espiritual, no decorrer das vivências e contato
constante com a vida de santo e de sua comunidade. Ainda assim nos questionamos
sobre a possibilidade das técnicas de transe serem apreendidas uma vez que um
elemento primordial entra no contexto: a relação com o transcendente.
O templo estudado nos trouxe como contribuição o caminho de que o transe não é
ensinado, diferentemente das danças e toques sagrados. O corpo no momento do transe
é um veículo para manifestação do transcendente e este irá guiar o indivíduo, a entidade
espiritual é quem ensina e “domina” seu “cavalo de santo” ou médium.
Assim, ainda que existam técnicas específicas em outros setores religiosos que
propiciem o contato com uma divindade (como a técnica da respiração hinduísta, por
exemplo), este não é o caso na comunidade estudada. Deu-se relevância para os
aspectos espirituais e para a centralidade da entidade em nortear o médium e sua
atuação mediúnica.
Pretendemos continuar com essa pesquisa em outros templos, mas esperamos que os
resultados e as reflexões apresentadas até o momento possam contribuir para a análise
do campo religioso afro-brasileiro.
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