sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

POSSESSÃO, DEUSES E HIEROFANIAS NAS OBRAS DE NINA RODRIGUES


Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, no. 2 – ISSN 1983-2850

Vanda Fortuna Serafim*




Resumo: O presente artigo é resultado de nosso Projeto de Iniciação Científica Deuses e Hierofanias numa perspectiva “médica – cientifica”. O estudo objetivou problematizar a constituição das noções sobre deuses e hierofanias relativas às crenças afro-brasileiras, na transição do século XIX para o século XX, a partir das obras “O animismo fetichista dos negros bahianos” (1900) e “Os africanos no Brasil” (1932), de autoria do médico baiano Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), considerado iniciador dos estudos sobre as religiões africanas no Brasil.
Palavras-chave: Idéias, Instituições, Nina Rodrigues, religiões afro-brasileiras.
Abstract: This article is the result of our Scientific Initiation Project Deuses e Hierofanias numa perspectiva “médica – cientifica”. The study aimed to question the formation of notions about gods and hierofanias concerning beliefs african-Brazilian, in the transition of the nineteenth century to the twentieth century, from works “O animismo fetichista dos negros bahianos” (1900) and “Os africanos no Brasil "(1932), authored the doctor baiano Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), considered the initiator of studies on African religions in Brazil.
Key-words: Ideas, institutions, Nina Rodrigues, african-Brazilian religions.

Introdução

Retornar aos escritos de Nina Rodrigues não significa nos engajarmos à causa do autor, mas problematizar de que forma projetaram-se num primeiro momento os aspectos característicos da religiosidade africana e, a partir disto, desenvolvermos uma reflexão critica. A opção por Nina Rodrigues (1862-1906) ocorre em virtude de sua posição amplamente aceita pelo meio acadêmica de iniciador dos estudos africanos no Brasil. Também afro-descendente, Nina Rodrigues se interessou pelo estudo pelos costumes dos antigos escravos e seus descendentes, em especial as práticas religiosas. O resultado de seus estudos está contido essencialmente em duas obras: O animismo fetichista dos negros bahianos (Paris, 1900), publicado originalmente em francês e Os africanos no Brasil (1932).
Embora seu trabalho consista numa obra de divulgação “médica – científica”, pode-se dizer que é o primeiro estudo de caráter antropológico que trata do negro e de suas crenças. O médico baiano obteve importantes informações sobre os aspectos religiosos dos africanos e seus descendentes, descrevendo os terreiros que visitou no Rio de Janeiro e na Bahia, deuses, fitolatrias, litolatrias, hidrolatrias, rituais de iniciação e possessões.
A obra O animismo fetichista dos negros bahianos, segundo Gonçalves da Silva, foi resultado do conhecimento científico da psiquiatria e do evolucionismo da época, embora não possa ser definida como de cunho antropológico, pelo menos dentro do conceito atual, serviu como um marco ou modelo obrigatório de interlocução aos novos textos que a seguiram. (SILVA, 1995).
Os africanos no Brasil, segundo Gonçalves da Silva, obra póstuma de Nina Rodrigues, procurou ampliar e sistematizar o quadro descritivo das sobrevivências africanas. Refere-se a aspectos etnográficos religiosos, os quais são posteriormente retomados por outros autores. (SILVA, 1995).

Nina Rodrigues e a perspectiva “médica – cientifica”

A importância de se compreender o que seria uma perspectiva “médica – científica” para Nina Rodrigues, reside em nosso entendimento de que seria a partir dela, que ele construiria determinadas noções sobre deuses e hierofanias, que apesar de elaboradas há mais de cem anos, ainda mostram-se ativas na sociedade atual. Entender como se pensou em um primeiro momento as noções sobre deuses, simbolismo aquático e vegetal e o culto às pedras presentes nas crenças afro-brasileiras, chamadas por Nina Rodrigues de fitolatrias, hidrolatrias e litolatrias, pode explicar muito do nosso entendimento atual. Repensar conceitos, os quais são historicamente produzidos, é um instrumento para a investigação de nossas próprias opiniões e posições, historicamente fabricadas.
Considerando que o pesquisador participa das particularidades de sua época, tanto as formas de pensamento como as concepções de mundo se modificam de acordo com as evoluções sociais, os pesquisadores são, portanto, protagonistas da história que escrevem, condicionados cultural e socialmente, assim como Nina Rodrigues. Nesse sentido, é indispensável, pensarmos a historicidade dos conceitos com os quais trabalhamos, os quais são construções humanas e sintetizam toda uma forma de pensamento.
Podemos dizer que a construção da perspectiva “médica - cientifica” de Nina Rodrigues está presente em cada parágrafo de suas obras, neste caso, especificamente as nossas fontes de pesquisa. Desde a escolha de seu tema, até a utilização de alguns autores sobre os quais insistam em explicar que o fazem porque não haveria nada melhor do que os rompimentos com algumas das formas de pensar em sua época e até sua luta constante contra o charlatanismo, prática corrente no contexto.
Nina Rodrigues nasceu em 04/12/1862, no interior do Maranhão. Em 1870, Nina Rodrigues mudou-se para São Luis onde fez o curso de humanidades no Seminário das Mercês e em 1882 ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, onde permaneceu até o início do quarto ano, três anos depois transferiu-se para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, concluindo o quarto ano; retornou à Bahia no ano seguinte para concluir o quinto ano. Foi neste período, quando estagiou na Santa Casa de Misericórdia, espaço privilegiado de atuação da Escola Tropicalista Baiana, que Nina estreitou suas relações com o então professor da clínica médica e importante político do Império, Almeida Couto e participou da direção da Gazeta Acadêmica (1885-1887), revista dos estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia, inspirada na Gazeta Médica da Bahia. (MAIO, 1995).
Em 1886, Nina Rodrigues voltou ao Rio de Janeiro para concluir o curso de graduação e elaborou sua tese de doutorado, sobre três casos de paralisia progressiva cujo titulo era Das Amiotrofias de Origem Periférica, defendida no final de 1887; a qual indicava que Nina Rodrigues cumpria o programa da Escola Tropicalista Baiana. Em 1888, clinicou em São Luis do Maranhão e escreveu uma série de artigos sobre higiene pública com atenção especial para o regime alimentar inadequado da população maranhense. Nesta ocasião, começou a colaborar com a Gazeta Médica da Bahia, mediante um conjunto de trabalhos acerca da lepra no Maranhão. Nesse extenso trabalho introduziu um quadro classificatório das raças no Brasil. (MAIO, 1995).
Em 1889, prestou concurso para a Faculdade de Medicina da Bahia, tornando-se adjunto da 2o Cadeira de Clinica Médica, cujo titular era o Conselheiro José Luiz de Almeida Couto, que viria a tornar-se sogro de Nina Rodrigues. O casamento revelou-se uma importante estratégia de ascensão social. No ano seguinte, participou ao lado do Dr. José Francisco da Silva Lima (presidente do Congresso) e Manoel Victorino Pereira (orador oficial), da comissão organizadora do 3o Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia realizado em outubro, em Salvador. Patrocinado pela Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro (SMCRJ) em conjunto com a Sociedade Médica da Bahia, este congresso, junto com os demais, vieram a se constituir num importante fórum científico e político em que foram decididas importantes controvérsias a respeito da Saúde Pública. (MAIO, 1995).
Em 1891, Nina foi transferido para a Cadeira de Medicina Legal, como professor-substituto do catedrático Virgilio Damázio. No mesmo ano tornou-se redator-chefe da Gazeta Médica da Bahia, escreveu artigos na Revista Brasil-Médico, o mais recente órgão da imprensa médica do Rio de Janeiro, criado em 1887, e foi nomeado para a Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia e, em 1892, participou da comissão de reforma dos estatutos da Faculdade, além de debater, ao longo do ano, um projeto em andamento no legislativo estadual a respeito da organização dos serviços sanitários no Estado. É desse período a publicação de artigos que revelam a influência das doutrinas do médico italiano Cesare Lombroso. (MAIO, 1995).
Segundo Maio (1995), a conversão definitiva de Nina Rodrigues à Medicina Legal, data da publicação de “As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal” (1894), a obra foi dedicada a médicos e juristas consagrados na época, no campo da Medicina Legal, como César Lombroso, autor de “O homem criminoso” (1876). A teoria lombrosiana é uma teoria evolucionista específica baseada em dados antropométricos, onde os crimes são atávicos. O atavismo seria tanto físico, quanto mental. Maio conclui que a medicina legal, como toda a sua bagagem instrumental de aferição e classificação, através da craniometria, da antropometria e da frenologia ofereceu a mediação técnica e empírica que as outras áreas mais gerais do saber médico não possuíam em seu tempo.
Até o final do século XIX, medicina legal não gozava de prestígio, seu ensino carecia de parte investigativa, faltavam-lhe recursos técnicos para as análises, demonstrações e pesquisas. Além disso, não podia contar para as autópsias, senão com cadáveres de indigentes, negros, loucos e anti-sociais. Nina Rodrigues procurou alçar a medicina legal à condição de disciplina cientifica num momento em que a ciência tornou-se uma fonte de legitimação das analises sobre o social, sendo uma das primeiras disciplinas a conquistar um espaço institucional e demarcar a atuação de um profissional adequado, o perito. (MAIO, 1995).
Nina Rodrigues conseguiu obter um estatuto científico para sua disciplina. Isto significa que, dentro das possibilidades de atuação institucional no interior do campo médico, Nina Rodrigues fez da medicina legal um espaço autônomo de conhecimento. Nina não se transformou em mito da ciência, a denominada “Escola Nina Rodrigues” foi criada nos anos de 1930, por Afrânio Peixoto e Arthur Ramos, como a forma de dar maior credibilidade às suas respectivas militâncias no campo da medicina legal.
É no decorrer da carreira apresentada que Nina Rodrigues entra em contato com os terreiros de candomblé na Bahia e elabora um amplo quadro com categorias onde enquadra as práticas religiosas afro-descendentes. O que buscamos fazer foi desconstruir alguns destes elementos, a fim de compreender de que forma é constituído o estudo destas manifestações, por um intelectual, num primeiro momento da história do Brasil.
Ao lermos “O animismo fetichista dos negros bahianos” (1935) e “Os Africanos no Brasil” (1982), podemos encontrar mais da época em que foram escritos, do que da época que pretendiam retratar: mostram um modo de pensar social, os métodos científicos, os autores de renome, entre vários outros aspectos. O próprio Nina Rodrigues que se autodetermina “neutro” e detentor de uma perspectiva “médico – científica”, denota seu viés positivista.
Certeau explica que com o desaparecimento de um determinado modelo, os temas rechaçados podem se tornar objetos de estudos. “Nossa situação nos permite conhecer a deles de outra maneira que eles puderam conhecer” (CERTEAU, 1982, p.44). Os preconceitos da história ou dos historiadores desaparecem quando muda a situação à qual eles se referem. O próprio Nina Rodrigues coloca que até aquele momento ninguém imaginava que viria a se importar com o problema “o negro”. Sílvio Romero há muito já dizia ser uma vergonha que ninguém se propusesse a estudar a cultura africana no Brasil. Nina Rodrigues polemiza com a visão de João Baptista Lacerda, diretor do Museu Nacional, para o qual, a histeria se manifestaria apenas nas mulheres brancas; e traz a mulher negra para o âmbito da discussão científica, apontando-a enquanto detentora de predisposição à histeria.
Para Certeau (1982), o historiador deve analisar em termos de produções localizáveis, o material que cada método instaurou inicialmente segundo suas noções de pertinência. Isto porque, para ele, o discurso é parte da realidade da qual trata. É interessante notar como a linguagem médica utilizada por Nina Rodrigues pode nos mostrar isto. Termos como “animismo”, “fetichismo”, “histeria”, “sonambulismo”, “patologia”, entre tantos outros presentes nas fontes que analisamos, certamente não visavam alcançar o público leigo, Nina Rodrigues escrevia para seus pares, apenas eles, poderiam legitimar a importância de sua obra.
Nina Rodrigues era professor na Faculdade de Medicina da Bahia, nesse período, os médicos eram considerados instrumentos da nação, cuidavam da saúde dos corpos, ao lado dos padres que cuidavam da saúde da alma, isto é claro, dentro de uma visão nacionalizada da profissão médica. Por outro lado, ainda no século XIX, elevava-se a figura do médico, ele deixava de depender da remuneração individual e passava a viver seu trabalho como cientista, pesquisador, que financiado pala nação e formado pelas universidades, intervém na realidade e a transforma. É perceptível o caráter, ou ao menos, a justificativa nacionalista da importância que o próprio Nina Rodrigues dá às suas obras. (SCHWARCS, 1979).
Nina Rodrigues justifica sua pesquisa pelo fato de que a população brasileira é uma população mestiça: “Na primeira alternativa, a nossa preocupação de discutir as questões de princípio, se complica efetivamente, no caso particular, de uma nota curiosa de psicologia de um povo compósito”. (RODRIGUES, 1982, p.1). Com a abolição, o negro é agora um cidadão comum que pode vir até a dominar o branco; mas o país estava dominado pela simpatia à campanha abolicionista e todos queriam se colocar como protetores da “raça” negra. No entanto, o fato de um negro ser bom, não faz com que todos os outros sejam. Mas quem está apto a comprovar isto? Para Nina Rodrigues é a ciência.

A possessão em Nina Rodrigues

Ao trabalhar com as manifestações de tradição afro-brasileira, Nina Rodrigues acredita que a sinceridade dos “negros fetichistas” é garantida pela manifestação anormal, a incontestável alienação passageira, que por ignorância atribuem à intervenção sobrenatural do fetiche. Para o autor, os oráculos fetichistas e as possessões de santo são estados de sonambulismo com desdobramento ou substituição de personalidade. Como o iniciado conhece as características do santo, adere à sua personalidade. Ele crê que a natureza de tais fenômenos liga-se ao estado mental da raça negra, que chega a considerar seus sonhos como visões, sem diferir o real do imaginário. A “raça” negra seria tendencialmente forte à histeria.
Nina Rodrigues pode ser enquadrado dentro de uma das acepções para o “culto moderno dos deuses fe(i)tiches” (LATOUR,2002, p.101), mas especificamente, o pensamento crítico. Latour utiliza o sentido pejorativo das palavras “fetiche” e “culto”, no intuito de mostrar que os modernos não se mostram desprovidos de fetiche e de culto como eles imaginavam; muito menos num grau acima da evolução intelectual humana como pensava o médico baiano. Eles têm o culto mais estranho de todos: “eles negam às coisas que fabricam a autonomia que conferem às mesmas, ou negam àqueles que as fabricam, a autonomia que estas conferem aos mesmos”. (LATOUR, 2002, p.101).
Ao tentar encontrar respostas na psiquiatria ou na sua visão biologizante para os “estados de santo”, as possessões, os transes, Nina Rodrigues, desvia a atenção do ato em si. Latour (2002) explica que o moderno não suporta a idéia de ser superado pelo acontecimento, quer manter o domínio e encontrar a fonte no sujeito humano, origem da ação. Nina Rodrigues estuda a histeria na “raça” negra, pois acredita que aí estaria a origem da ação e também no atraso do desenvolvimento intelectual do negro.
Como na possessão demoníaca, como na manifestação espírita, o santo fetichista póde apoderar-se, sob invocação especial, do pai de terreiro, ou ainda de qualquer filho de santo, e por intermédio deles falar e predizer. A pessoa em quem o santo se manifesta, que está ou cai de santo na gíria do candomblé, não tem mais consciência dos seus atos, não sabe o que diz, nem o que faz, porque quem falla e obra é o santo que delle se apoderou. Por este motivo, desde que o santo se manifesta, o individuo, que delle é portador, perde sua personalidade terrestre e humana para adquirir, com todas as honras que tem direito, a do deus que nelle se revela. (RODRIGUES, 1935, p.99-100).
Lewis (1977), ao tratar da tomada do homem pela divindade, explica que são poucos os trabalhos que param para considerar como a produção do êxtase religioso pode se relacionar com as circunstâncias sociais que as produzem; mas ao contrário, como é o caso da psiquiatria, suas abordagens são geralmente distorcidas por suposições etnocêntricas sobre a superioridade da sua própria religião. Para Nina Rodrigues (1982), o momento atual, transição do século XIX para o século XX, da evolução religiosa no Brasil é evidente; na Bahia, a análise psicológica facilmente a decompõe em áreas superpostas: a mais elevada estaria no monoteísmo católico, se por poucos compreendidos, menos ainda praticados.
Abaixo do catolicismo, explica Nina Rodrigues (1982) estariam a idolatria e a mitologia católica dos santos profissionais, a qual abrange a massa da população (brancos, mestiços e negros mais inteligentes). Em terceiro lugar, estaria como síntese do animismo superior do negro, a mitologia jeje-iorubana, que a equivalência dos orixás africanos com santos católicos, está derramando na conversão cristã dos negros crioulos. Finalmente, o fetichismo estreito e inconvertido dos africanos das tribos mais atrasadas, dos índios, negros crioulos e mestiços do mesmo nível intelectual.
Nina Rodrigues segue uma linha de raciocínio onde a humanidade sofre uma transição intelectual, portanto, os negros estariam inseridos num animismo difuso, devido ao baixo desenvolvimento mental, o que não os possibilita conceber idéias mais elevadas. A presença da possessão nas religiões afro-descentes, seria apenas mais um fator comprovativo de sua tese.
Nina Rodrigues mostra a utilização dos seguintes métodos nos processos de iniciação “Banhos, fumigações, ingestão substancias dotadas de virtudes especiaes, jejuns prolongados, abstinências sexuaes, mortificações diversas, etc., são meios de que soccorem sempre os feiticeiros de todos os tempos”. (RODRIGUES, 1935, p.110). O médico também vê a importância das danças nesse processo e aponta a música como um dos fatores responsáveis pelo estado de santo:
É preciso ter sido testemunha dos trejeitos, das contorsões, dos maovimentos desordenados e violentos a que os negros se entregam nas suas dansas sagradas, pór horas e horas seguidas, por dias e noites inteiras; é preciso tel-as visto cobertas de suor copisissimo que as companheiras ou prepostas especiaes enxugam de tempos a tempos em grandes toalhas ou panos... (RODRIGUES, 1935, p.110).
Lewis (1977) explica que há uma predileção por parte dos espíritos que aparecem nos cultos religiosos, pelas pessoas em estados menos privilegiados e oprimidos. As mulheres, por exemplo, empregariam (consciente ou inconscientemente) a possessão como um meio de insinuar seus interesses e demandas diante da repressão masculina. Os cultos como o hausa bori, que são associados com a prostituição, mulheres divorciadas ou com casamento mal- sucedido, servem de refúgio a elas. A motivação mais comum seria a infertilidade feminina, são mulheres cujos casamentos já não têm nada a lhe oferecer.
Tal forma de pensamento poderia ser associado à concepção de histeria dos antigos gregos como a aflição de possessão relativa ao útero (hysteria = útero). Platão já explicava que o útero anseia por gerar crianças, quando fica estéril por muito tempo após a puberdade se entristece e perturba dolorosamente. È comum e satisfatório à vaidade masculina interpretar a marcada predominância das mulheres nos cultos de possessão, como reflexo inerente da predisposição à histeria. (LEWIS, 1977).
Mariza Corrêa (2001) explica que, no período em que Nina Rodrigues se insere, “histeria” é usada quase como sinônimo de mulher. A feiticeira e a histérica, a criatura religiosa e a criatura médica, ambas possuídas por um poder extra corporal ou demasiado corpóreo que as aproxima entre si e as afasta do mundo dos homens, serviram por muito tempo como referência para o discurso sobre a mulher. Ambas reaparecem no discurso de Nina Rodrigues como formas exemplares de abstrações médico-teóricas. Doença já domesticada pela medicina européia,
tornada pública no Brasil com as epidemias, a histeria foi tratada por Nina Rodrigues em sua clínica particular e o impressionou desde os tempos em que vivia em sua terra natal, quando andava pelas ruas e via mulheres sendo carregadas por até duas pessoas, enquanto sofria ataques histéricos.

Ao estudar os estados de santo nos candomblés da Bahia, Nina Rodrigues os classifica enquanto histeria; polemizando com a visão de João Baptista Lacerda, diretor do Museu Nacional, para o qual, a histeria se manifestaria apenas nas mulheres brancas. Nina Rodrigues defendeu a possibilidade da histeria se manifestar na mulher negra, instigando que se Lacerda quisesse provas da histeria na “raça” negra, que viesse até a Bahia. Criando uma igualdade entre ambas, Nina Rodrigues trazia também a mulher negra para o âmbito do saber médico. Ao analisar a possessão Nina Rodrigues privilegia as entrevistas com mulheres negras.
Nina Rodrigues também enfatiza a hipnose e o sonambulismo, além da histeria no “estado de santo”, para ele, o ambiente em que o sonâmbulo se encontra é essencial para manter esse estado. Cita Pierre Janet que afirma o seguinte:

O somnambulismo é antes de tudo um estado anormal, durante o qual se desenvolve uma nova fórma de existência psycologica com sensações, imagens, lembranças que lhe são próprias... O desdobramento da personalidade, tão manifesto em certas grandes observações de dupla existência, existe na realidade no mais simples somnambulismo. (RODRIGUES, 1935, p.114).
De acordo com Nina Rodrigues, o iniciado já conhece as características do santo. Ao cair em estado sonambúlico, as vestes usadas no culto lhe impõe a personalidade do santo ou do deus. Esse estado é caracterizado pela amnésia completa ao despertar:
Há nos candomblés o maior cuidado em não dizer-se a um individuo que caiu em santo que elle esteve nesse estado. As explicações que me deram dessa precaução foram differentes. Para uns, é porque essa declaração pode provocar- lhe de novo a possessão. Para outros porque sabedores de que estiveram fora de si e praticaram actos que não têm menor consciência, as possuídas impressionam- se tanto que acabam por ficar alienadas. Para outros finalmente, é esse cuidado simplesmente a expressão de uma delicadeza para com o possuído que se envergonharia de saber que esteve a dar-se ao espetáculo de dansar, pular, etc. (RODRIGUES, 1935, p.116).
Nina Rodrigues, afirma que o estado de santo não é mais que um estado sonambúlico. Em sua posição de médico se dispõe a hipnotizar Fausta, uma moça que conhecera no candomblé. Ele consegue através da hipnose levá-la mentalmente ao ambiente do terreiro. Ela segue suas ordens (sugestões), até que consegue persuadi-la a cair em estado de santo. Devido ao fato de já conhecer a moça observa que a fala do santo é exatamente a de Fausta:
Chamei-a pelo nome, Fausta, e perguntei-lhe o que tinha. Respondeu-me quenão era Fausta e sim Oubatalá, que Fausta era apenas cavalo de Oubatalá. O estado em que se achava, o modo de falar eram tudo a cópia fiel do estado de santo da mãi de terreiro onde eu a tinha conhecido. (RODRIGUES, 1935, p.120-121).

Fitolatrias, litolatrias e hidrolatrias

Há uma forte discussão sobre a existência ou não-existência da histeria na raça negra presente em Nina Rodrigues. Afirma já ter visto vários casos de histerias com pessoas de raça negra e associa a histeria ao baixo desenvolvimento intelectual da raça negra:
O fraco desenvolvimento intellectual do negro primitivo, auxiliado pelas práticas exhaurientes das superstições religiosas, como factor do estado de possessão do santo equivale, pois, à histeria que, para os negros mais intelligentes, constitui esse factor. (RODRIGUES, 1935, p.139).
Exposto o modo como as possessões são analisadas por Nina Rodrigues, é preciso ter em mente que nas sociedades, nas religiões caracterizadas pela crença nos espíritos, a possessão por espíritos pode ser por eles normalmente aceita. A realidade da possessão por espíritos constitui parte integrante do sistema total de idéias e suposições religiosas.
Morin (1991) explica que experimentou a existência dos orixás em Fortaleza, por intermédio de um amigo iniciado que o levou a casa de um mestre de culto de uma comunidade fechada aos estranhos. A cerimônia possuía uns trinta participantes e começou com a invocação de Exu. O grupo excitou-se progressivamente, e, de repente, um espírito apoderou-se de um participante. Morin relata que chegaram outros espíritos e ele ansiava por um transe, mas acha que o mestre que o controlava não o quis. De qualquer modo compreendeu o que há muito sabia, mas apenas de maneira abstrata; que os orixás e deuses tinham uma existência real, que tinham o poder sobre-humano de encarnarem em nós com a plenitude de seu ser, com a sua voz e a sua vontade, e de nos possuírem literalmente.
É preciso apresentar novamente que todos os deuses existem realmente para os seus fiéis, embora não existam fora da comunidade dos crentes. Surgidos como ectoplasmas do espírito/cérebro humano, os deuses se tornam individualidades, dotadas de identidade, psicologia e corporalidades própria. Embora não sejam constituídos por matéria núcleo protéica, têm existência viva: agem, intervêm, perguntam e ouvem; estão realmente presentes nas cerimônias religiosas e nos ritos como vodu e candomblé, eles falam; encarnam e exigem. (MORIN, 1991).
Embora a existência dos deuses dependa de nossa existência, explica Morin (1991), eles são nossos soberanos. Pedimos a eles ajuda e proteção; em troca, oferecemos nossas orações, nossos burros e nossos filhos, se preciso. No entanto, os deuses também estão reciprocamente, ao nosso serviço; se os invocamos da maneira correta, eles podem ajudar nossos empreendimentos, salvar-nos de perigos extremos e trazer chuva para nossas colheitas. Os deuses aos quais servimos, existem para nos prestar serviços. Nossos deuses não estão à disposição de estranhos: eles são nossos. Ou seja, possuímos deuses que nos possuem.
Ao optarmos por trabalhar a constituição de uma forma de se pensar deuses e hierofanias relativos às religiões afro-brasileiras na transição do século XIX para o século XX, vimos a necessidade de estudarmos mais a fundo o modo como se constituem inicialmente as noções de deuses e hierofanias, dentro daquilo que Nina Rodrigues coloca enquanto perspectiva “médica - cientifica”, anteriormente exposta.
Nina Rodrigues entende os objetos dos cultos afro-brasileiros onde o sagrado se manifesta enquanto fetiches. Considerando que o homem apreende os objetos da forma como a linguagem o apresenta, pois suas ações e sentimentos dependem da sua percepção, ao exteriorizar a linguagem, o homem confunde-se com ela e cria um círculo mágico em torno do povo ao qual pertence sem poder sair de um sem saltar para dentro de outro. Esta idéia é de Humboldt e aplica-se, sobretudo as teorias da religião como instrumento de construção de fatos científicos. (BOURDIEU, s/d).
É em virtude disto, que se evidencia a necessidade de confrontarmos duas linguagens, as quais buscam legitimar um discurso referente à religião: uma médico-científica e outra historiográfica, no intuito de compreendermos como aquela se constitui. Nossa perspectiva teórica historiográfica para discutirmos deuses e hierofanias se pautou em Mircea Eliade, pensamos fitolatrias, a partir da idéia de simbolismo vegetal (ELIADE, 1992); hidrolatria a partir o simbolismo aquático (ELIADE, 1992) e litolatria a partir do culto às pedras (ELIADE, 1992). Também utilizaremos a noção de “deus longínquo” (ELIADE, 1992) para pensar a fala de Nina Rodrigues em relação à Olorum.
Segundo Mircea Eliade (1998), o fenômeno religioso se revelará somente como tal, se apreendido dentro da sua própria modalidade. Sendo assim, tentar estudá-lo pela fisiologia, psicologia, lingüística, é traí-lo, pois deixa escapar o seu caráter sagrado. Certamente não existem fenômenos religiosos puros ou exclusivamente religiosos, sendo a religião algo humana é também social, lingüística e econômica, mas seria vão buscar defini-la pelo mesmo viés que se define o homem
O sagrado é real, eterno e eficaz. O homem conhece o sagrado porque ele se manifesta, mostra-se diferente do profano. A hierofania é o ato de manifestação do sagrado. Desde o princípio, a história das religiões é constituída consideravelmente por hierofanias. Estas possuem tipos variados, das mais simples (manifestada numa pedra) à suprema (Deus encarnado em Jesus). Trata-se da manifestação de algo de ordem diferente em objetos do mundo.
Destacando a heterogeneidade dos documentos religiosos, em que medida estamos autorizados a falar das modalidades do sagrado? O que nos assegura a existência real de tais modalidades é o fato de uma hierofania ser diferentemente vivida e interpretada por elites religiosas, em relação ao resto da comunidade. Não são apenas heterogêneos na origem, mas também na estrutura. As hierofanias vegetais, por exemplo, encontram-se tanto nos símbolos (a árvore cósmica), como nos mitos metafísicos (a árvore da vida). (ELIADE, 1998).
Ao lado dos objetos ou seres profanos, sempre existiram, no quadro de qualquer religião, seres sagrados. Mesmo que haja certas classes de objetos que possam receber o valor de uma hierofania, há sempre objetos, que não são investidos deste privilégio. No caso do culto das pedras, nem todas são sagradas. Na verdade, não se trata de um culto de pedras, mas hierofanias, isto é, algo que ultrapassa a condição normal de objeto. O objeto hierofônico, separa- se do mundo que o rodeia, pois deixa de ser um simples objeto profano – adquiriu a sacralidade. (ELIADE, 1998).
Já na estrutura do simbolismo aquático, há a valorização religiosa das águas, pois estas existiriam antes da terra. As águas simbolizam a soma universal das virtualidades. A imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, repete o gesto cosmogônico da manifestação formal. Assim a água implica morte e renascimento. Seu contato pressupõe regeneração, pois a dissolução é seguida de um novo nascimento e a emersão fertiliza e multiplica o potencial da vida. A cosmogonia aquática corresponde as hilogenias (crença de que o ser humano nasceu das águas). Em todas as religiões a água ocupa a função de lavar os pecados, purificar e regenerar. (ELIADE, 1992).
No que diz respeito ao simbolismo da árvore cósmica e dos cultos à vegetação, a aparição da vida é para o homem religioso, o mistério central do mundo. A vida vem de qualquer parte que não é este mundo e retira-se para o além. A vida humana possui pré-existência e pós-existência. Para o homem religioso a morte é outra modalidade de existência humana. Além de simbolizar o cosmos, a árvore foi escolhida para exprimir a vida, juventude, imortalidade, sapiência. A árvore ou planta sagrada revela uma estrutura não evidente nas espécies de vegetais concretos.
O homem ocidental moderno tem dificuldades para aceitar certas hierofanias, mas não se trata de venerar uma pedra ou uma árvore, até porque revelam algo que é sagrado. Mesmo assim, é difícil ao homem ocidental, habituado a relacionar espontaneamente noções de sagrado, de religião e até magia, com certas formas históricas da vida religiosa judaico-cristã, as hierofanias estranhas, surgem em grande parte como aberrantes. Mesmo que esteja predisposto a considerar com simpatia certos aspectos religiosos, dificilmente compreenderá a sacralidade das pedras. Mesmo que algumas hierofanias excêntricas encontrem justificações (considerando- as como fetichismos) é quase certo que o homem moderno permanecerá refratário em relação a outras. (ELIADE, 1992).
Eliade fala do homem moderno, nós nos remeteremos a falar de Nina Rodrigues, o qual muitas vezes tem atitudes próximas às do homem “a - religioso”. Ao estudar as religiões afro-brasileiras e se deparar com o que nós, atualmente, entendemos como hierofanias, as relata da seguinte forma:
Abaixo de Olorun para os Jorubanos independente de Olorun para muitos dos Africanos convertidos e em geral para os creoulos, existe uma grande série de deuses, os Orisás, pela maior parte talvez da constituição evhemerica, formando uma mythologia complexa em que se sentem ainda bem descriminados a litholatria, a phytolatria, o animismo fetichista em todas as suas manifestações enfim. (RODRIGUES, 1935, p.37).
Nina Rodrigues segue uma linha de raciocínio onde a humanidade sofre uma transição intelectual, portanto, os negros estariam inseridos num animismo difuso, devido ao baixo desenvolvimento mental, o que não os possibilita conceber idéias mais elevadas.
Segundo Nina Rodrigues, a divinização do trovão é freqüente em todas as mitologias; Xangô seria o deus do trovão: “O meteorito ou pedra de raio, segundo parece, é tido na África por objeto sagrado e como tal venerado. Entre nós, porém, o meteorito não é somente um objeto sagrado, mas o ídolo-fetiche do próprio Sangô e como tal adorado”. (RODRIGUES, 1935, p.44).
Para Nina Rodrigues (1982) “Sangô” seria a manifestação mais clara da litolatria baiana. Conhecido como atirador de pedras, os xangôs dão aos instrumentos de pedra que encontram em seu país uma origem divina: são as armas de xangô. Por isso os cultos a pedras teria se incorporado ao mito yorubano de Xangô. Mas, essa litolatria possui várias manifestações, há muitas pedras de tal natureza, como a Pedra de Ogum:
Esta pedra conhecida sob o nome de Pedra de Ogun, e adorada como um fetiche, fica a meio caminho entre os engenhos d`Água e de Baixo, No município de S. Francisco. De forma de parallelepipedo irregular e collocada na encosta de um valle, á margem da estrada, a pedra tem face voltada para o sul, enterrada no solo até quasi o meio, mas a face do norte, com mais d dois metros de altura, está toda descoberta. A pedra tem mais de três metros de comprimento e apresenta na face do norte uma excavação ou entalhe natural que se estende até á face superior. Sobre esta pedra encontram-se de contínuos vestígios ou restos de sacrifícios, sangue, pennas de aves, conchas marinhas, etc. (RODRIGUES, 1935, p.48).
Ao conversar sobre a pedra com um Pai-de-Santo, este lhe diz que a denominação “Pedra de Ogun” é enganosa, pois, “Ogun, deus da guerra, tem como attribuo o ferro e não podia ter uma pedra. Qualquer objeto de ferro pode ser adorado como Ogun, comtanto que tenha sido consagrado pelo feiticeiro.” (RODRIGUES, 1935).
Quanto à hidrolatria, Iemanjá, às vezes é representada sob a forma de uma mulher com cauda de peixe, explica NINA RODRIGUES, para os negros e mestiços brasileiros, seu mito confunde-se também com o da mãe d’agua:
Yê-man-já, ou a mãi d`agua é uma creação mythologica que symboliza a hydrolatria primitiva. De uma pedra marinha ou fluvial preparam o fetiche, mas em geral a concepção de Yê-man-já confunde-se com o mytho da sereia de que se torna uma simples variante. (RODRIGUES, 1982, p. 52).
A Fitolatria baiana tem dupla acepção, a árvore pode ser um fetiche animado ou a morada ou o altar de um santo. Dela emerge o culto a Ifá, um dos orixás mais aclamados. O culto fetichista das plantas é extenso entre os negros e mestiços. Nina Rodrigues (1982) explica que a gameleira sob o nome de Irocó, é um tipo de planta-deus:
Mais a mãi de terreiro me tem conjurado a não deixar nunca que seja abatida uma gamelleira em terreno que me pertença, pois esse sacrifício tem sido occasião de grandes infortúnios para muita gente. (RODRIGUES, 1935, p.53).
Em torno do tronco do soberbo vegetal, encontrei vestígios de sacrifícios, conchas marinhas, quartinhas de barro com água, etc. Ramos e galhos seccos, que ninguém se atreve a retirar para lenha, juncam em profusão a área que sombrêa magestosa coma. E a lenha não é ali de fácil obtenção. (RODRIGUES, 1935, p.53).
No decorrer da exposição percebemos que é possível pensarmos Nina Rodrigues dentro de determinado “campo científico” enquanto um “especialista”, legitimado por seus pares ao mesmo tempo em que é detentor de um discurso aceito pelos leigos. O médico baiano direciona a si mesmo o poder de dizer o que é ciência em virtude de sua autoridade médica, legitimado pelo espaço ocupado pela medicina no Brasil neste período, o qual ele próprio ajuda a construir. È em função disto que se delineia a formação de sua perspectiva “médica - cientifica”, a partir da qual elabora conceitos fundamentais para o estudo das manifestações religiosas de tradição africana no Brasil.

Considerações finais

Para concluir, o que revelam todas as hierofanias, até às mais elementares, é paradoxal coincidência do sagrado e do profano, do ser e do não ser, do absoluto e do relativo, do eterno e do devir. O sagrado manifesta-se sobre qualquer forma, até sob a mais aberrante. Em resumo, o que é paradoxal, o que é ininteligível, não é o fato das manifestações do sagrado nas pedras ou nas árvores, mas o próprio fato dele se manifestar, e por coincidência, se limitar e tornar-se relativo. (ELIADE, 1998).
Nina Rodrigues afirma que não se pode dizer que os “áfrico-baianos” confundem seus santos com “feitiços”, “gri-gri” ou “jujú”. Na transição do “animismo difuso” para o “animismo condensado”, os negros tendem a se aproximar mais dos orixás do que dos gri-gri. Embora classificada enquanto preconceituoso, Nina Rodrigues, foi o primeiro a buscar compreender, mesmo que à sua maneira, a organização da vida religiosa dos afro-descendentes no Brasil.
Não objetivamos elucidar a complexidade da relação Nina Rodrigues e a religião dos orixás. Diante da amplitude do problema e da forma instigadora e desafiante que o nome de Nina Rodrigues surge entre aqueles que se propõem a trabalhar com a temática, seja relativo à história das ciências e/ou das religiões e religiosidades, conforta-nos saber que “um homem exclusivamente racional é uma abstração; jamais o encontramos na realidade. Todo ser humano é constituído, ao mesmo tempo, por uma atividade consciente e por experiências irracionais.”. (ELIADE, 1992, p.170). É a partir desta afirmativa que buscamos refletir sobre esse polêmico “homem de sciencia”.

Referências

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BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu. S/l, Ática, S/d.
BOURDIEU, Pierre. Os usos da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Trad. Denice Catani. São Paulo, Unesp, 2004.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2.ed. Bragança Paulista, EDUSF, 2001.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ELIADE, Mircea. Tratado de História das religiões. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches.Trad. Sandra Moreira. Bauru; São Paulo, EDUSC, 2002.
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MAIO, M. C. A medicina de Nina Rodrigues: Análise de uma trajetória cientifica. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (2): 226-237, abr/jun, 1995.
MORIN, Edgar. O método IV. As idéias: a natureza, vida, habitat e organização. Trad. Emílio Campos lima. Portugal, Publicações Europa-América, 1991.
PAGÈS, Pelai. Introducción a la História: Epistemología, teoria y problemas de método en los estudios históricos. Barcelona: Barcanova, 1983.
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SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Ed. Nacional, 1979.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Orixás da metrópole. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.


* Graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, sob orientação da Profa. Dra. Solange Ramos de Andrade, com apoio da CAPES, e-mail: vandaserafim@gmail.com
Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, no. 2 – ISSN 1983-2850

sábado, 22 de dezembro de 2012

A Natureza e seus significados entre adeptos das religiões Afro-brasileiras


ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html _________________________________________________________________

A NATUREZA E SEUS SIGNIFICADOS ENTRE ADEPTOS DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS



Rosalira Oliveira dos Santos
FUNDAJ rosalira.santos@fundaj.gov.br
Antonio Giovanni Boaes Gonçalves
UFPB/CCHLA/DCS giboaes@ig.com.br
As religiões afro-brasileiras são reconhecidas como religiões de matriz da natureza, pois para elas a natureza possui uma importância central. Abordaremos neste texto duas questões que marcam a relação entre a natureza e as religiões afro-brasileiras: os significados atribuídos à natureza e a utilização dos elementos e espaços naturais na ritualística, especialmente nas oferendas e sacrifícios. Este texto é uma versão modificada do terceiro capítulo do relatório final da pesquisa Kossi ewe, kossi orixá: percepções sobre a natureza entre adeptos das religiões afro-brasileiras em Recife e João Pessoa realizada pelos autores, de julho de 2008 a julho de 2010 com auxílio financeiro do CNPq e da FUNDAJ. Os dados analisados foram construídos a partir de observações diretas e por meio de entrevistas e grupo focal com pais e mães de santo do candomblé e da umbanda nas duas cidades.
O motivo da pesquisa surgiu por constatarmos que havia vários discursos que atribuíam o status de “ecológica” às religiões afro-brasileiras, quer pelos adeptos, quer pelos estudiosos e outros atores políticos. Reiteradamente nos deparamos com afirmações do tipo: (1) as religiões afro-brasileiras já eram ecológicas bem antes dos movimentos ecológicos, uma vez que a reverência aos elementos da natureza, corporificados nos orixás, constitui o âmago da sua experiência religiosa; (2) as religiões afro-brasileiras são intrinsecamente preservacionistas, já que nelas os espaços naturais (como rios, matas, cachoeiras e outros) constituem locais de culto tão importantes quanto os templos (terreiros e roças); (3) a perspectiva ecológica constitui uma das heranças da tradição africana preservada nestas religiões. Neste sentido, embora todas as religiões afro-brasileiras possam ser entendidas como “ecológicas”, seria o candomblé, em função da sua (postulada) maior proximidade com a tradição original quem melhor atualizaria essa qualidade, e, (4) essa tradição africana matriz consiste, na verdade, num outro modelo civilizacional cujos valores podem ser contrapostos ao modelo ocidental-cristão. A problemática, portanto, girava em torno de um tema central: “A natureza”. Daí a importância de analisarmos mais de perto os significados e os usos que os adeptos dessas religiões apresentam para a Natureza, o que também nos leva a discutir o caráter preservacionista das mesmas.

Primeira questão: significados para Natureza

Uma primeira acepção, que possui também um caráter mais generalizante é aquela que associa a natureza (e os orixás) aos quatro elementos (água, terra, fogo e ar). De acordo com este pensamento, os quatro elementos estão presentes em tudo, incluindo o ser humano que compartilha com os orixás e com a natureza uma essência em comum:

A importância da natureza para o candomblé é fundamental, „porque como os orixás são os representantes míticos de cada elemento da natureza‟, do fogo, da água, das folhas, do ar... O orixá está relacionado a tudo isso. A maioria dos rituais dentro do candomblé, eles só servem pra fortalecer, é uma forma de você estar em harmonia com a própria natureza. Quando você faz rito pra Oxum, você está fortalecendo a força do rio, não é? Você está restabelecendo, alimentando, „você está ao mesmo tempo se harmonizando com o seu elemento principal; se você for no caso filho de Oxum, você está se harmonizando com essa força, que é a força do rio, da água doce‟ (Pai Antenor/João Pessoa).2
Nesta perspectiva, a conexão adepto-natureza-orixá passa pelo pertencimento em comum a um dos quatro elementos. Embora esta divisão traga consigo alguns ecos das chamadas ciências herméticas (tais como a astrologia e a alquimia), ou das suas versões modernas difundidas pela Nova Era, essa associação é apresentada como parte do conhecimento “tradicional”, atualmente em processo de resgate, conforme nos explica este outro babalorixá:
Nós somos cultuadores desses elementos: fogo, terra, fogo e ar. São quatro. Até no „nosso calendário na Nigéria‟, o calendário nosso antes do calendário ocidental era feito com quatro dias. Cada dia representava um elemento: um dia representava a água, um dia representava o fogo; um dia representava o ar e outro dia representava a terra... Até o branco que nós usamos na sexta- feira é porque estamos utilizando o calendário ocidental, que é uma influência islâmica, porque se fosse acompanhar o dia do ar que é o dia que é representado para nós usarmos em homenagem a Oxalá, aí usaria na quinta (Pai Daniel/Recife).
Dos quatro elementos, um recebe maior destaque, a água. Este relevo nos fez recordar que Mãe Beata de Iemanjá, na saudação inicial do Seminário do PNT, apresentou uma versão até então para nós desconhecida do aforismo “kossi ewe, kossi orixá”, na qual é acrescentado um terceiro elemento, “omi” (água). Para esta ialorixá, a máxima verdadeira é “Omi Kozi, Ewê Kosi, Orixá Kozi”. Ou seja, para o orixá existir, e por conseqüência o candomblé, não depende apenas da folha, mas também da água, e note-se que, na sequência, a água vem em primeiro lugar.
Ao nos inquirimos sobre o que teria levado à ampliação do aforismo, pois como dissemos não localizamos essa forma ampliada em nenhum livro, e nem no campo do nosso estudo, achamos que pode estar relacionada às necessidades de dar ao candomblé uma compatibilidade maior com o tempo atual, torná-lo coerente com o discurso de “religião ecológica”, ampliando ao máximo a importância da natureza para a religião. Diz ela,
[...] há anos nos jogam o estigma de que as religiões de matriz africana são devastadoras da natureza. São pessoas que não têm o conhecimento; nada sabem, nada entendem... Existe um milenar provérbio Yorubá que diz “Omi Kozi, Ewê Kozi, Orixá Kozi”, que significa: “Sem água e sem folha, não existe Orixá”. Orixá é natureza. [...] Nós somos mais água, principalmente com os mananciais, com os rios, com o mar, com as cachoeiras... Nós somos mais Omi do que Eram; Omi é água, o Eram é a carne. E a água é responsável pela vida do ser humano.3
A fala parece bem ancorada no momento vivido. É a época em que se discute o problema da água, a ameaça de escassez em poucos anos a nível global, mas com forte repercussão local.
Ainda em relação aos quatro elementos, tal como vimos ocorrer com a água, a terra, como elemento distinto, parece também estar passando por um momento de evidência. Segundo Prandi4, isso pode ser percebido pelo recrudescimento do culto a um orixá razoavelmente desconhecido no Brasil, Onilé. Encontramos apenas uma referência a este orixá em João Pessoa, num terreiro de candomblé filiado ao Opo Afonjá da Bahia, onde a mãe de santo nos mostrou na frente do barracão um ilê-orixá destinado a Onilé. Vale, contudo, registrar que o orixá em pauta não é celebrado nos rituais do xirê, como também não possui filhos, o que denota a novidade do tema.
Numa segunda acepção e bem mais forte que a dos quatro elementos, a folha é a que mais se destaca. Nos depoimentos colhidos, a vinculação entre natureza e folhas tem centralidade no esquema representativo. Um fato interessante, ocorrido durante a pesquisa de campo, pode nos dar uma idéia da força dessa ligação. Informado sobre o objetivo da pesquisa um dos entrevistados declarou o seguinte, no momento em que o gravador foi ligado: “Antes de começar já que a pesquisa é sobre as folhas, aça era ewê., aça era um ewê...”5. Ao que tudo indica esta fala expressa de forma condensada um entendimento bastante difundido entre os adeptos no que diz respeito ao poder das folhas. Outro exemplo pode ser retirado do encontro realizado pela Prefeitura da Cidade do Recife em celebração ao Dia Mundial do Meio Ambiente. Abrindo o encontro, uma equede de candomblé de Recife, assim se expressou:
Hoje a gente vai dar início à oficina de meio ambiente que vai nos remeter ao conhecimento e o fortalecimento da nossa tradição dentro da folha. No primeiro momento vai ter uma fala sobre as ervas, as árvores (Equede Marta Serena/Recife).
Está (pressu)posto de que falar sobre a natureza é falar sobre as folhas e ervas e suas muitas utilizações dentro da religião, fato que será reforçado em todas as entrevistas, nas quais referências às folhas e ervas aparecem mais de 300 vezes.
A onipresença do elemento vegetal parece justificar-se tanto pela multiplicidade de formas pelas quais este é utilizado dentro da religião fato destacado em todos os depoimentos quanto pelo seu papel como o principal veículo de axé, como diz esta importante Mãe de Santo do Recife: “... para nós, o princípio de tudo é o axé de folha” (Mãe Eleonora). Enfim, por estes (e por outros) motivos o termo “folhas” aparece, ao longo das falas, como o sinônimo mais comum para a “natureza”.
A importância do elemento vegetal (com toda a elaborada classificação que estabelece as associações entre as plantas e os orixás) é atestada por vários estudiosos dos cultos afro- brasileiros. Prandi, citando Verger, resume bem o papel central das folhas ao dizer que:
(...) As plantas, trituradas em água, são usadas para lavar e sacralizar objetos rituais, para purificar a cabeça e o corpo dos sacerdotes nas etapas iniciáticas, para curar as doenças e afastar males de todas as origens. Mas, a folha ritual não é simplesmente a que está na natureza, mas aquela que sofre o poder transformador operado pela intervenção de Ossaim, cujas rezas e encantamentos proferidos pelo devoto propiciam a liberação do axé nelas contido.6
Do exposto até o momento, dois aspectos merecem uma reflexão: em primeiro lugar, o fato de que não se trata aqui de uma concepção animista de acordo com a qual a natureza possuiria poderes per se. Ao que tudo indica, embora haja um reconhecimento da energia concentrada na natureza, há também a percepção de que esta força só pode ser liberada através da intervenção humana (as rezas e os cantos) associada à vontade e ao poder da divindade. Nas falas, os verbos „atualizar‟, „ativar‟, „levantar‟, „acordar‟ são freqüentemente utilizados para descrever o sentido dessa intervenção mágico-ritual. Nesta perspectiva, a natureza aparece como o repositório de uma força „em potência‟ a ser despertada pelo ritual no qual as „folhas‟ desempenham um papel predominante.
É sabido também que as folhas fazem parte, juntamente com os orixás, de um sistema classificatório do mundo. A cada orixá corresponde um domínio deste (primeiramente natural, seguido pelo mundo sócio/cultural), os orixás são agrupados em classes: feminino/masculino; quente/frio; das águas; da terra; do ar; do fogo; caçador; pescador; da metalurgia; da guerra; da justiça etc. Mutatis mutandi, cada orixá tornou-se dono de um conjunto de folhas específicas que se ligam a eles por homologias quanto as suas características classificatórias. Abaixo, citamos o depoimento de um pai de santo de candomblé do Recife, ilustrando a complexidade e diversidade dos significados das folhas:
Então a gente vai buscar justamente na mata, na natureza, nos regatos, nas lagoas, a gente pega algumas ervas de Oxum como osibatá,7 algumas ervas de águas, o orô. Porque para cada Orixá, é tão interessante, as ervas tem uma simbologia. Então, digamos, os orixás iabás, geralmente as ervas, as folhas são perfumadas e muitas são da própria água realmente tirada. Já os orixás, digamos como Ogum, como Oxossi são orixás masculinos, então as ervas também simbolizam a masculinidade, são ervas compridas simbolizando o falo, é muito difícil encontrar pra os orixás folhas arredondadas, geralmente são pontiagudas também, então sempre a associação do orixá com o elemento folha, a própria folha identificante. Tem folhas de orixá macho que é considerado orixá da energia masculina e feminina que a própria folha tem o elemento dos dois elementos na folha. Tem folhas que são para o orixá Obaluaiê, parasitas, [...] que é uma folha que dá nas árvores agarradinha, a gente usa também aquela folha. Então cada folha ela tem uma ligação com o orixá, e ao mesmo tempo, que tem essa ligação ela identifica, a gente olha, tem folhas que sai um sumo vermelho, então são associadas a Iansã e a Xangô, são folhas quentes ou que às vezes pode até causar irritação na pele, são associadas aos orixás quentes, são associadas ao orixá como Exú, uma folha mais quente. Tem a folha do campo que chama ewé lara fun fun8 que é conhecida como a mamona, é uma folha também muito essencial no Orixá, a gente usa ela para quase tudo (Pai Cosme/Recife).
Nesta fala podemos perceber a riqueza de desdobramentos e significados que as folhas articulam. Uma densidade que os “quatro elementos” não possuem. Água, terra, fogo e ar não possuem a mesma versatilidade que as folhas dentro deste imaginário. Há uma diversidade de formas e relações entre as folhas e os demais componentes das religiões. Assim, “folha” assume uma aura de totalidade. Simbolicamente expande seus significados para outros significantes: matas, ervas, plantas, mato e até mesmo, a própria religião passa a ser designada como „folha‟, assim como também o orixá é folha, o axé é folha. A totalidade se traduz no seu poder multiplicador.
Um babalorixá nos falou da diversidade de gestos e de elementos originada pela diversidade das folhas (dentro do jogo de búzios), quantidade que se multiplica em progressão geométrica cuja razão é quatro. É interessante perceber como a quantidade de odus, ou seja, as diversas possibilidades de caminhos e destinos das pessoas estão diretamente relacionadas à diversidade das folhas, a sua quantidade, e neste sentido, “uma folha chama outra” e têm o papel de articular os elementos, pô-los em sintonia: o canto, o oriki, o oráculo, o odu, etc. A folha, portanto, é princípio de ordem; sobre ela se pronuncia todo tipo de ofó (encantação). Há uma linguagem das folhas integrando significados, imagens e sentidos, capaz de traduzir o mundo do candomblé: há folhas da riqueza, da saúde (o remédio que vem das folhas), da sanidade, da potência, do dinheiro, da vida; por outro lado, há também folhas da miséria, da dor, da doença, da tristeza, etc.9 Em suma, no candomblé tudo começa e termina com „folhas‟, e é esta onipotência/onipresença10 o que justifica o aforismo “kossi ewe, kossi orixá”, Mata‟ é outra manifestação também bastante recorrente, que pode ser explicada por várias razões. Uma das suas fontes é, sem dúvida, a idéia popular de que natureza diz respeito ao verde. Neste sentido, a mata está associada ao complexo semântico das folhas, uma vez que aquela constitui principalmente o lugar onde estas são colhidas. Outro aspecto que pode nos ajudar a compreender a importância da mata é o papel desempenhado pelas florestas no imaginário dos adeptos. De acordo com Prandi11 este seria um traço herdado das culturas agrícolas africanas, em particular dos povos iorubás, para quem a floresta tinha uma importância primordial.
Nesta perspectiva, podemos pensar que o termo „mata‟ aparece como uma representação da floresta, talvez a floresta possível dentro das condições da maioria das casas de culto, situadas na periferia dos centros urbanos. De qualquer modo, um indicador da importância dessa associação pode ser encontrado no fato de a palavra „mata‟ associada (ou apresentada como sinônimo de) à natureza aparecer mais ou menos 160 vezes nas falas dos adeptos; é importante também o fato de que a mata da qual se fala não é qualquer área verde, ela aparece qualificadamente como „virgem‟, „fechada‟, „preservada‟, „limpa‟, „mata mesmo‟, de certo modo idílica, caracterizada por ser, sobretudo, um lugar onde há pouca (ou nenhuma) presença humana. Ela representa o mundo não humano, domínio de outros poderes/potências com os quais o ser humano deve se relacionar com cuidado e respeito. É também o lugar onde se encontram os segredos, a ciência da cura e as respostas às questões que inquietam os homens. Por conta disso, penetrar na mata não é algo que pode ser feito por qualquer um ou de forma descuidada. A permissão é dada pelos orixás (apresentados de forma genérica ou personificados na figura de Ossaim) vistos como os donos da casa, aqueles a quem se deve pedir permissão. Na verdade, a relação entre a mata e os orixás (ou demais entidades) aparece de formas distintas no conjunto das falas analisadas. Em alguns casos, a mata é referida como sendo propriedade dos orixás, seu domínio, o lugar onde vivem e onde recebem as suas oferendas. Em outros, é dito que são as entidades que pertencem à mata, sendo seus guardiões. De qualquer forma, a mata é apresentada como um espaço ambivalente: lugar do perigo – “é o desconhecido” – e, também, lugar “do saber”. Dentre as muitas opiniões apresentadas pelos entrevistados sobre os „poderes‟ contidos na mata, uma delas chama particularmente a atenção por duas razões: a primeira, por apresentar uma reflexão elaborada sobre o impacto da degradação ambiental na relação entre o homem e os orixás; e a segunda, por contrastar essa situação com um tempo mítico no qual a relação homem-orixá-natureza seria mais próxima. É, portanto, em torno do binômio „proximidade x afastamento‟ que o entrevistado parece pensar a relação homem/natureza ou, neste caso, adepto/mata.
Outra significação que apareceu com freqüência nos depoimentos foi a percepção da natureza como o ciclo que une “vida-morte-vida”. Em vários momentos surge a idéia de que respeitar o ciclo é respeitar a natureza, sendo também visto como uma forma de assegurar a circulação do axé. É exatamente por inserir-se dentro dessa dinâmica de conservação- destruição que o candomblé pode ser pensado como uma religião ecológica:
O candomblé é ecológico porque a gente usa sempre o que vem da natureza, se a gente usa o animal, se a gente usa o vegetal e se a gente usa o mineral, a gente deposita de novo. Flores, frutas, mesmo que sejam os restos mortais dos animais, mas sempre em um local onde aquilo possa ser absorvido pela natureza (...) (Pai Bernardo/Recife).
Em destaque nesta fala está a idéia de circulação de energia. Em primeiro lugar, trata- se de algo visto com uma devolução, tal como traduz o ditado citado por outro entrevistado “o que vem da terra volta para a terra, o que é do mar volta para o mar, o que é da água volta para a água”. Esta obrigação de retribuir à natureza aquilo que ela oferta aparece também de outras maneiras ao longo das falas. Uma delas é a idéia do presente, da oferenda, como parte da dinâmica de reciprocidade, a contra-dádiva que responde à dádiva inicial ofertada pela natureza. Conforme argumenta Lévi-Strauss (baseado em Marcel Mauss) a reciprocidade se constitui o fundamento da relação social, vinculando os parceiros através da circulação continua de dádivas e contra-dádivas. Este sentido de vinculação aparece com freqüência entre os nossos entrevistados, uma vez que o „presente‟ é destinado ao orixá como parte regulamentar da troca entre a divindade e o adepto. Mais ainda, o cumprimento dessa obrigação de reciprocidade é visto por alguns como algo necessário à continuidade da própria natureza enquanto ciclo de vida.
Em segundo lugar, destaca-se a idéia de que a devolução da energia recebida da natureza é algo propiciado pela destruição de um determinado elemento, condição necessária para a sua utilização de um novo modo. Nos depoimentos, essa idéia se expressa, sobretudo, pela utilização dos verbos: „deteriorar‟, „decompor‟, „devolver‟, „retornar‟, „voltar‟, „assimilar‟, „depositar‟, „absorver‟, „enterrar‟, „reciclar‟, „consumir‟, „virar‟, „germinar‟, etc. 12 Todos eles apontando, implícita ou explicitamente, para a idéia de transformação. Merece destaque ainda, a utilização, neste mesmo sentido, do verbo „alimentar‟ trazendo mais uma vez a idéia da consumação como parte do processo de transformação, com uma diferença importante: aqui são os animais (os peixes do rio, os bichos da mata, os pássaros, etc.) que são vistos como o principal agente dessa transformação da vida em vida sob outra forma. Esse sentido de retorno, de volta à casa de origem, parece se fazer presente, inclusive, no que diz respeito ao ser humano, sendo, segundo nos foi dito, uma das razões pelas quais os adeptos do candomblé tenderiam a preferir serem enterrados no seio da terra.

Segunda questão: utilizar a Natureza


A máxima iorubana Kossi ewe, kossi orixá ilustra bem o papel de fornecedora que a natureza ocupa. A grande substância que ela oferece para as pessoas é o axé, e o veículo mais importante do axé é a folha. A religião manipula o que lhe é fornecido. O retorno à natureza ou aos deuses (para fechar o ciclo) é feito através de outros veículos: as frutas, minerais, e especialmente o sangue e outros elementos animais.

O utilitarismo que queremos dar relevo nesta seção pode ser muito bem sentido pela ubiqüidade e importância do aforismo iorubano mencionado linhas atrás, como também pelo não menos mencionado mito de Ossaim, orixá da folhas. Conta o mito que
Ossaim era o nome de um escravo que foi vendido a Orunmilá. Um dia ele foi à floresta e lá conheceu Aroni que sabia tudo sobre as plantas. Aroni, o gnomo de uma perna só, ficou amigo de Ossaim e ensinou-lhe todo o segredo das ervas. Um dia, Orunmilá, desejoso de fazer uma grande plantação, ordenou a Ossaim que roçasse o mato de suas terras. Diante de uma planta que curava dores, Ossaim exclamava: “esta não pode ser cortada, é a erva que cura as dores”. Diante de uma planta que curava hemorragias, dizia: “esta estanca o sangue, não deve ser cortada”. Em frente de uma planta que curava a febre, dizia: “esta também não, porque refresca o corpo”. E assim por diante. Orunmilá, que era um babalaô muito procurado por doentes, interessou-se então pelo poder curativo das plantas e ordenou que Ossaim ficasse junto dele nos momentos de consulta, que o ajudasse a curar os enfermos com o uso das ervas miraculosas. E assim Ossaim ajudava Orunmilá a receitar e acabou sendo conhecido como o grande médico que é.13
Por trás da determinação de preservar e respeitar as ervas encontra-se algum tipo de necessidade que o homem poderá vir a ter algum dia. Em última instância, o ato tem como fim o próprio ser humano, e neste sentido, aproxima-se de algumas concepções presentes dentro do próprio movimento ecológico que, em última instância está preocupado com o homem e sua sobrevivência. Assim, a atitude de respeitar e não destruir a natureza guia-se, sobretudo, pela preocupação com a utilidade que esta tem para os seres humanos. Esta utilidade, em muitas falas apareceu traduzida na expressão „remédio‟ e assemelhados:
Ossaim está em todos os lugares aqui e acolá, que é um deus chamado por quê? Porque ele nos dá a saúde, ele vai buscar a folha, ele vai buscar o "remédio", vai buscar o "medicamento" (Mãe Eleonora/Recife).
Podemos perceber que, na fala, "remédio" associa-se à cura, mas o seu significado é bem mais amplo. Segundo Barros14, na África "remédio" é sinônimo de feitiço e Ossaim, o deus das folhas, é um grande feiticeiro. Nos mitos, Ossaim está sempre vinculado a Orunmilá (o deus dos processos divinatórios). Um deles narra a disputa entre os dois por intermédio de seus filhos mais velhos: Remédio e Oferenda (Sacrifício), respectivamente. Na disputa, os dois são enterrados, no final, Oferenda vence, mas Remédio detentor de “muitos feitiços”, também “apareceu são e bem disposto”.
Não podemos dizer que a natureza é vista como uma “farmácia”. Ao que tudo indica, embora haja um reconhecimento da energia nela concentrada, há também, claramente, a percepção de que esta força só pode ser liberada através da intervenção humana (através das rezas e encantos ofó) associada à vontade e ao poder da divindade. O remédio-feitiço, portanto, precisa ser despertado pelo ofó (encantação), tal como ocorre com as folhas.
Se aceitarmos a classificação do candomblé (e das demais religiões afro-brasileiras) como “religião mágica”, tal como o define Prandi, podemos compreender melhor o caráter pragmático da relação. Para este autor o candomblé “no conjunto se aproxima mais das religiões mágicas e rituais, e, como religião de serviço, chega praticamente a se colar no tipo estrito de religião mágica”, na qual,
O sacerdócio e o cumprimento de prescrições rituais têm finalidade meramente utilitária de manipulação do mundo natural e não natural, de exercício de poder sobre forças e entidades sobrenaturais maléficas e demoníacas, de ataque e defesa em relação à ação do outro, que é sempre um inimigo em potencial, um oponente. 15
Sem dúvida, este aspecto de manipulação das forças cósmicas constitui aquilo que mais se destaca dos depoimentos dos nossos informantes ao se referirem às folhas. Ou seja, se as folhas se fazem presentes a cada momento da vida religiosa, é em grande parte por causa do seu poder de dar ao fiel aquilo que este deseja, como disse uma ialorixá de candomblé do Recife:
A folha tem esse poder de nos „dar tudo dobrado‟ porque você tinha uma folha, quando você rasga você diz: é de cinco, eu quero mais, eu quero pra mim. Aí não tem, mas eu „vou cantar‟ porque é muito importante, a gente também canta alguma que ..... eu lembro muito quando eu falo de Axé que eu morro de paixão: [...] „obedeça-me folha, folha obedeça-me‟ ou seja, o que eu quero pra meu filho Ebó, Axó: Eu quero que ele tenha uma boa roupa, eu quero que ele tenha uma boa saúde, eu quero que ele tenha uma boa casa, eu quero que ele tenha dinheiro (Mãe Eleonora/Recife).
A fala acima representa a concepção mágica do mundo na ritualística das religiões afro-brasileiras. Nela vemos tanto a crença na eficácia do ritual quanto a atuação do sacerdote como „mestre‟ dotado de poder sobre os elementos naturais (“Obedeça-me, folha!”). Poder que ele utiliza seja em benefício próprio, seja em benefício dos „filhos‟ e clientes da casa. Neste processo, conforme já destacamos, as folhas desempenham um papel primordial, mas ao lado delas também se fazem presente a água, as pedras e outros elementos naturais. Em última análise a necessidade de extrair dos elementos naturais a sua potência mágica, também fundamenta a necessidade de preservação da natureza, lição contida no mito de Ossaim.
A necessidade de simultaneamente „preservar‟ e „destruir/consumir‟, enquanto „dilema‟, aparece no ritual do sacrifício. Por isso mesmo, este se constitui um aspecto nodal da relação homem/natureza tal como é vivenciada entre os adeptos das religiões afro- brasileiras.
Em relação ao sacrifício, o primeiro aspecto a se destacar é a ausência do tema pelo menos espontaneamente nas reflexões elaboradas pelos nossos entrevistados. Ao serem indagados sobre a relação entre religião e natureza, tendem, inicialmente, a invocar as diferentes significações já analisadas (as folhas, as ervas, a mata, etc.), sob o pano de fundo do seguinte raciocínio: “o orixá é/está na natureza e nós somos adoradores dos orixás, somos, portanto, adoradores da natureza”. O animal não é mencionado nesse primeiro momento. Há vaga menção ao fato de que eles habitam a mata e ao papel de consumidores do material ali depositado na forma de oferendas, o que significa “um dizer implícito”, que eles também são natureza e participam do ciclo de transformação e circulação da energia ao qual nos referimos acima.
De modo geral, sintetizando o tema, os animais são inseridos na discussão como oferendas privilegiadas do sacrifício (portador da vida a ser oferecida ao orixá); agentes da transformação de uma forma de vida em outra (ao se alimentar dos restos da oferenda) e receptores da dádiva (“a gente tem que colocar na mata"). Sobre esse último aspecto, um entrevistado chegou a frisar, no caso de uma oferenda para Oxum, a necessidade de que os peixes se alimentem daquilo que é jogado no rio, interpretado, segundo ele, como a constatação de que a oferenda foi aceita.
Pelo exposto, vê-se que as diferentes formas de pensar a relação animal/natureza são articuladas em torno de um tema catalisador: o sacrifício. Tema que tende a ser silenciado, por causa da forma como a sociedade englobante o vê.
Por isso, o assunto sempre é tratado com cautela e há um esforço em esclarecer tanto o sentido ritual do sacrifício quanto a relação mantida com o animal durante o ato. Nesta perspectiva, a palavra „respeito‟ é bastante recorrente. Assim como frisamos com relação à entrada na mata e ao ato de colher as folhas, aqui também o „respeito‟ constitui uma condição essencial à realização dos rituais. O „respeito‟ é algo devido à vida que será extinta em benefício da comunidade e se expressa pelos cuidados dispensados aos animais, pelas cantigas entoadas em sua homenagem (solicitando a sua concordância com o holocausto) e pela seriedade/gravidade na condução da cerimônia. Como disse uma entrevistada, “o corte é uma coisa muito importante, o corte é uma vida”. Vida que deve ser cultuada e imolada com respeito.
É, portanto, em torno da vida que se estrutura o sacrifício e seu sentido. A alegação de que a prática do sacrifício diz respeito à vida e não à morte, tal como afirma a fala citada, se expressa de várias maneiras. Uma delas é a de que a carne do animal sacrificado transforma- se em alimento não apenas para a comunidade religiosa, mas para outras pessoas necessitadas que vivem em abrigos, asilos, ou mesmo para o entorno da casa de culto, sem mencionar os animais silvestres que se alimentam dos restos das oferendas. É dentro da dinâmica de liberação/transformação da energia que se insere o sacrifício. Trata-se do reconhecimento da necessidade de destruição de uma forma de vida em benefício de outras: a vida do animal é oferecida à divindade em troca de vida para a comunidade, ao filho de santo ou mesmo ao cliente que procura os serviços da casa. O sangue derramado pela vítima constitui a verdadeira oferenda dedicada à divindade que deve, em troca, prover o sacrificante com fortalecimento da sua energia, ou em termos mais corriqueiros: amor, saúde, dinheiro, emprego, etc. Temos aqui em atuação o princípio da reciprocidade, segundo o qual a dádiva ofertada obriga o receptor a uma contra-dádiva.
O animal, no sacrifício, por um lado, se constitui o substituto ideal do „homem‟ exatamente por sua semelhança com ele forma, carne, sangue, etc., por outro, se diferencia por não ser visto como “participando da essência divina”. Este papel privilegiado de „intermediário‟ entre o homem e os deuses constitui uma das razões pelas quais, de modo geral, o animal não aparece muito associado à divindade (qualidade do divino) dentro do panteão afro-brasileiro diferentemente do que ocorre com a „folha‟. Para cumprir a função de intermediação é necessário que a vítima se distinga, igualmente, do sacrificante e do deus. Enquanto dádiva, ela se interpõe entre ambos. Ela “os separa ao mesmo tempo em que os une: eles se aproximam sem se entregar inteiramente um ao outro”.16
No ritual, o sangue desempenha papel fundamental:
Dentro do candomblé o sangue, eu já disse assim: o sangue é vida, mas é uma vida tirando outra vida, como se explica isso? Tudo é um caminho, é um caminho, são caminhos e isso são caminhos da natureza. A pessoa nasce, cresce e morre por algum sentido. Então assim são os rituais africanos. „O Ejé, a simbologia do Ejé pra gente é vida, é através dessa troca de vida que tem força dentro do axé‟. Isso foi passado desde o início do mundo inclusive as imolações para o Deus, para o Pai. (...). O sangue, então seria um veículo, seria justamente o que liga uma coisa a outra. Eu não sei se é intercâmbio a palavra, mas seria uma coisa que liga o material ao espiritual. (Pai Cosme/Recife).
Em suma, no sacrifício, o sangue é o elemento principal da oblação e a sua propriedade fundamental é substituir o próprio sangue humano:
Então, isso tudo é pra pedir ao orixá misericórdia, pra pedir ao orixá que traga todas as benesses dele para a gente. Pra que isso não venha a acontecer dentro da nossa comunidade. „É tipo uma troca, a vida do animal pela vida da gente, até porque nossa religião, ela sacrifica animais, ela não sacrifica o homem‟ (Pai Antenor/João Pessoa).
O entrevistado também nos explicou que o sacrifício é comum a todas as religiões, é prova fundamental de fé e submissão aos deuses para se obter aquilo que se quer. Nesse processo de troca, o sangue é importantíssimo. Todas as religiões algum dia já fizeram sacrifícios humanos, inclusive a cristã (lembra que Abrãao teria sido exortado por Deus a oferecer-lhe Isaque seu filho em sacrifício, Gênesis, 22). Com esse exemplo justificou a utilização de animais no sacrifício para substituir o „homem‟, assim como o cordeiro substituiu a Isaque. Disse ainda que o próprio Deus ofereceu o seu único filho como vítima de sacrifício para salvar a humanidade, tendo sido este o último sacrifício de sangue na religião cristã, convertido posteriormente no simbolismo da eucaristia.
Vale ainda destacar que o sangue não é visto, especialmente no candomblé, apenas como animal:
E assim, só se fala do sacrifício do ejé vermelho, do sangue dos animais. Mas existem ainda várias outras formas de ejés. Existe o ejé verde, que é o  sangue das folhas, que nós amasseramos, aquele é o sangue verde do candomblé, as folhas tem sangue, tem vida; existe o ejé branco que é de um animal chamado ìgbin (caracol), que é o escargô, que se come, ele tem o ejé branco; existe o ejé mineral, que é o ejé dos cristais, dos ferros, dos metais. Existem várias formas de ejés. Pra compor uma cabeça com boa energia, é necessário que se tenha, que se use e que se saiba usar. (Pai Jomacir/João Pessoa).
Nesta fala, percebemos que há uma certa dose de racionalização dos temas abordados, coisa que está se tornando recorrente entre os sacerdotes mais novos (no santo e na idade), cuja fonte de informação e formação vem deixando de ser exclusivamente a oralidade e a convivência nos terreiros, e passando a se orientar para publicações acadêmicas e de divulgação, hoje dispersas e abundantes em livros e no ciberespaço. Veja por exemplo, o caso da tipologia dos sangues: mineral, vegetal e animal (preto, verde, branco, vermelho), citado nesta fala, segundo alguns autores, é uma informação que começa a ser divulgada nos terreiros, especialmente os de candomblé, a partir dos estudos de Juana Elbein dos Santos (Os nagô e a morte), publicado pela primeira vez em 1975. Nesse livro, a autora “parte de uma base empírica oferecida por suas pesquisas no Brasil e na África, e com uma reinterpretação apoiada na etnografia, cria, no papel, uma religião que não se pode encontrar nem no Brasil nem na África, propondo para cada dimensão ritual da religião que ela reconstitui significados que procuram dar às partes o sentido de um todo, dando-se à religião uma forma acabada que ela não tem”.17
Nem todos os adeptos (pais, mães de santo ou filhos) utilizam a tipologia dos sangues, isso é característico daqueles que, de alguma forma, entraram em contato com essa religião do papel (como disse Prandi).
Em suma, parece que aos animais, na representação de natureza para as religiões afro- brasileiras, é reservado o lugar de vítimas potenciais da imolação, cujo valor maior está no sangue que podem oferecer enquanto representante de vida/axé a ser ofertado aos deuses/entidades no esquema contratual do dom/contradom. Outra forma de interpretá-los é a do bode expiatório, presente nos chamados rituais de troca de cabeça, nos quais se transfere todo tipo de mazelas (físicas, espirituais, demandas etc.) de uma pessoa para um animal, que em seguida é solto ou destruído por fogo. Suas posições revelam o grau de utilitarismo a que estão submetidos, identificam-se com meios que levam à satisfação de alguma necessidade humana. São substitutos em potencial do ser humano. Mas, ao contrário de se chegar a uma conclusão que meramente instrumentaliza o animal, vemos que as posições que ocupam, relevam o caráter de dependência do homem a ele e à natureza de modo geral, integrando-o no ciclo da vida e da morte. Não é à toa que os rituais de imolação são profundamente marcados pelo respeito e veneração, demonstrando meridianamente a submissão e vulnerabilidade dos sacrificantes em relação às vítimas.

Finalizando

A relação entre as religiões afro-brasileiras e a natureza, meridianamente não deixa dúvidas de que é muito importante e forte, pois está marcada pela necessidade que os terreiros têm da natureza como parte integrante de seu universo, dos rituais e da própria identidade dos seus deuses, o que gera um sentimento de respeito, dependência, integração, e ao mesmo tempo, de submissão para com ela. Por outro lado, a relação entre estas religiões e uma “consciência ecológica” não é tão óbvia quanto à primeira relação, pois como diz Santos,18 “comungar de uma tradição religiosa que professa seu respeito às forças da natureza, nem sempre representa dispor já, de uma consciência ambiental”, fato reconhecido por muitos dos entrevistados. Então, o discurso que coloca o candomblé como uma religião intrinsecamente preservacionista, carece de maior reflexão. Primeiramente, tudo indica que tal discurso não teve origem nos processos espontâneos das próprias denominações religiosas afro-brasileiras, apresentando-se mais como uma demanda externa, que, entretanto, devido à afinidade dessas denominações com a natureza e a outros motivos, como por exemplo, a busca por reconhecimento e legitimidade foi rapidamente incorporado às suas redes discursivas, sem, contudo, repercutir imediatamente nas práticas do cotidiano religioso. Assim, tendemos a interpretá-lo como algo ainda muito recente, como observou um dos pais de santo.19 O discurso da ecologia, no campo afro-brasileiro, se mostra contemporâneo do “discurso da tradição” e de outros discursos que têm procurado afirmar o candomblé como religião que busca legitimidade e reconhecimento na sociedade.

Por último, apresentamos um esquema que articula os elementos observados e discutidos sobre os significados da natureza para as religiões afro-brasileiras, representando a lógica interpretativa que usamos na argumentação:

ESQUEMA SÍNTESE DA REPRESENTAÇÃO DE NATUREZA

Na esfera mais interna, temos o núcleo duro da representação de natureza, cujo centro são as "folhas", ladeadas pelo "axé" e pelos "orixás", compondo um bloco coeso; na intermediária, aprecem os elementos e significados fortes relacionados à religião (é a esfera das religiões afro-brasileiras) e na esfera exterior, temos os elementos que apesar de fazerem parte da natureza, estão mais distante, é a esfera da animalidade, sendo a humanidade sua manifestação mais complexa. Todos os elementos estão relacionados entre si, e é a "folha" o principal elemento mediador.

Notas

1 Pesquisa financiada pelo CNPq.
2 Os nomes são fictícios.
3 Discurso de boas vindas no I Seminário Educação, Cultura e Justiça Ambiental, realizado no Rio de Janeiro em 2006. In ANAIS DO I SEMINÁRIO EDUCAÇÃO, CULTURA E JUSTIÇA AMBIENTAL: meio ambiente e espaços sagrados no contexto das unidades de conservação. Rio de Janeiro, 2006, mimeo. (no prelo).
4 PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: orixás na alma brasileira. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p. 117. 5 As palavras foram grafadas de acordo com o entendimento da pronúncia.
6 VERGER, 1995 apud PRANDI, Op. cit., p. 109-10 grifos nossos.
7 Correção da palavra feita com base no livro: BARROS, José Flávio Pessoa de. O segredo das folhas: sistema de classificação de vegetais no candomblé jêje-nagô do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas/UERJ, 1993.

8 Correção na escrita feita com base na obra: VERGER, Pierre. Ewé: o uso das plantas na sociedade ioruba. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
9 Verger, Op. Cit., apresenta 447 „receitas‟ e efó correspondentes destinados a criar e solucionar problemas humanos nas mais variadas esferas. Todas realizadas a partir de folhas.

10 Ver Barros, Op. Cit., pg. 37 e 43.
11 Idem, p. 110.
12 Vale apontar que a soma dos significados dos verbos em questão indica um parentesco semântico com verbos que o discurso ecológico colocou em voga. A idéia central de retorno à natureza para que esta possa processar e reincorporar em si algo, ancora-se na idéia de ciclo ecossistêmico, biodegradabilidade, entre outros conceitos do movimento ecológico. Há uma intertextualidade entre as „tradições‟ afro-brasileiras e o discurso ecológico.
13 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 152.
14 Op. Cit., p. 48-51.
15 PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do axé: sociologia das religiões afro-brasileiras. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 30.
16 MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cossac Naify, 2005, p.106.
17 PRANDI, 1996, Op. Cit., p. 30-1.
18 SANTOS, Jaime Pacheco dos. “Práticas religiosas, meio ambiente e dignidade” In Anais do I Seminário Educação, Cultura e Justiça Ambiental: meio ambiente e espaços sagrados no contexto das unidades de conservação. Rio de Janeiro, 2006, mimeo, (no prelo), p. 106.
19 Eis trechos das falas:
“O cuidado com esses locais é uma coisa recente, essa conscientização. Na verdade alguns anos atrás, eu me lembro na casa que eu participava não se tinha muito não, sabe? Se chegava, se jogava, ia-se embora e pronto. De um tempo para cá eu sinto que a coisa piorou, por quê? Porque tem uma coisa chamada plástico. Quando eu era menino o pão vinha em sacola de papel. Hoje em dia o que é que se faz? Pega um monte de sacola do Bompreço bota o ebó dentro, amarra, o povo não canta mais nem para ebó, joga em qualquer canto, quer dizer, aquilo não se decompõe junto à natureza, aquilo não vira o humus, aquilo não se mistura na terra, está retido dentro de um saco. E a gente não deve ser hipócrita e vocês sabem que a maioria das casas faz isso mesmo não é?” [...] “Então eu acho assim, até os anos 70 não se tinha muito essa consciência de resistência no culto, [de dizer] assim „vamos preservar‟” (Pai Gumercindo/Recife).

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