quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Mujica na Assembléia da ONU: “Sim, é possível uma humanidade melhor”

Este vídeo vale cada minuto.



Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.
Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.
Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.
Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.
Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.
Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina pátria de todos que está se formando.
Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.
Carrego o dever de lutar por pátria para todos.
Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e carrego o dever de lutar por tolerância, a tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferências e discrepâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de acordo.
A tolerância é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos diferentes.
O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.
Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão.
O certo, hoje, é que, para gastar e enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para poder viver.
Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.
Prometemos uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.
O pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.
Civilização contra tempo livre que não é pago, que não se pode comprar, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.
Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.
Cabe se fazer esta pergunta, ouvimos da biologia que defende a vida pela vida, como causa superior, e a suplantamos com o consumismo funcional à acumulação.
A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.
Todavia, as campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças, e sua psicologia para influir sobre os adultos e ter, assim, um território assegurado no futuro. Sobram provas de essas tecnologias bastante abomináveis que, por vezes, conduzem a frustrações e mais.
O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.
Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.
Como se isto fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está meio prisioneiro na caixa dos grandes bancos. No fundo, são o vértice do poder mundial. Mais claro, cremos que o mundo requer a gritos regras globais que respeitem os avanços da ciência, que abunda. Mas não é a ciência que governa o mundo. Se precisa, por exemplo, uma larga agenda de definições, quantas horas de trabalho e toda a terra, como convergem as moedas, como se financia a luta global pela água e contra os desertos.
Como se recicla e se pressiona contra o aquecimento global. Quais são os limites de cada grande questão humana. Seria imperioso conseguir consenso planetário para desatar a solidariedade com os mais oprimidos, castigar impositivamente o esbanjamento e a especulação. Mobilizar as grandes economias não para criar descartáveis com obsolescência calculada, mas bens úteis, sem fidelidade, para ajudar a levantar os pobres do mundo. Bens úteis contra a pobreza mundial. Mil vezes mais rentável que fazer guerras. Virar um neo-keynesianismo útil, de escala planetária, para abolir as vergonhas mais flagrantes deste mundo.
Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…
Precisamos sim mascar muito o velho e o eterno da vida humana junto da ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para enriquecer; com eles, com os homens de ciência da mão, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos para o mundo inteiro. Nem os Estados nacionais grandes, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano. Sim, a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, ali está a fonte. Essa ciência que não apetece o lucro, mas que mira o por vir e nos diz coisas que não escutamos. Quantos anos faz que nos disseram coisas que não entendemos? Creio que se deve convocar a inteligência ao comando da nave acima da terra, coisas assim e coisas que não posso desenvolver nos parecem impossíveis, mas requeririam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.
Obviamente, não somos tão iludidos, nada disso acontecerá, nem coisas parecidas. Nos restam muitos sacrifícios inúteis daqui para diante, muitos remendos de consciência sem enfrentar as causas. Hoje, o mundo é incapaz de criar regras planetárias para a globalização e isso é pela enfraquecimento da alta política, isso que se ocupa de todo. Por último, vamos assistir ao refúgio de acordos mais ou menos “reclamáveis”, que vão plantear um comércio interno livre, mas que, no fundo, terminarão construindo parapeitos protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta. A sua vez, crescerão ramos industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e a melhorar o meio ambiente. Assim vamos nos consolar por um tempo, estaremos entretidos e, naturalmente, continuará a parecer que a acumulação é boa, para a alegria do sistema financeiro.
Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de conseqüência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.
Por que digo isto? São dados, nada mais. O certo é que a população quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990, aproximadamente a cada seis anos o comércio mundial duplica. Poderíamos seguir anotando dados que estabelecem a marcha da globalização. O que está acontecendo conosco? Entramos em outra época aceleradamente, mas com políticos, enfeites culturais, partidos e jovens, todos velhos ante a pavorosa acumulação de mudanças que nem sequer podemos registrar. Não podemos manejar a globalização porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é uma limitação cultural ou se estamos chegando a nossos limites biológicos.
Nossa época é portentosamente revolucionária como não conheceu a história da humanidade. Mas não tem condução consciente, ou ao menos condução simplesmente instintiva. Muito menos, todavia, condução política organizada, porque nem se quer tivemos filosofia precursora ante a velocidade das mudanças que se acumularam.
A cobiça, tão negativa e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época e nosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismo nebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história, e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.
Porque se há uma característica deste bichinho humano é a de que é um conquistador antropológico.
Parece que as coisas tomam autonomia e essas coisas subjugam os homens. De um lado a outro, sobram ativos para vislumbrar tudo isso e para vislumbrar o rombo. Mas é impossível para nós coletivizar decisões globais por esse todo. A cobiça individual triunfou grandemente sobre a cobiça superior da espécie. Aclaremos: o que é “tudo”, essa palavra simples, menos opinável e mais evidente? Em nosso Ocidente, particularmente, porque daqui viemos, embora tenhamos vindo do sul, as repúblicas que nasceram para afirmas que os homens são iguais, que ninguém é mais que ninguém, que os governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento da gente que anda pelas ruas, do povo comum.
Não foram as repúblicas criadas para vegetar, mas ao contrário, para serem um grito na história, para fazer funcionais as vidas dos próprios povos e, por tanto, as repúblicas que devem às maiorias e devem lutar pela promoção das maiorias.
Seja o que for, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura, por classismo dominador, talvez pela cultura consumista que rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver diário que exclui, que se distância do homem da rua.
Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os gobernos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida.
A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, amassam o que têm de melhor as repúblicas: que ninguém é mais que ninguém. O jogo desse e de outros fatores nos retém na pré-história. E, hoje, é impossível renunciar à guerra cuando a política fracassa. Assim, se estrangula a economia, esbanjamos recursos.
Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.
Este processo, do qual não podemos sair, é cego. Assegura ódio e fanatismo, desconfiança, fonte de novas guerras e, isso também, esbanjamento de fortunas. Eu sei que é muito fácil, poeticamente, autocriticarmo-nos pessoalmente. E creio que seria uma inocência neste mundo plantear que há recursos para economizar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível, novamente, se fôssemos capazes de exercitar acordos mundiais e prevenções mundiais de políticas planetárias que nos garantissem a paz e que a dessem para os mais fracos, garantia que não temos. Aí haveria enormes recursos para deslocar e solucionar as maiores vergonhas que pairam sobre a Terra. Mas basta uma pergunta: nesta humanidade, hoje, onde se iria sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada qual esconde armas de acordo com sua magnitude, e aqui estamos, porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos.
As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.
Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas, pior ainda, desarraigam-na da democracia no sentido planetário porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente. E, então, remendamos doenças ali onde há eclosão, tudo como agrada a algumas das grandes potências. Os demais olham de longe. Não existimos.
Amigos, creio que é muito difícil inventar uma força pior que nacionalismo chovinista das grandes potências. A força é que liberta os fracos. O nacionalismo, tão pai dos processos de descolonização, formidável para os fracos, se transforma em uma ferramenta opressora nas mãos dos fortes e, nos últimos 200 anos, tivemos exemplos disso por toda a parte.
A ONU, nossa ONU, enlanguece, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e, sobretudo, de democracia para o mundo mais fraco que constitui a maioria esmagadora do planeta. Mostro um pequeno exemplo, pequenino. Nosso pequeno país tem, em termos absolutos, a maior quantidade de soldados em missões de paz em todos os países da América Latina. E ali estamos, onde nos pedem que estejamos. Mas somos pequenos, fracos. Onde se repartem os recursos e se tomam as decisões, não entramos nem para servir o café. No mais profundo de nosso coração, existe um enorme anseio de ajudar para que o homem saia da pré-história. Eu defino que o homem, enquanto viver em clima de guerra, está na pré-história, apesar dos muitos artefatos que possa construir.
Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra. No entanto, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais que comecem a governar nossa história e superar, passo a passo, as ameaças à vida. A espécie como tal deveria ter um governo para a humanidade que superasse o individualismo e primasse por recriar cabeças políticas que acudam ao caminho da ciência, e não apenas aos interesses imediatos que nos governam e nos afogam.
Paralelamente, devemos entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem, estão neste depredador esbanjamento de nossa civilização.
Há poucos dias, fizeram na Califórnia, em um corpo de bombeiros, uma homenagem a uma lâmpada elétrica que está acesa há cem anos. Cem anos que está acesa, amigo! Quantos milhões de dólares nos tiraram dos bolsos fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem, comprem e comprem.
Mas esta globalização de olhar para todo o planeta e para toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É o que nos requer a história. Toda a base material mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se não houvesse acontecido nada e, em vez de governarem a civilização, deixam que ela nos governe. Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. Impossível aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.
O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.
Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.
Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos na causa profundas, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que rouba tempo mal gasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso “nós”.
Obrigado.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Prof. Maria Elise Rivas na Universidade Federal do ABC!




Pai Rivas convida a todos para evento onde a Sacerdotisa Yamaracyê, Maria Elise Rivas, representará as religiões Afro-brasileiras: 


Prof. Maria Elise Rivas - FTU
"Finalmente, gostaríamos de estender um convite a todos. Na próxima quarta-feira, dia 25 de setembro, Mãe Maria Elise Rivas, iniciada por nós, representará as religiões afro-brasileiras na Universidade Federal do ABC, apresentando a visão das mesmas com relação aos aspectos sexuais e de gênero na sociedade contemporânea. Nossa filha de santo estará nessa mesa de debates, intitulada: Diálogo sobre o estado Laico, gênero
e diversidade sexual no campo da Fé e das religiões, junto com outras lideranças religiosas (de outras confessionalidades) discutindo uma temática de suma importância e que, reflete o que acabamos de apresentar no texto, a necessidade de uma educação voltada para a diversidade. O evento será na Rua da Abolição s/no, Santa Terezinha, Santo André, das 19 às 21h. Haverá emissão de certificados para participantes.
Axé!" 

http://sacerdotemedico.blogspot.com.br/2013/09/educacao-nas-religioes-afro-brasileiras.html

Exu: Guardião do Destino, Vencedor da Morte. Convite à toda comunidade Afro-brasileira.


Esta é uma oportunidade ímpar de encontrar num mesmo terreiro, expressões da diversidade existente na Umbanda. Nos últimos eventos realizados, centenas de terreiros reunidos mostraram a riqueza de nossa religião.
E ainda teremos a oportunidade de participar do IV Congresso Internacional de Sacerdotes e Sacerdotisas das Religiões Afro-brasileiras, momento onde sacerdotes do mundo inteiro estarão presentes.
Não percam esta oportunidade!

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Stela Guedes Caputo - Iniciação

Stela Guedes Caputo Loguncy
Eu não tenho leucemia. Não peguei piolho. Não passei um produto na cabeça que fez meu cabelo cair. Fui raspada. Eu me iniciei no candomblé por escolha e por amor depois de uma vida dedicada à pesquisa de suas crianças. "Amada no amado transformada", sou candomblecista. Filha, com o coração transbordado em honras, de Daniel ty Yemonjá, do Ilè Asé Omi Laare Ìyá Sagbá, em Santa Cruz da Serra, Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Durante mais de 20 anos ouvi essas respostas de crianças e jovens candomblecistas que, ao serem perguntadas do porquê rasparam a cabeça, inventavam e inventam maneiras de menos sofrer. Muitos adultos também precisam ocultar seu amor para permanecerem em empregos ou conquistarem um. Para serem aceitos, às vezes, em sua própria família e até por "amigos". Não significa que sejam pessoas fracas, gostem menos dos Orixás, ou de seus terreiros. O problema não está nelas. O problema está nessa sociedade racista, hipócrita, preconceituosa e nada nada laica. Sonho com um mundo em que um dia todos possam viver e publicizar seu amor, seus modos de acreditar ou não acreditar, seus modos de ser. Sonho e luto por uma sociedade de verdade laica. Por uma escola pública laica e sem Ensino Religioso que aumenta, todos os dias, a discriminação de nossas crianças e jovens de terreiros. (Stela Guedes Caputo - Dofonitinha de Lógunède - professora do Programa de Pós-Graduação em Educação - PROPED/UERJ).Foto: Flávio Mota.


Dad Janki - a mente mais estável do mundo - Guardiã do Planeta



DADI JANKI - A MENTE MAIS ESTÁVEL DO MUNDO


Uma ioguina indiana, DADI JANKI, de 86 anos, foi considerada pelo Instituto de Pesquisa Médica e Cientifica da Universidade do Texas, como a "mente mais estável do mundo" porque, mesmo testada em situações tensas e perigosas, seu eletroencefalograma marcou a presença constante de ondas delta, as ondas mais positivas e lentas produzidas pela atividade cerebral.

Ela recebeu da ONU o título, muito raro de ser concedido, de Guardiã do Planeta, por seu trabalho em prol de mentes mais livres e pacíficas.

Quando lhe perguntaram, em sua visita a São Paulo, a receita de uma mente tão tranquila e sem pesos, ela respondeu:

"Muito amor no coração por todos e nenhum apego por ninguém, tentar não prejudicar pessoa alguma minimamente e eliminar da mente qualquer pensamento negativo, fazendo um exercício diário e ter a certeza de que não estamos aqui à toa, mas para cumprir o destino da evolução. Que somos caminhantes, sem dependências ou estabilidades. Quem não percebe isso se torna escravo do
desnecessário e polui a mente".

Em 1978, Dadi Janki foi submetida a um teste na Universidade do Texas, nos Estados Unidos, quando então se tornou conhecida como "a mente mais estável do mundo" (suas ondas cerebrais não se alteram mesmo em situações extremas).

"A maravilha é que, mesmo não entendendo inglês, consegui dar as respostas certas", diz.

Hoje, aos 86 anos, 60 deles dedicados ao estudo espiritual e à prática da meditação, Dadi é só tranqüilidade e paz. Co-diretora mundial da Brahma Kumaris - universidade espiritual com sede na Índia e mais de 5 mil centros pelo mundo -, integrante do grupo Guardiões da Sabedoria e criadora da Fundação Janki de Pesquisas para Saúde Global, em Londres, ela nos recebeu vestindo branco por dentro e por fora, sem solenidades, sem as vaidades comuns à maioria das mulheres. Seu discurso encanta pela pureza e ensina que as mudanças possíveis ao mundo começam no coração de cada pessoa.

- Por que tanta gente está buscando uma vida simples?

- Vivemos com muitas demandas de consumo. Eu quero isto, eu quero aquilo, aquilo outro e assim por diante. E todo mundo tem muitas demandas e expectativas. Se vivemos ao sabor das demandas externas, tudo o que conseguimos ver em termos de reconhecimento da personalidade humana é o que aparece na superfície, o que é artificial. E vida simples significa vida
real.

Algumas pessoas pensam que a necessidade da vida é possuir coisas, quando, na verdade, o que realmente importa é possuir valores espirituais. Portanto, quando reafirmamos nossa vida em propósitos de paz, felicidade e amor, caminhamos para a felicidade verdadeira.

A conquista de uma vida simples permite que a espiritualidade se desenvolva facilmente. E espiritualidade significa eu usar o meu tempo, o meu dinheiro e a minha energia no caminho do bem.

- E de que maneira podemos seguir esse caminho na prática, levando em conta as dificuldades do dia-a-dia?

- Existem três aspectos importantes para o entendimento do que proponho aqui, do que estamos levando adiante com o conhecimento.

a) O primeiro passo é empreender a busca, porque quando faço isso reconheço os territórios internos, em termos de qualidade dos pensamentos, e entendo o que pode ser feito para mudar.

b) Segundo, tenho de conhecer a Deus, ser capaz de ter um relacionamento com o divino, de maneira a estar pronto para receber de Deus o tesouro da paz.

c) Terceiro, eu também preciso entender os movimentos de calma e de ação, assim como o curso e os efeitos de minhas ações. Se eu puder entender essas três coisas, então certamente terei paz verdadeira.

- A senhora vive com pouco?

- Posso viver muito bem com três conjuntos de roupas: uma para tudo, outra para alternar na lavagem, uma terceira guardada. Às vezes, quando visito alguém, as pessoas me chamam para mostrar o número de roupas que elas têm, a quantidade de sapatos, as jóias. Eu sinto compaixão por elas, porque seu intelecto certamente está disperso. Todos esses apelos externos nos distraem do real propósito da vida.

- Essa desconexão com o real complica também nossos relacionamentos?

- Sim, as demandas externas distanciam as pessoas do que entendemos como qualidade em um relacionamento. É o que deteriora a família, as amizades e consagra o egoísmo no lugar da verdade. Quando, enfim, complicamos muito a vida, fica difícil tomarmos conta de nós mesmos e, mais ainda, não há como
cuidar devidamente de nossos relacionamentos.

Bem, eu posso mostrar, com a minha vida, de que maneira é possível alcançar a felicidade e, assim, os outros têm uma referência de como conseguir isso também. Com uma vida simples, posso dar atenção aos outros, cooperar com os outros, porque quando meu coração é honesto, ele se torna grande, generoso.

- É possível manter-se centrado mesmo com o turbilhão de informações produzido por jornais, revistas e televisão?

- Eu prefiro viver longe desse fluxo. Porque, se sabe, isso acaba virando um vício. As pessoas acreditam que, lendo jornais ou assistindo TV, estejam apenas buscando informações sobre o que acontece no mundo. Mas, na verdade, tudo isso produz uma grande quantidade de distrações.

O cinema, da mesma forma, difunde muitos e muitos maus hábitos. Assim, fica muito difícil, por exemplo, manter uma vida mais contemplativa, pautada na prática da meditação. A natureza humana é muito suscetível.

Somos freqüentemente afetados pelo mal. E quase sempre a influência do mal ocorre de maneira muito rápida. Se eu, de fato, quiser me tornar um ser humano em sua plenitude, se esse é meu propósito, devo procurar caminhos diferentes, que não me façam perder tempo e energia. Ideias assim são sempre muito inspiradoras. Mas parece um tanto difícil conseguir isso.

A verdade é que há muitos males no mundo de hoje e creio que é mesmo hora de pararmos com isso. Eu tenho o alegre objetivo de, primeiro, fazer da minha vida uma boa vida e manter a mim mesma livre de todas as influências de negatividade do mundo. E há muitas pessoas criando uma vida boa como esta. Gente do mundo todo está reconhecendo que é por meio da espiritualidade que se pode alcançar uma vida plena.

- Vivemos tempos um tanto incertos. Podemos acreditar num bom destino para a humanidade?

- Sim, eu acredito que o futuro será bom. Há pessoas buscando uma vida sensata, uma vida simples, e elas servirão de inspiração para os outros, em favor do mundo. E tudo o que é exigido é uma transformação interna, de maneira que possamos ter bons sentimentos, sem nos colocarmos negativamente contra quem quer que seja. Basta que não tenhamos maus sentimentos, que exercitemos a aceitação dos outros, disseminando paz e felicidade.

- É preciso tornar-se um iogue para incorporar essa atitude?

- Não necessariamente. Todos aqueles que, através da observação contínua de si mesmos, e através da meditação, experienciam um relacionamento autêntico com Deus, podem se tornar as estrelas brilhantes que iluminam o mundo.

Eu acredito que se todos seguirmos juntos assim, poderemos criar o céu aqui na Terra. Mas, primeiro, teremos de criar o céu em nossas mentes. Porque tudo o que acontece neste mundo começa antes no coração dos homens.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Discurso de posse de Mãe Stella de Oxóssi na Cadeira nº 33 da Academia de Letras da Bahia


Mãe Stella é a primeira sacerdotiza do culto afro no Brasil a ocupar uma cadeira na Academia de Letras. O Fato histórico aconteceu no último dia 12 de setembro de 2013.

Gostaria muito de iniciar meu discurso de posse nesta essa venerável Academia de Letras, dirigindo-me a todos, indistintamente, chamando-os de amigos. Entretanto, fui educada por uma religião que tem na hierarquia a sua base de resistência, o que coincide com a tradicionalidade desta Academia. Sendo assim, inicio este discurso saudando as autoridades presentes ou representadas, sentindo que estou saudando a todos que aqui vieram para engrandecer esta cerimônia
Em 1910, Mãe Aninha fundou, em Salvador, na Bahia, o terreiro de candomblé Ilé Àÿç Opo Afonjá, hoje mundialmente conhecido e respeitado. Mulher com a cabeça muito além de seu tempo, ela costumava dizer que queria ver seus filhos com anel no dedo servindo a ßàngó: oríÿa para quem consagrou sua cabeça e patrono da Casa de Culto aos Oríÿa que criou, mas que deixou de herança para todos nós, seus descendentes espirituais. 

Se a cabeça de Mãe Aninha foi consagrada; sua língua ganhou axé, ganhou força. Sua fala é uma sentença que seus filhos espirituais procuram obedecer e cumprir, como manda a sabedoria ancestral. Foi isso que também eu fiz, tanto que hoje me encontro aqui, na ilustre Academia de Letras da Bahia para ser empossada na cadeira 33. A sentença de mãe Aninha é mais profunda do que normalmente se costuma interpretar: receber um anel é símbolo de aceitação de um compromisso. A vanguardista senhora desejava que seus descendentes se comprometessem com as causas sociais e espirituais. Desejo de Mãe Aninha que se tornou de todas as iyáloríÿa que a sucederam. Esse também é meu desejo: comprometer-me com tudo que assumo, seja no âmbito social, seja no âmbito espiritual. 


Quando fui iniciada para o oríÿa Õÿösi, pelas mãos de Mãe Senhora, uma das filhas diletas de Mãe Aninha, eu tinha apenas catorze anos de idade. Em 1939, uma pessoa com essa idade era uma criança, que apenas obedecia a ordens, sem questionar o que lhe mandavam fazer. Se minha cabeça física sentia tudo aquilo como uma grande brincadeira, minha cabeça espiritual entendia que eu estava me comprometendo com algo muito sério. Ao ser iniciada, consagrei-me a Õÿösi. Tinha, então, compromisso com essa divindade, com minha mãe de santo, de saudosa memória, e com toda família Opo Afonjá. Meu compromisso não foi selado com um anel. Ele foi selado com correntes fininhas, que simbolizam elos de uma grande corrente que une o Àiyé e o Õrun, os homens e os deuses, o profano e o sagrado. Eu carregava elos de todas as cores: um arco-íris, uma ponte que me fazia transitar, ir e vir, da Terra ao Céu e do Céu à Terra. Em minha inocência, eu não entendia que aquelas correntes fininhas comunicavam aos deuses que eu era ainda um elo frágil, que precisava de energia, de àÿç, para me tornar um elo forte, capaz de segurar muitos outros elos.


Foi assim que aos 51 anos de idade fui escolhida pelos búzios, consequentemente, pelos deuses, para ser iyáloríÿa – mãe de oríÿa, aquela que dá nascimento à essência sagrada de algumas pessoas. Minhas guias fininhas foram substituídas por grossas, grossíssimas guias. Eu já não tinha a inocência dos catorze anos e pude compreender que eu passava a ser um forte elo, sobre o qual se esperava que fosse capaz de segurar e apoiar todos aqueles que buscassem força para atingir degraus mais elevados na existência humana. Uma mãe, no colo de quem muitos buscam conforto, consolo e encantamentos, porque não dizer feitiços, para facilitar a caminhada por este planeta. Ninguém é empossada iyáloríÿa antes de sentar na cadeira especialmente preparada para este mister. Corrente e cadeira, objetos de grande valor simbólico tanto para a religião que pratico – o candomblé, quanto para a Academia de letras na qual agora sou empossada.


Hoje, aos oitenta e oito anos de idade, estou eu recebendo, outra vez, uma corrente, que segura uma linda medalha, e também mais uma cadeira. A medalha me faz lembrar o quão honrosa devo procurar fazer minha caminhada; a corrente, o sustentáculo desta medalha, demonstra o pacto agora firmado com os objetivos da Academia de Letras da Bahia; a cadeira deixa de ser apenas um lugar de assento, para se transformar em um trono simbólico, onde ilustres cidadãos se imortalizaram. Sou agora mais um elo dessa corrente que me liga aos outros elos, meus confrades e confreiras, estejam eles presentes em vida ou em obra. Analisando a palavra cadeira, descubro que esta vem do latim “cathedra”, significando cadeira de braços que confere uma imponência a quem nela se senta. Dessa palavra também deriva o termo catedral, local onde se encontra instalada uma autoridade religiosa. Quando se diz que alguém conhece um assunto “de cathedra”, sobre este se deseja afirmar que ele tem um domínio sobre o tema em voga.

 
Não sou uma literata “de cathedra”, não conheço com profundidade as nuanças da língua portuguesa. O que conheço da nobre língua vem dos estudos escolares e do hábito prazeroso de ler. Sou uma literata por necessidade. Tenho uma mente formada pela língua portuguesa e pela língua yorubá. Sou bisneta do povo lusitano e do povo africano. Não sou branca, não sou negra. Sou marrom. Carrego em mim todas as cores. Sou brasileira. Sou baiana. A sabedoria ancestral do povo africano, que a mim foi transmitida pelos "meus mais velhos" de maneira oral, não pode ser perdida, precisa ser registrada. Não me canso de repetir: o que não se registra o tempo leva. É por isso e para isso que escrevo. Compromisso continua sendo a palavra de ordem. Ela foi sentenciada por Mãe Aninha e eu a acato com devoção. Em um dos artigos que escrevi, eu digo: Comprometer-se é obrigar-se a cumprir um pacto feito, tenha sido ele escrito ou não. O verbo obrigar, que tem origem no latim obligare, significa unir. Portanto, quando dizemos um “muito obrigado”, estamos sugerindo a alguém que nos fez um favor que a ele estaremos ligados, em virtude do favor que nos foi prestado. Obrigação é uma das palavras chaves do candomblé: aquela que abre muitas portas. Fazer uma obrigação ou a obrigação, fica sendo, então, uma forma de estar cada vez mais unido aos oríÿa.


Se minha parte branca estuda as origens latinas da língua portuguesa, minha parte negra estuda a língua africana de que fazemos uso no candomblé: o yorubá arcaico. Nessa língua, comprometer-se é wulewu, palavra que tem a seguinte análise: a raiz wù (agradar), a mesma que forma a palavra wúlò, que significa útil; e lé, que é traduzida como seguir em frente, procurando não ser mais um na multidão. Para o povo yorubá e, consequentemente, para os brasileiros que se guiam pela religião nagô, uma pessoa comprometida é aquela que é útil, pois cumpre a função que lhe foi destinada, e por isto pode seguir em frente, distinguindo-se da massa uniforme; uma pessoa comprometida é especial, pois já encontrou sua especificidade, tornando-se, assim, imortal.

É considerado imortal todo aquele que fez ou faz de sua vida uma obra a ser lida, a ser internalizada. É objetivo da Academia de Letras da Bahia manter viva, na memória de todos, a contribuição que ilustres homens e mulheres deram, no sentido de colaborar para o aperfeiçoamento da sociedade e da humanidade. Se um dia, no Ilé Àÿç Opo Afonjá, eu recebi grossas correntes que simbolizam elos de união com os oríÿa, com meus ancestrais e meus descendentes espirituais; hoje recebo uma corrente que me une a todos que um dia pertenceram e os que ainda pertencem a esta nobre instituição. Honrada estou por ter sido escolhida para sentar na cadeira 33, que tem como patrono um ser tão especial quanto Castro Alves e que foi ocupada pelos imortais: Francisco Xavier Ferreira Marques, Heitor Praguer Fróes, Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araújo.


Se meu discurso tem como base o comprometimento, sigo rememorando os primeiros acadêmicos que ocuparam a cadeira 33.


Francisco Xavier Ferreira Marques foi a pedra fundamental da cadeira 33. Imortal também pela Academia Brasileira de Letras, onde foi o segundo ocupante da cadeira 21. No prefácio de sua obra O Feiticeiro, é citada uma fala do advogado sergipano Jackson Figueredo, através da qual se pode sentir a imortalidade desse homem da política, que era autodidata em literatura: “Xavier Marques merecerá o amor de todo o povo brasileiro, na proporção em que for crescendo a nossa consciência nacional. Tê-lo-á todo, quando levarmos não só à pompa dos programas, mas as escolas, o culto do nosso passado. Quando os nossos homens públicos se derem a esta obra, com menos frases e mais seriedade, os livros de Xavier Marques irão parar às mãos da infância e educá-la para a formação da alma brasileira”. Xavier Marques foi um jornalista e político que nasceu em 3 de dezembro de 1861, na prazerosa Ilha de Itaparica, o que contribuiu para que sua literatura encontrasse nos temas praieiros uma fonte de inspiração. Escrever era sua grande paixão. Poeta, romancista e ensaísta, foi com a novela Jana e Joel que a crítica o consagrou.


A imortalidade de uma pessoa pode estar em sua vida, em sua obra, em sua descendência. Xavier Marques partiu do planeta em que vivemos em 30 de outubro de 1942, mas aqui deixou seu neto, o músico Celso Xavier Marques, hoje com 71 anos, o qual vem dedicando grande parte de sua vida e de sua obra musical a memória do avô, a quem chama carinhosamente de "meu velho escritor itaparicano".

O neto não teve o prazer e a alegria de conhecer o avô na vida física, o que não impediu que entre eles fosse firmada uma bonita ligação espiritual. Foi, provavelmente, essa ligação que inspirou o neto de Xavier Marques a escrever um hino em tributo a seu avô, o qual se constitui uma verdadeira biografia sobre o mesmo. A arte musical de Celso Xavier Marques contribui, assim, para tornar a obra de Francisco Xavier Ferreira Marques ainda mais imortal. Celso Xavier Marques traz na letra um elenco dos títulos dos livros publicados por Francisco Xavier Ferreira Marques, os quais são seus trabalhos mais conhecidos, lidos e apreciados: A cidade encantada, A arte de escrever, As voltas da estrada, Jana e Joel, O feiticeiro, Holocausto, Os praieiros, Mar azul, A boa madrasta, Maria Rosa, O arpoador, Sargento Pedro, Insulares, Terras mortas, Pindorama, Terra das palmeiras. Onde estiver, o grande político e escritor baiano há de escutar seu neto cantar: "Deus criou, tão sublime, a sua pena magistral. Fez Xavier Marques, imortal".

O imortal Xavier Marques deixou sua cadeira para ser ocupada por Heitor Praguer Fróes. Filho da histórica e cultural cidade de Cachoeira, nascido no dia 25 de setembro de 1900. Praguer Fróes foi poeta, tradutor, médico e professor. Foi membro não apenas da Academia de Letras da Bahia, mas também de inúmeras outras instituições científicas e culturais, como a Academia de Medicina da Bahia.


Praguer Fróes escrevia com sacrifício. Eu faço uso dessa palavra não no sentido comum que ela possui, como sinônimo de dificuldade, mas em seu sentido original. Escrever para Praguer Fróes era um ofício sagrado, sobre o qual ele dizia: “Quem escreve um livro e o revê e publica passa pelo paraíso e pelo inferno: Pelo paraíso, quando compõe; pelo purgatório, quando retoca; pelo inferno, quando imprime. Pelo paraíso, quando compõe, porque nada é mais agradável do que criar; pelo purgatório, quando retoca, porque nada é tão fastidioso quanto modificar; pelo inferno, quando imprime, porque nada é mais enervante que estar interminavelmente a corrigir”. E foi, pensando e sentindo assim, que Praguer Fróes somou em sua biografia livros de poemas, contos, contrafábulas e inúmeras obras científicas. Sacralizar um ofício é um comportamento típico de quem se preocupa e se ocupa com a humanidade. Tanto que Praguer Fróes chegou a abdicar dos direitos autorais de seu livro Lições de Medicina Tropical, em benefício do então futuro Hospital das Clínicas. Praguer Fróes era um humanista nato, pois herdou de seus pais a consciência cidadã. 


Não se pode nem se deve falar de Heitor Praguer Fróes, sem falar de sua família. Pai, mãe e filho, todos eles médicos que dedicaram a vida a salvar vidas. Sua mãe, Francisca Praguer Fróes, foi uma das primeiras mulheres formadas em Medicina, pioneira em todas as áreas em que atuou, principalmente na defesa dos direitos femininos. Ela dizia: "Eu sou feminista por herança e convicção"; "A inferioridade da mulher não é fisiológica, nem psicológica; ela é social. Sua escravidão sexual determina sua dependência econômica". O pai de Heitor Praguer Fróes, João Américo Garcez Fróes, foi tão "singular figura humana" que quando precisava interferir no comportamento de um estudante de Medicina, de modo a impedir que este fizesse o doente sofrer desnecessariamente, delicadamente dizia em latim: "Non vi, sed arte!” ("Não pela força, sim pela arte!").


O que nosso confrade o jornalista Jorge Calmon diz sobre o pai de Heitor Praguer Fróes é o princípio que faz de um membro da Academia de Letras da Bahia um imortal; é o principio que faz de qualquer pessoa, letrada ou não, um imortal. Ele diz: "Efetivamente, há homens que se tornam instituições. São Poucos. Constituem exceções. A regra geral é o bitolamento medíocre dos inumeráveis componentes do rebanho humano, que a lei da vida vai tangendo, em marcha entre o nascimento e a morte. Nessa indistinta mediania, as inteligências não brilham, o esforço não avulta, o caráter não logra atingir forma, consistência. É a grande planície dos homens comuns. Vez por outra, desse solo rasteiro sobressai uma eminência. O talento, a virtude, o mérito rompem a vulgaridade e projetam de entre a massa os indivíduos bem dotados, ou que a si mesmo se dotam, e cuja ascensão proclama as faculdades superiores da pessoa humana. Foi Garcez Fróes um desses raros indivíduos".

Em 25 de outubro de 1987, Heitor Praguer Fróes seguiu seu caminho rumo ao reino divinal, para encontrar esta linda família que deixou para todos nós um exemplo de vida registrado em livros.


Seguindo a lei da vida, Heitor Praguer Fróes deixou sua cadeira para ser ocupada por Waldemar Magalhães Mattos, que nasceu na cidade de Entre Rios, em 13 de setembro de 1917, e viveu na Terra por 86 anos. Era homem de números e letras. Bacharel em Ciências Contábeis, ingressou na carreira literária em 1940 pelo caminho jornalístico. O conjunto de sua obra é de um valor histórico imprescindível para a compreensão da Bahia e, consequentemente, do Brasil do século XIX. Tanto que em 2011, século XXI, portanto, dois de seus livros foram reeditados: Panorama Econômico da Bahia e O Palácio da Associação Comercial da Bahia, no qual Waldemar Mattos narra o baile que comemorou, em 1911, o centenário da Associação Comercial da Bahia, fundada em 15 de Julho de 1811: “Suntuoso no seu deslumbramento inexcedível, cheio de encantadora poesia e fulgurante pompa. Sem contestação, foi uma cerimônia de destaque excepcional, cujas impressões os anais das crônicas baianas guardarão para sempre". 


Waldemar Mattos também escreveu o livro A Bahia de Castro Alves e foi na sede da Associação Comercial da Bahia que o conclamado Poeta dos Escravos, na verdade poeta dos fracos e oprimidos, fez sua última declamação pública. Na tarde do dia 10 de fevereiro de 1871, apenas cinco meses antes de deixar esta vida, Castro Alves recitou o poema No meeting du Comité du Pain durante uma reunião filantrópica promovida pela colônia francesa em benefício das crianças desvalidas da Guerra Franco-Prussiana. 


Waldemar Mattos ligou-se ao patrono da cadeira 33 ao escrever o livro A Bahia de Castro Alves. E ligou-se a mim, atual ocupante desta honrosa cadeira, por ter ele escrito sobre Dona Francisca de Sande, a primeira enfermeira do Brasil. Afinal, eu hoje sou Mãe Stella, uma iyáloríÿa que orienta as pessoas no sentido de cuidarem do espírito, mas um dia fui Maria Stella de Azevedo Santos, uma enfermeira que orientava sobre os cuidados com o corpo físico.


Deixei para falar por último sobre meu antecessor, Ubiratan Castro de Araújo – Bira Gordo – e sobre o patrono da cadeira que hora ocupo Castro Alves – O Poeta dos Escravos –, pelos laços que nos unem. Cada um de nós lutando por honrar e glorificar um povo que, mesmo chegando escravizado ao Brasil, soube fazer história, ajudando na formação de nosso país em todas as áreas. Cada um de nós lutando por esse ideal de acordo com a época em que viveu e com os dons que recebeu do Deus Supremo: A alma poética de Castro Alves gritou clamando pela liberdade física dos negros; Bira Gordo, com sua capacidade única de contar a história e estórias, tudo fez para mostrar a contribuição indiscutível deste povo; eu, como cultuadora de divindades, rogando sempre para que o orgulho que agora estou sentindo não faça com que minha jornada espiritual seja maculada, sigo esforçando-me no sentido de fazer com que a religião trazida pelo povo africano para o Brasil seja melhor compreendida e, assim, mais respeitada.


Em um discurso tão longo, tudo fiz para não cansar os ouvintes. Não sei se estou conseguindo, mas em respeito a meu grande amigo e antecessor na cadeira 33, o historiador Ubiratan Castro de Araújo, tentei alcançar este feito procurando construir meu discurso de posse narrando fatos de modo histórico, mas com a leveza de uma contadora de "causos". Como disse anteriormente, Bira Gordo foi um grande contador da história e de estórias. Nascido em Salvador, em 22 de dezembro de 1948, o Professor Doutor Ubiratan Castro de Araújo foi graduado em História, pela Universidade Católica do Salvador e em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Um estudioso por natureza, fez mestrado em História na Université de Paris X, Nanterre, e doutorado em História na Universite de Paris IV (Paris-Sorbonne). O fato de ter recebido o Troféu Clementina de Jesus da União dos Negros pela Igualdade e a Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara Municipal de Salvador mostra o reconhecimento pelo empenho de Bira Gordo contra a discriminação racial. Foram inúmeras as vezes que nos encontramos em seminários, e outros encontros de ordem semelhante, para reafirmar a grandeza histórica do povo negro e sua sabedoria ancestral, que é capaz de orientar qualquer um que dela se aposse. Afinal, sabedoria não tem cor e não pertence a nenhuma raça específica.


A frágil saúde de Bira Gordo, como gostava de ser chamado, não o impediu de dar uma grande contribuição ao mundo intelectual e de transmitir alegria por onde passava e para todos com quem convivia. Sua prestabilidade era incontestável! Nunca se negava a participar de nenhum evento para o qual fosse convidado a contribuir com sua forma única de estoriar a história. Intelectual cinco estrelas; contador de "causos" de estrelas incontáveis. Bira registrou pouco seus vastos conhecimentos.


Foram apenas três os livros por ele escritos: A Guerra da Bahia, Salvador Era Assim - Memórias da Cidade e Sete Histórias de Negro. Editou pouco, mas falou muito, muito, muito... E era uma fala deliciosa de ser ouvida. Em seu único livro de ficção, Sete Histórias de Negro, ele conseguiu reunir muito do que era, sabia e lutava. Para dizer o que Bira era, sabia e lutava, tomarei emprestado o que seu amigo, o jornalista e escritor, Emiliano Queiroz, disse sobre ele: "Quando a barra pesava, quando algum problema o atormentava, Bira punha-se a cantarolar como a se convencer de que os orixás pudessem socorrê-lo ou simplesmente como uma maneira de afastar os maus olhados e buscar socorro na poesia, que ela sempre ajuda - quanto mais quando a alma não é pequena, e a dele era do tamanho do mundo". Concordo, por experiência própria, com a opinião de Emiliano Queiroz sobre Bira: "O mestre que compartilhava sua erudição como quem contasse histórias à beira da fogueira".

Um exemplo claro dessa capacidade que tinha Ubiratan Castro, um intelectual do povo, é a última história escrita em seu livro Sete Histórias de Negro. Intitulada "O Protesto do Poeta", a referida história é muito adequada para este discurso, uma vez que narra uma conversa que acontece em uma sessão espírita entre Castro Alves e um grupo de pessoas. Como bom piadista que era, não escapou da mente criativa de Bira Gordo nem o patrono da cadeira que ocupava na Academia de Letras da Bahia. Para Bira, a vida parecia ser uma piada e a piada uma coisa muito séria. Condensada de maneira irônica no "causo" do protesto do poeta, Bira conta a trajetória da libertação dos escravos no Brasil ocorrida no passado, alertando para a necessidade constante por uma luta pela liberdade, pois as correntes de ferro, antes visíveis, são, no presente, correntes imperceptíveis, que marginalizam e excluem. 


Bira Gordo nos deixou a pouco tempo, em 3 de janeiro do ano em curso. Se hoje ainda estivesse conosco, digo fisicamente, é provável que buscasse na poesia de Castro Alves a força que precisamos para continuar enaltecendo um povo guerreiro, ao mesmo tempo pacífico e afetuoso, que soube amar e amamentar quem os escravizou. 
Muitas pessoas, no passado e no presente, lutaram para que hoje eu pudesse, de maneira natural, fazer parte desta Academia. Uma delas foi o patrono da cadeira onde me firmo. Antônio Frederico de Castro Alves entoou gritos poéticos na tentativa de despertar a sociedade brasileira para a mais cruel de todas as atitudes humanas: a privação da liberdade. Em 1868, através de seu poema "Vozes d'África", ele clamou: 


Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? 
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes 
Embuçado nos céus? 
Há dois mil anos te mandei meu grito, 
Que embalde desde então corre o infinito... 
Onde estás, Senhor Deus?... 
Qual Prometeu tu me amarraste um dia 
Do deserto na rubra penedia 
- Infinito: galé! ... 
Por abutre - me deste o sol candente, 
E a terra de Suez - foi a corrente Que me ligaste ao pé...


Se minha bisavó chegou ao Brasil presa a muitos outros negros africanos, amarrada por correntes que lhe tiraram o maior de todos os bens que pode ter qualquer ser vivo – a liberdade, hoje aqui me encontro acorrentada por um adorno que me une a todos os baianos, brasileiros, humanos, letrados ou não letrados. O Poeta dos Escravos desejava ver todos os homens tratados com igualdade de condições; queria ver desacorrentados os negros escravizados. Por isso, Castro Alves escreveu um dos mais conhecidos poemas da literatura brasileira, "O Navio Negreiro", no qual denunciava as atrocidades sofridas pelos africanos na travessia oceânica que foram obrigados a se submeterem: 


Era um sonho dantesco... o tombadilho 
Que das luzernas avermelha o brilho. 
Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, 
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas 
Magras crianças, cujas bocas pretas 
Rega o sangue das mães: 
Outras moças, mas nuas e espantadas, 
No turbilhão de espectros arrastadas, 
Em ânsia e mágoa vãs! 
E ri-se a orquestra irônica, estridente... 
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais ... 
Se o velho arqueja, se no chão resvala, 
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 
E voam mais e mais... 
Presa nos elos de uma só cadeia, 
A multidão faminta cambaleia, 
E chora e dança ali! 
Um de raiva delira, outro enlouquece, 
Outro, que martírios embrutece, 
Cantando, geme e ri!


O baiano Castro Alves nasceu em 14 de março de 1847 na fazenda Cabaceiras, antiga freguesia de Muritiba, que é hoje a cidade de Castro Alves. Era dotado de uma constituição física frágil, mas de uma forte alma humanizada, que contestava as barbaridades típicas da época em que viveu – o século XIX. Foi corajoso o suficiente para que, com apenas 21 anos de idade, obrigasse os fazendeiros donos de escravos a escutá-lo recitar "O Navio Negreiro", pois estando todos em uma comemoração cívica não seria politicamente correto retirar-se do recinto.


A poesia de caráter social de Castro Alves era típica da terceira geração do Romantismo brasileiro, chamada Condoreira, pois o condor é uma ave símbolo de liberdade. Representante da burguesia liberal, Castro Alves foi o último grande poeta da geração Condoreira que, por meio da literatura, instigava o povo para exigir a abolição da escravidão e a proclamação da república, aproximando, assim, o Romantismo do gênero literário seguinte – o Realismo.


Se as causas sociais eram o ideal de Castro Alves, o amor era sua fonte de inspiração. E como são lindos seus poemas de amor. Escutemos com a alma seu poema "As Duas Flores", que na Escola Nossa Senhora Auxiliadora, de propriedade da professora Anfrísia Santiago, eu costumava recitar para minhas colegas no horário de recreio: 
São duas flores unidas
São duas rosas nascidas
Talvez do mesmo arrebol,
Vivendo, no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!


Intensamente viveu Castro Alves a sua curta vida de 24 anos. Em 6 de julho de 1871 ele não pode mais sentir na carne os prazeres do amor. Também não pôde ver os escravos desacorrentados, não pôde assistir a seu ideal concretizado. Mas sua curta vida é longa. Estamos hoje, aqui, nos deleitando com seus versos. Uma senhora de 96 anos, falando sobre seu primo Castro Alves, um dia me disse: "Por amor ele viveu, por amor ele morreu. Mas quem morre por amor não morre: torna-se imortal."


Eu sou o quinto elo da correte que forma a cadeia de iyáloríÿa do Ilé Àÿç Opo Afonjá. Eu sou a quinta pessoa a ocupar a cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia. O número cinco é meu guia. Há setenta e quatro anos atrás, nesta mesma data, eu fui iniciada para o oríÿa caçador – Õÿösi. Hoje é uma quinta-feira, dia consagrado a meu oríÿa. Nada disso foi programado, nada disso é coincidência. É magia e destino! 


Na cadeira 33, e em todas as outras que compõem esta nobre instituição, cabe pessoas de todas as profissões, cores, religiões, estilos literários... Na cadeira 33, e em todas as outras desta instituição, só não cabe vaidade, nem modéstia. Não sendo vaidosa, digo que, com certeza, não fui escolhida para ser uma acadêmica pelo fato de escrever livros com sofisticação gramatical. Não sendo modesta, tenho a convicção de que se hoje aqui estou é por escrever minhas experiências de modo a cumprir meu compromisso sacerdotal. Não se esqueçam que compromisso e união são as bases em que meu discurso foi fundamentado. Sentar-me na cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia era meu destino.


O que escreveu meu confrade Paulo Costa Lima, quando fui escolhida para esta confraria, transmite com perfeição meus pensamentos sobre esse novo envolvimento em minha vida. Ele assim pensou e escreveu: "Hoje, 25 de abril, a Academia de Letras da Bahia jogou os búzios e o nome que apareceu foi o de Mãe Stella de Oxossi, para ocupar a cadeira cujo patrono é Castro Alves, sendo o grande historiador baiano Ubiratan Castro o último ocupante. A escolhida se fez presente logo após a votação para o abraço e a manifestação do compromisso. Foi uma bela cena, e muito rara. Um encontro de erudições da África e da Europa. Na verdade, um gesto inovador que não pode deixar de ser levado em conta como paradigma de abertura de horizontes e de convivência das diferenças... na luta de afirmação da tradição afro-brasileira e, portanto, pelo respeito aos direitos à alteridade e identidade própria.Diante da contribuição civilizatória que a África trouxe ao Brasil, alguns preferem calar, outros reconhecem mas acentuam a natureza oral dos conhecimentos e saberes.Mãe Stella rompeu essas barreiras (entre tantas), e passou a defender uma representação mais sintonizada com os novos tempos, conectando oralidade e manifestações letradas...."

Como já disse, sou bisneta de portugueses e africanos. Essas duas descendências não são somente minhas. São do Brasil. Quantas e quantas vezes estamos falando palavras de origem africana, pensando estar falando em português? Tôrô é chuva, görô é cachaça, gògó é garganta, todas elas palavras da língua yorubá, que precisam ser preservadas em sua origem. Talvez muitos tenham estranhado, em alguns momentos do discurso, ser falado os oríÿa, as iyáloríÿa. Não é erro. É que na língua yorubá as flexões gramaticais, no que se refere a número, são construídas de maneira diferente da língua portuguesa. Essa herança faz com que muitas vezes o povo fale uma mistura de português com yorubá. Sobre os dialetos africanos, a confreira Ieda Pessoa de Castro conhece o assunto de cathedra. Escrevo com a intenção maior de salvaguardar a língua e a sabedoria de meus ancestrais africanos, pois tendo sido este povo ignorado por séculos, seus conhecimentos correm o risco de serem esquecidos ou transmitidos de maneira deturpada.

Ser iniciada aos catorze anos de idade, fez com que eu tivesse a vantagem da inocência. Sem saber da responsabilidade que me esperava, eu brincava de caçador. Afinal, fui consagrada para o oríÿa Õÿösi – a divindade caçadora. Na minha mocidade, pude conciliar a profissão com a religião, cuidando do ser humano como enfermeira sanitarista durante trinta e cinco anos, quando me aposentei, ao tempo em que servia também aos deuses.

Curiosamente, alguns mais velhos insistiam em me repassar os conhecimentos que possuíam sobre os fundamentos do candomblé. Em uma época em que nossa tradição era transmitida apenas oralmente, Bida de Iyemonjá, por exemplo, contrariava o costume e de maneira obstinada mandava que eu anotasse nossas conversas. Muito tímida e respeitosa, não era fácil fazer o que ela mandava.
Com o passar do tempo, entendi que os mais velhos queriam munir-me de conhecimentos, pois cada dia eu recebia mais informações. Só em dezenove de março de mil novecentos e setenta e sete, quando fui escolhida iyáloríÿa do terreiro de candomblé onde fui iniciada – o Ilé Àÿç Opo Afonjá, na Bahia –, é que pude enfim compreender o porquê de toda aquela atenção para comigo. Nos anos que se seguiram, não apenas os mais velhos, mas também pessoas mais novas me enviavam importantes materiais de pesquisa sobre a religião que nos foi legada pelos africanos. As minhas atividades como iyáloríÿa são muitas e nunca me permitiram organizar tudo que eu recebia por revelação divina ou por gentileza dos homens, o que muito me preocupava.

Como iniciada que sou, tenho tendência a resguardar os mistérios, evitando retirar os véus que os encobrem. Por isso, não foi uma decisão nada fácil fazer uso da tradição escrita para registrar os conhecimentos que adquiri através da tradição oral. A ousadia veio da necessidade, mas a coragem veio da permissão dos oríÿa. Diante da modernidade, essa ficou sendo minha única alternativa para evitar deturpações da essência de uma religião milenar. Não sou uma escritora! Sou uma iyáloríÿa que escreve! Sou uma iyáloríÿa que escreve com o objetivo primeiro de não deixar perder a valiosa herança de nossos ancestrais. Assim foi que optei por oferecer a todos, indistintamente, a riqueza da filosofia yorubá, de maneira escrita, porém respeitosa, evitando expor fundamentos que interessam, apenas, aos sacerdotes, por serem eles responsáveis pela execução de rituais. A busca pela ampliação do conhecimento deve ter como interesse principal o aprimoramento pessoal, visando uma amplificação das capacidades enquanto ser humano. 


Se eu chamo meus colegas de academia de confrades e confreiras, é porque estamos juntos na mesma confraria. No Ilé Àÿç Opo Afonjá, cumprimentamos uns aos outros chamando-nos de irmãos, estamos em uma irmandade. Confraria, irmandade, comunidade...elos unidos formando uma corrente por um objetivo comum. Na Academia de Letras da Bahia, o objetivo é cultuar para preservar a tradição escrita. No Ilé Àÿç Opo Afonjá, o objetivo é cultuar para preservar a tradição oral. Sou uma acadêmica oriunda da família Opo Afonjá, que tem como Iyá Nlá – a Grande Mãe – Ôba Biyi, Mãe Aninha, que no início do século XX escreveu um adurá (uma reza), na língua yorubá, pedindo bênçãos para a construção do Terreiro de Candomblé que tem como patrono o oríÿa ßàngó: seu élédá, o dono de sua cabeça.


Mãe Aninha assim rezava em yorubá:
Ôba Kawoo 
Ôba Kawoo Kabiesile 
Kö mö èsi kunlè 
Ôba Kawoo 
Ôba Kawoo Kabiesile 
Çkùn
Esse adurá, em tradução, quer dizer: "Xangô, Rei Leopardo cuja decisão e ação ninguém poderá questionar. Dê-me como resposta a construção completa desta casa". Através dessa reza em forma de cântico, Mãe Aninha pediu condições para construir o Ilé Àÿç Opo Afonjá. Ainda hoje, nós, seus descendentes espirituais, continuamos entoando sua oração, todas as quartas-feiras na "Casa de Candomblé" construída por ela, pedindo forças para nos mantermos firmes em nossas decisões; pedindo humildade para mudar as ações que nos sejam questionadas, apenas quando elas forem justas. Somos descendentes de Mãe Aninha! Somos filhos de ßàngó! Somos filhos da justiça! Somos educados, polidos e firmes. Somos filhos da resistência!
Se Mãe Aninha pediu a seu oríÿa, ßàngó, forças para construir seu "Terreiro de Candomblé", eu peço a meu oríÿa, Õÿösi, que dê força, saúde e prosperidade a mim e a todos aqui presentes, principalmente aqueles cujos corações são puros.
Mãe Stella puxa o cântico em homenagem a seu oríÿa:
Olówo mo npe mi ô iye iye
Ôdç mo pe mi olùbö ai pè
Mo npe mi ô iye iye
Ôdç mo pe mi olùbö ai pè
Mo npe ni ná së ni dé ná



Fonte: Correio Nagô

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