Por Isadora Bertolini
Deu meia-noite e o galo já cantou. Seu Tranca Rua que é dono da
Gira. E corre a Gira que Ogum mandou. O batuque do atabaques, a cantoria dos
pontos de orixás, as saias rodando, as confissões e conversas íntimas com as
entidades – tudo é interrompido com um choque: membros de uma igreja
neopentecostal invadem o terreiro, agridem fisicamente os participantes e
depredam o local. Era a última gira da Mãe Gilda, que sofreu um enfarte e
morreu três meses depois. A data de sua morte, 21 de janeiro de 2000, inspirou
a criação do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.
O caso da Mãe Gilda é apenas um em meio a tantos ataques
contra as religiões afrobrasileiras, algo que uma data comemorativa está longe
de contornar. O mais recente deles foi a declaração da Justiça Federal do
Rio de Janeiro, em resposta a uma ação no Ministério Público Federal para a
retirada de vídeos no Youtube de cultos evangélicos que incitavam a violência
contra “macumbeiros”. A afirmação é de que a Umbanda e o Candomblé não são
religiões, não configurando assim um quadro de intolerância religiosa. A
justificativa é o fato de não possuírem um texto base (como a Bíblia), uma
estrutura hierárquica e um Deus a ser venerado.
Diante da forte repercussão negativa que a declaração causou, o
juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do RJ, voltou atrás e
reconheceu seu erro. Na nova declaração, afirma que a Umbanda e o Candomblé são
religiões, mas ainda assim não aceita o pedido de remoção dos vídeos, pois isso
fere a “liberdade de expressão”. Vista sob esse ponto de vista, essa
“liberdade” entra em conflito com diversos aspectos da Constituição brasileira,
que prevê a criminalização da intolerância religiosa, do preconceito e do
racismo implícito nos discursos de ódio às religiões afrobrasileiras. O juiz
que permite a permanência desses vídeos no ar, portanto, é conivente com esses
crimes, desrespeitando assim o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis
e Políticos (PIDCP), o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de
Direitos Humanos) e a Lei 12.288, que reafirma os direitos iguais para a
população negra (triste, em realidade, é a necessidade de criação dessa lei).
Mesmo sendo revogada, a primeira declaração da Justiça Federal é
crucial para entender o preconceito diante das religiões afrobrasileiras. Mas
antes de pensar nos três itens que, supostamente, constituem uma religião, é
preciso dar um passo atrás: como um juiz, cuja formação é provavelmente na área
de Direito, se acha no direito de fazer uma afirmação tão veemente de cunho
teológico (ainda por cima em um Estado supostamente laico)? Baseada no achismo
e na eleição de modelos religiosos, pautados na hegemonia do Catolicismo,
Judaísmo e Islamismo, essa definição deturpada, que exclui não só a Umbanda e o
Candomblé mas também religiões asiáticas, como o Budismo, o Taoismo e o
Xintoísmo, demonstra como o preconceito se exprime como uma tentativa cega de
negar tudo aquilo que foge do que é considerado “normal”. No caso da
discriminação contra religiões africanas e afrobrasileiras, inclui-se também o
preconceito racial que permeia a descrença e a depreciação de diversos
aspectos da cultura negra.
As religiões africanas e afrobrasileiras não seguem o modelo
eurocêntrico e ocidental de religião. Os três elementos apontados pelo juiz
deflagram não só a essência dessas religiões, como também a maneira como
elas propõem uma filosofia que contesta esse padrão hegemônico. Em primeiro
lugar, a ausência de um texto base. “Não faria sentido escrever um livro para
dar conta de toda a diversidade cosmológica de cada vertente afrobrasileira”,
contesta Maria Elise Rivas, vice-diretora da Faculdade de Teologia Umbandista.
Candomblé Nagô, de Angola, Jejê, Umbanda branca, kardecista, omolocô, batuque,
encantaria, jurema – reduzir tudo isso a um texto seria incongruente. A cultura
oral, na qual essas religiões se baseiam, é justamente o que permitiu essa
diversidade. “A oralidade estimula a ressignificação das crenças de acordo com
cada meio e cada tempo”, explica Maria. “Muitas vezes, um texto arcaico não faz
sentido para o homem moderno. Esse caminhar histórico, mas sem perder a
tradição, é marca das religiões afrobrasileiras. Por isso, não vamos ‘evoluir’
para a tradição escrita”.
A cultura oral, além disso, exige ainda mais responsabilidade individual
dos praticantes, o que reforça o sentido coletivo dessas religiões. Não possuir
uma estrutura hierárquica, e sim policêntrica, na qual cada escola tem seu
gerenciamento, é outro desafio imposto ao modelo religioso do juiz carioca. “O
próprio livro escrito é uma relação de poder”, aponta Maria. “Nas religiões
afrobrasileiras, caminhamos todos juntos, há espaço para todas as vozes dentro
das comunidades”.
A falta de um Deus a ser venerado, por fim, revela também a total
ignorância do juiz frente a essas religiões. No caso de muitas vertentes da
Umbanda, como a branca ou cristã, Deus apenas muda de nome – Olorum. Para
as demais vertentes, Maria prefere o termo “henoteísmo”: “na falta de um,
existem vários deuses, sendo que um se destaca frente aos demais”. A tamanha
variedade de crenças e rituais na Umbanda e no Candomblé, enfim, evidenciam o
que pastores evangélicos preconceituosos mais precisariam aprender: o respeito.
Enquanto o ódio e o preconceito contra religiões afrobrasileiras
continuarem nos discursos de pastores, padres e outros líderes religiosos, e
ainda por cima, com o aval da Justiça Federal, a intolerância religiosa não
morrerá. E enquanto esse discurso for reproduzido não só pelos fiéis
evangélicos, mas também pelos setores conservadores, preconceituosos e
ignorantes da sociedade, a Umbanda e o Candomblé seguirão como religiões
perseguidas e marginalizadas. Que a “liberdade de expressão” não seja usada
como desculpa para a propagação desse discurso deturpado, que justifica ações
de violência e contribui para o preconceito contra religiões tão importantes na
formação cultural de nosso país
revistavaidape.com.br/2014/05/21/ate-quando-o-odio-contra-a-umbanda-e-o-candomble-estara-dentro-da-lei/
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