sábado, 28 de dezembro de 2013

Transe, Possessão e Êxtase Religioso nas religiões afro-brasileiras



GT 6 – Escolas das Religiões Afro-brasileiras e diálogos
Jociane Neves Negrão

Transe, possessão e êxtase religioso nas religiões afro-brasileiras
Jociane Neves Negrão[1]


Introdução

[...] o transe é um fenômeno que acontece no mundo inteiro, e não está restrito somente a um contexto cristão, mas em todas as religiões aparecem alguns aspectos do transe espiritual. Às vezes esses aspectos são tidos como uma manifestação mais demoníaca, em outros, são vistos como divino. Mas estão no mundo inteiro, em diferentes religiões e culturas. Eu acho que esse, no fundo, é o ponto central de algumas experiências religiosas. (Dra. Betina Schimidt in PECORA, 2011, p. 186)

Aqueles que buscam contato com o sagrado por meio dos estados alterados de consciência[2] (EACs ou estados superiores de consciência[3] (ESCs), sempre causaram curiosidade, respeito e temor. Chamados de médiuns por serem considerados os intermediários entre o plano material e espiritual, usufruíram em todas as épocas da história humana de grande influência e poder. Fonte direta para o Sagrado, ocupavam posição de destaque, ou até mesmo a posição mais importante de seus povos. O Pajé em sua tribo, o Sacerdote no clã, o Curandeiro para o povo[4].
Por mais primitivo que fosse o povo, sempre existiu uma forma de contato com a divindade, que emoldurava o comportamento do grupo, e que unificava e fortalecia o coletivo. A maioria destes povos chamados primitivos, caracterizava-se pelo politeísmo, pelo transe e pela magia. Com o advento do monoteísmo (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), o politeísmo perdeu força, e com ele, o mediunismo/transe[5] foi perseguido, combatido e reprimido como manifestação maléfica, ignóbil e impura. A Inquisição foi apenas o ápice de um processo de mudança de paradigma: do Pajé para o Padre, do Politeísmo para o Monoteísmo. O poder religioso deslocou-se das muitas e inumeráveis mãos, para poucas e rígidas mãos, as da Igreja. Por mil anos (Idade das Trevas) toda a religiosidade ocidental girou em torno dos mosteiros.
Com o Mercantilismo e as Grandes Navegações[6], o Velho Mundo (representado basicamente pela Europa cristã) começava a explorar o Novo Mundo. Inúmeros interesses nortearam as decisões que viriam a determinar os séculos seguintes. Novamente, o monoteísmo judaico-cristão se defrontou com as culturas ditas primitivas e politeístas, desta vez no Novo Mundo. Conflitos já resolvidos na Europa, renasceram. Os valores religiosos do homem branco europeu chocaram-se com a riqueza cultural e religiosa dos povos indígenas americanos. Mas é fato que os EACs ou ESCs foram observados pelos colonizadores europeus que, a princípio, resumiam-se nos padres jesuítas[7].
Toda esta realidade da etnia indígena somou-se à realidade da etnia africana, que chegou trazida pelo português colonizador como escrava ao Brasil. A riqueza de suas culturas e religiosidades foram determinantes para a formação do povo brasileiro. Em suas religiosidades, o transe e possessão eram fundamentais.
E, embora esteja bastante claro que os EACs[8] ou ESCs existiram e se mantiveram na cultura popular durante todos estes séculos, antes e depois da colonização portuguesa, foi apenas no século XIX com o advento do Espiritismo, que o transe voltou a ser discutido na Europa e no Brasil. Portanto, justificado pela elite europeia, o transe começou a ser tratado como algo merecedor de estudo e pesquisa.
O objetivo deste artigo é compreender a importância do transe, possessão e êxtase religiosos para as religiões afro-brasileiras, discutindo, de forma aberta, a construção do preconceito neste tipo de experiência religiosa.
Para a compilação deste artigo serão utilizados revisão bibliográfica e artigos científicos. Ao abordar a Umbanda, serão utilizados os autores renomados no meio umbandista, W. W. da Mata e Silva e Francisco Rivas Neto.

Revisão dos estudos históricos sobre os EACs/ESCs

“A medicina está envolvida em profundos laços de competição com a religião há milhares de anos. Ambas procuram espaços para validar as suas práticas em áreas contíguas das relações sociais. É muito difícil saber onde começa uma e termina a outra”. (BOTELHO, 1991, p. 178)

O século XIX e início do século XX foram particularmente tumultuados no Brasil, principalmente para as vertentes religiosas que tinham o transe como parte de seus rituais.
Nesse momento, a recém-nascida comunidade psiquiátrica brasileira começava a olhar com curiosidade este fenômeno que tomava mais destaque com a chegada do Espiritismo.
Posturas mais rígidas e medicalizantes foram adotadas pelos médicos do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, tendo como grande incentivador Belford Roxo[9] (1938, p. 59-72). Roxo também exigia maior atuação do poder público na repressão às “práticas tão deletérias”, dizendo que o combate às práticas mediúnicas seria uma medida de promoção da higiene mental. (ALMEIDA, 2007, p. 3).
Os médicos do eixo Bahia-Pernambuco defendiam uma posição mais antropológica, apesar de reconhecerem o caráter patológico e primitivo do fenômeno. Valorizavam os aspectos socioculturais do fenômeno e a necessidade de entendimento do comportamento humano.  Defendiam um maior respeito às práticas consideradas religiosas, étnicas ou culturais. Nina Rodrigues[10] (1935, p. 109) considerava que o estado de santo estava relacionado ao sonambulismo provocado por sugestão (música, ritmada, monótona, que impelia à dança, e esta ao estado de possessão)[11]. Sobre o Candomblé, Rodrigues (1935, p. 109) atribuía ao transe e possessão a um mecanismo mental patológico, mas considerava que esses fenômenos poderiam ter valor psicológico positivo, por seus efeitos catárticos, e por se apresentarem de forma ritualizada e altamente controlada pelo grupo religioso, em especial pelos pais-de-terreiro.  Além disso, pensava que tais manifestações religiosas satisfariam as necessidades emocionais primitivas dos seus adeptos, e não deveriam ser reprimidas. Franco da Rocha[12] já falava das práticas mediúnicas desde 1896.
De uma forma geral, as práticas mediúnicas eram acusadas pelo meio médico de desencadear a loucura, de induzir ao suicídio (CALDAS, 1929, p. 159-159), ao estupro (PEIXOTO, 1909, p. 78-94), ao homicídio e à desagregação familiar (RIBEIRO e CAMPOS, 1931, p. 12; OLIVEIRA, 1931, p. 27)[13].
Um bom exemplo disto foi o médico Carlos Eduardo Fernandes (1939 a, d, g; 1939 b, c, e, f; 1939) que solicitou ao governo punição para os espíritas que praticassem medicina ilegalmente e intervenção policial nos centros, para enquadrar os médiuns receitistas[14]. Portanto, há também uma rejeição quanto às atividades de curas promovidas pelos espíritas, sendo chamado de charlatanismo e curandeirismo desde 1830 (SCHWARCZ, 2001, p. 222). Convém lembrar o caso de Juca Rosa (Rio de Janeiro, 1860)[15] que foi preso e desapareceu. Conhecido como feiticeiro, serviu como exemplo para que se criasse uma legislação (Código Penal de 1890[16]) específica contra os curandeiros e os feiticeiros. As práticas mediúnicas passaram a ser consideradas crimes contra a saúde pública e muitas casas de culto foram fechadas e médiuns presos ou internados em manicômios. Outro caso foi João de Camargo (São Paulo, final século XIX) que foi preso inúmeras vezes, desprezado, considerado alcóolatra e louco, tentativas de destruir sua reputação e respeitabilidade. Por fim, João de Camargo registrou-se como espírita em 1921, sendo então deixado em paz. Tanto Juca Rosa, quanto João de Camargo[17] tinham características em seus cultos daquilo que viria a ser chamada Umbanda[18].
Artur Ramos publicou sua tese de doutoramento intitulada Primitivo e Loucura (1926) onde defendia uma visão evolucionista e racista do transe. Já em A cultura negra no mundo (RAMOS, 1937) enfatizou fatores culturais, deixando para trás a perspectiva racista. “Manteve, como Nina Rodrigues, o referencial teórico em que aproximou possessão à histeria vista na época segundo uma perspectiva psicodinâmica, influenciada por autores como Freud e Jung”. (ALMEIDA, 2007, p. 9)
Ulisses Pernambuco[19] “defendia uma visão tolerante em relação aos cultos afro-brasileiros, pois não via neles a origem de transtornos mentais, mas a manifestação cultural das camadas pobres da população” (PERNAMBUCO in ALMEIDA, 2007, p. 10). Ulisses Pernambuco e Artur Ramos defendiam um controle médico sobre as religiões com fundamentos no transe, mas sem apoio policial, pois acreditavam que a educação era o único meio para afastar a população deste comportamento primitivo. (ALMEIDA, 2007, p. 10)
René Ribeiro dizia que as dissociações produzidas pela experiência religiosa tinham, entre outras, a finalidade de operar como um mecanismo de escape perante uma situação de forte pressão externa.  Portanto, concluiu ser a possessão um fenômeno normal, compreendido mediante a identificação de padrões culturais dos participantes e dos condicionamentos que as normas grupais impunham. (RIBEIRO, 1937; 1952; 1956; 1957).
Segundo Câmara (1995, p. 624), foi Jacques Mongruel que primeiro reconheceu a função terapêutica do transe e possessão, no I Congresso Interamericano de Medicina, ocorrido em 1946, no Rio de Janeiro, a isto ele chamou Transe Psicoautônomo, ou seja, uma manifestação psíquica espontânea de natureza autônoma.
Álvaro Rubim de Pinho (1975, p. 211-224) analisou a sobreposição entre a experiência mística e transtorno mental. Para ele “a ideia e o sentimento religioso são de todos os momentos da história[...] [...]em todos, terão existido psicoses e comportamentos desviantes.”    Segundo Almeida (2007, p. 11):
Pinho reconhece também que místicos não psicóticos, frutos quase exclusivos de fatores socioculturais existiram individualmente ou agrupados, em todas as seitas e todas as eras. Faz críticas à visão medicalizante e estreita da psiquiatria em relação a fenômenos como possessão, demonopatia, transes mediúnicos, e os estados de santo. Segundo ele, a psiquiatria sempre identificou esses estados como dissociação histérica.  Diz que se os histéricos utilizam mecanismos dissociativos, de alteração da consciência, nada impede, entretanto, que pessoas psiquicamente sadias, quando acionadas por fatores culturais e religiosos, desenvolvam estados alterados de consciência sem significação patológica. 
[...] populações dos centros espíritas e candomblés incluem imensa maioria de pessoas normais, simultaneamente com a minoria de anormais, estes em parte levados pela expectativa das curas. (PINHO, 1975, p. 211-224)[20]
Portanto, após toda essa revisão histórica, podemos concluir que, para a Psiquiatria do final do século XIX ao início do século XX, o transe foi considerado patológico, merecedor de intervenção medicamentosa, internação e repressão policial[21].
Após inúmeros embates entre os religiosos e psiquiatras, o conceito psiquiátrico sobre transe e possessão sofreu imenso progresso e hoje, no conceito médico atual (DSM IVR e CID 10), o transe e possessão, se adequados à realidade e cultura local, não são considerados patológicos[22], mas se desprovidos de significação cultural, deslocados da realidade daquele povo, devem ser tratados como patologia psiquiátrica. (NEGRAO, 2008, p. 18)
Dra. Bettina E. Schmidt (in PECORA, 2011, p.185-192) deixa bem claro que possessão espiritual não está relacionada à saúde mental. Portanto, a Ciência Médica e a Antropologia já concordam que transe  e possessão não estão relacionados à doença mental.
Etnias e suas contribuições

A etnia branca trouxe ao Brasil basicamente o monoteísmo, representado pela Bíblia e pelo Torah, e também a herança da magia europeia, com toda a sua simbologia. A etnia africana, representada por muitos povos diferentes, trouxe uma cultura islamizada pelo Alcorão, mas alguns povos africanos trouxeram seus conceitos politeístas, sem livro sagrado, transmitidos pela tradição oral, contados em seus mitos e ritos. A etnia indígena, assim como alguns povos africanos, não possuíam livro sagrado, e também se mantinham por meio da tradição oral, seus mitos e ritos.
As práticas religiosas africanas e indígenas causaram repúdio por suas diferenças marcantes quando comparadas às culturas europeias. Por não possuírem um livro sagrado e não utilizarem a escrita tradicional, as culturas africanas e indígenas foram denominadas primitivas[23]. Nestas culturas de tradição oral[24], o conhecimento é passado de geração em geração, de mestre a discípulo, por meio de um processo iniciático.
Nas religiões de tradição oral, o tempo é o tempo mítico, ou seja, o tempo vivenciado pelo mito. Não há marco inicial, o mito é revivido em cada rito. E o rito reatualiza o mito. É comum ouvir a expressão no início dos tempos como referência nas historietas desta tradição como exemplificam os Itans do Ifá. A ideia de tempo era bastante diferente, própria de cada povo[25]. Normalmente, o tempo era determinado pelas colheitas, pelas estações do ano ou pela necessidade de comercialização dos produtos[26]. Portanto, se a ideia de tempo era algo pouco importante na tradição oral, como se deu a passagem do atemporal para o temporal? Do tempo circular para o sequencial/linear?
A cultura mercantilista, e depois a industrializada necessitavam de uma marcação temporal específica, uma forma de determinar lucro e produtividade. Não havia mais o interesse apenas pelo sustento do clã, da prole, do coletivo. O interesse agora era o enriquecimento individual, a exploração dos processos produtivos, a hegemonia do poder. A riqueza determinava o poder. A escrita, que era apenas um método, passou a ser o método, tornando-se referência de progresso cultural, avanço social e poder.
Na tradição oral, o conhecimento está livre para ser interpretado, modificado e ritualizado conforme a compreensão de cada época e de cada povo. Não há rigidez conceitual, permitindo a mobilidade que inclui todas as formas de compreender o sagrado. Na tradição oral o Homem é visto como sagrado.
No desejo de documentar, enrijeceram-se os conceitos anteriormente abertos e livres para ressignificação. E então, para a manutenção e exercício do poder por meio da opressão sob os demais, produziu-se o dogma. E é por este dogma que se perseguem e condenam até hoje todos os valores das tradições orais. É necessário agora ter um único deus, o politeísmo não é mais tolerável. É necessário um livro sagrado para se seguir rigidamente (normas e leis morais). E se há um livro ditando as regras, não se pode mais questionar, é necessário apenas obedecer. A liberdade é definitivamente trocada pela obediência.  A interação com o Sagrado agora é substituída pela submissão ao represente do Sagrado na Terra. É a Institucionalização do Sagrado, afastando o religioso da Transcendência. A imanência já não atinge a transcendência.
Outra característica importante das culturas orais é a valorização do contato direto com a divindade/natureza, e seus intermediários (médiuns, sacerdotes, pitonisas, pajés e afins). Se o contato se dava assim, o transe, a possessão e o êxtase religioso tinham caráter primordial e determinante na religiosidade e na experiência religiosa dos povos não cristãos.
Quando os jesuítas chegaram ao Brasil utilizaram técnicas de catequização para destruir as imagens dos seres míticos dos indígenas, transformando-os em santos ou em demônios.  Associaram as técnicas de cura do Pajé à feitiçaria e à superstição[27]. Aos poucos, os jesuítas minaram as crenças indígenas em seus deuses, substituindo-os pelo deus  e mitos cristãos. Quando os negros chegaram ao Brasil, os povos que ainda não eram islamizados traziam seus mitos, seus ritos, seus deuses. Foram obrigados a se converterem ao cristianismo, e para manterem suas crenças, sincretizaram seus deuses com os santos católicos, escondendo-se sob a égide das confrarias e irmandades católicas, ou sob as manifestações como  a Congada e a Folia de Reis. Suas danças, ritos e rezas eram reprimidos e castigados. (PRIORE, 2004, p. 33-46) Em suas manifestações religiosas, o transe ainda se manteve presente, chegando até os dias atuais como traço fundamental em sua religiosidade.
Apesar de todos os esforços empreendidos pela Igreja, com perseguição, violência, repressão, e mortes, o transe seguiu firme na religiosidade brasileira, sincretizada e disfarçada, sobrevivendo ao longo dos séculos e mostrando sua força enraizada no povo brasileiro. E mesmo hoje, quando o movimento religioso neopentecostal se fundamenta na perseguição ao transe, ele se mantém.

O Transe  nas religiões afro-brasileiras

Segundo Gadamer (2000, p. 227) estudar, refletir e escrever sobre religião é trabalhar sobre o mesmo material de que ela é feita, da experiência humana nos seus limites, assim como de símbolos culturais, que constituem, alimentam, constrangem, enriquecem e viabilizam nossos espíritos e nossa existência neste mundo. Todos, crédulos e incrédulos, de uma forma ou de outra, somos tocados pelo espírito da religião e dele dificilmente escapamos.[28]
Diante disso, pode-se concluir que a religiosidade é uma característica da espécie, independente da religião, inerente, mas variável de indivíduo para indivíduo[29].
Mas, como seria definido o transe por estudiosos das religiões afro-brasileiras?
Para o Prof. Dr. Volney J. Berkenbrock[30] (2011, p. 17):
A palavra experiência é utilizada para designar algo pessoal, individual, intransferível, irrepetível, incontrolável, único. O indivíduo, o sujeito, tem experiências como momentos únicos em sua vida. Estas podem ser relatadas, racionalizadas, interpretadas, mas não podem ser transferidas de uma pessoa para outra. Experiência ocorre no âmbito do mais íntimo do sentimento e por isso mesmo só pode ser sentida. O falar sobre, o relatar, o racionalizar ou interpretar, de forma alguma irá repetir este momento ou transferí-lo para quem ouve o relato.
Berkenbrock (2011, p. 24)  ressalta a importância da experiência religiosa para as religiões afro-brasileiras:
Se o textos sagrados têm para as diversas tradições cristãs um status ímpar de referência,  para as tradições das religiões afro-brasileiras, este status é ocupado pela experiência religiosa. A experiência religiosa não é apenas uma possibilidade, como nas tradições cristãs. Ela é um fator estruturante para a religião. Assim, por exemplo, tanto na Umbanda quanto no Candomblé, a experiência do transe com a entidade espiritual estrutura o ritual, a hierarquia da comunidade, a ética (ou moral) dos fiéis, a compreensão do lugar de cada fiel no mundo religioso, o sistema simbólico da religião, etc. Todo o sistema religioso tem a experiência religiosa como referência, como ponto de culminância e ponto de partida.
Berkenbrock (2011, p. 23) ressalta como a experiência religiosa foi desprezada após a Teologia Escolástica, por ser um processo individual e subjetivo, valorizando-se a partir daí uma Teologia baseada nos textos escritos e na racionalidade. Veja:
[...] a experiência religiosa individual recebeu – principalmente após a estruturação da Teologia Escolástica – muito pouco espaço ou importância como elemento da reflexão teológica. A experiência religiosa foi relegada ao campo da piedade ou devoção pessoal, ao campo da vivência da espiritualidade e não da reflexão; por outro, a experiência religiosa era entendida como algo tão subjetivo que não poderia contribuir para a objetividade (e certa neutralidade cientifica) exigida por uma determinada ciência, como a teologia. Há também um componente político nesta compreensão, pois a teologia cultivada pela instituição não dava espaço ao sentimento subjetivo, entendo a compreensão teológica como uma reflexão sobre a verdade instituída.  Esta situação tem se modificado desde fins do século XX, quando aos poucos, a experiência religiosa tem ganho paulatinamente cidadania [...] [...] Independente de quão valorado é hoje a experiência religiosa, uma coisa é certa: ela não mais pode ser desprezada na reflexão teológica como um dos elementos para se pensar a lógica religiosa.
De fato, segundo Gonçalves e Jorge (2012, p. 5-10) o transe é elemento fundamentante para a cosmovisão das religiões afro-brasileiras. É uma prática ritual complexa, mas não é acessível a todos, pois requer características individuais[31].
Segundo as autoras[32], “o transe pode ser facilitado pelos sacerdotes e magos, por seus cânticos, encantamentos ou mesmo por bebidas rituais, como é o caso da bebida jurema, álcool e tabaco.”[33] De acordo com suas pesquisas, há coisas que são de cunho coletivo (aprendizagem)[34], como por exemplo, as danças. Esses atos não são reproduzidos mecanicamente, mas são observados, apropriados e vivenciados. Segundo a sacerdotisa entrevistada por essas pesquisadoras, o corpo é expressão da espiritualidade. A música, o canto, a dança, o transe e a possessão são vistos como expressão da espiritualidade. O corpo é conexão do homem com o mundo dos Orixás. É o corpo que promove o encontro entre essas duas dimensões, a material (hominal) e a espiritual (Orixás).
A mesma sacerdotisa, ao ser questionada como sentia o corpo no momento do transe diz:
Você tem durante o transe uma redução do seu estado de consciência pleno, então você não tem o controle absoluto do seu corpo. É importante frisar que há diferença entre a incorporação e o transe em si, são coisas distintas. Mas é impossível ensinar algum filho de santo a entrar em transe, a ter uma incorporação porque o transe possibilita o encontro de dois planos de existência e a liberação do inconsciente individual e coletivo, o que torna impossível você ter controle, cada pessoa tem uma expressão particular e cada Orixá ou entidade vai se manifestar também segundo as particularidades das pessoas. Aprender a dançar é uma coisa, aprender o transe é impossível. (GONÇALVES; JORGE, 2012, p. 8)

Portanto, o transe depende de características que não são adquiridas nos terreiros, e não pode ser ensinado. “O corpo no momento do transe é um veículo para manifestação do transcendente e este irá guiar o indivíduo, a entidade espiritual é quem ensina e domina seu cavalo de santo ou médium”. (GONÇALVES; JORGE, 2012, p. 10). E mais, os parâmetros norteadores do médium e de sua atuação mediúnica são os aspectos espirituais e a entidade espiritual atuante. Não há aprendizado nisso.
O conceituado autor W. W. da Mata e Silva (1987, p. 58-70) enfatiza a importância da mediunidade/transe na Umbanda:
[...] ser um médium de Umbanda, isto é, um veículo dos espíritos de caboclos, preto-velhos e outros de dentro da faixa é uma condição excepcional, por ser, por sua vez, consequência de uma escolha especial, feita no plano astral antes mesmo do espírito encarnar [...] [...] função mediúnica exclusiva militar na Corrente de Umbanda e sobre aparelhos pré-escolhidos, desde quando desencarnados [...]
Francisco Rivas Neto (2012, p. 116) afirma que:
As Religiões afro-brasileiras são de transe, seja ele de possessão, mediúnico ou anímico. Não entraremos nos pormenores desse tema agora, mas afirmamos que todos eles se aliam a fatores terapêuticos, pois permitem que o material do inconsciente transite traduzido e decodificado para o consciente, possibilitando um estado superior de consciência (consciência ampliada).

Considerações Gerais

Discutir o valor do transe para as religiões afro-brasileiras pressupõe encarar o desafio de reconstruir o inconsciente das três etnias que formaram o povo brasileiro, compreender as diferenças fundamentais entre tempo linear e circular, tradição escrita e tradição oral, monoteísmo e politeísmo, religiosidade e experiência religiosa nas diferentes culturas.
Se analisarmos tão e exclusivamente as diferenças existentes entre as duas formas de se tratar o transe pela ciência e pelas religiões afro-brasileiras, já podemos notar o quanto é difícil chegar a um consenso. O transe é definido pela ciência como estado alterado de consciência (EACs), algo que altera o estado consciente, vigil. As religiões afro-brasileiras definem o transe como estado superior de consciência (ESCs), considerando que o transe eleva o nível de consciência. Enquanto um o rebaixa, o outro o eleva.
Também foi fácil notar que o transe, quando ocorre em religiões afro-brasileiras ou culturas ditas politeístas, é visto com algo primitivo e negativo. Contudo, se o transe ocorrer entre as culturas monoteístas, ele será considerado divino, superior, místico.
Também foi fácil perceber como os médiuns foram tratados de diferentes formas ao longo da história. A princípio, enquanto predominavam as culturas politeístas, desfrutaram de prestígio e poder. Na medida em que as culturas politeístas foram sendo dominadas, e o monoteísmo implantado, eles foram desprezados, desacreditados, difamados, e posteriormente perseguidos, presos e até mesmo mortos.  E ainda hoje sofrem perseguições de alguns segmentos religiosos e preconceito social.
Nas religiões afro-brasileiras, o adepto é considerado importante fonte e meio para o contato com o sagrado, confrontando com as religiões monoteístas que apresentam um vínculo de dependência à vontade de Deus e seus representantes. O conhecimento, ao ser transmitido oralmente, permite uma maior mobilidade e uma ressignificação contínuas.
Quando se analisa o transe, possessão e êxtase religioso nas Tradições Orais e Escritas, observa-se o desmonte da Tradição Oral pela Tradição Escrita. Repudia-se o transe, porque ele possibilita o contato direto com a divindade, dispensando intermediário. Esse contato direto com o sagrado passa a ser  demonizado pelo monoteísmo, que passou a ensinar que somente se chega à divindade por meio do exercício das leis e das práticas religiosas e morais.
Convém também considerar que o transe só foi estudado com a chegada do Espiritismo no Brasil, visto que foi trazido pela alta estirpe brasileira, culta e rica, representando a cultura europeia, com entidades normalmente respeitáveis, educadas e nobres, que destoavam sobremaneira dos modos simples das entidades dos cultos afro-brasileiros, representados por sua vez, pelos caboclos, pretos velhos, crianças, boiadeiros, marinheiros, baianos, e o que dizer de Exu?
Há evidências de que este repúdio ao transe das religiões afro-brasileiras, que expressa a religiosidade popular, é mais uma forma de exclusão, que ultrapassando a barreira social, atinge neste momento, também a religiosa.
Transe “cheirando a perfume francês” é mais aceitável que “cheirando a arruda e guiné”.  

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[1] Graduanda em Teologia Umbandista pela Faculdade de Teologia Umbandista (FTU). E-mail: jn.negrao@uol.com.br
[2] Incluem uma variedade de fenômenos, tais como transe, êxtase, possessao, e mediunidade, também podem ser incluídos os “estados de graça”, dissocição, experiência mística, iluminação, consciência cósmica, renascimento, etc. (DALGALARRONDO, 2008, p. 173)
[3] RIVAS NETO, F. Escolas das Religiões Afro-brasileiras. São Paulo: Editora Arché, 2012, p. 48.
[4] O médium sempre exerceu fundamental papel por canalizar as curas e as mensagens de entidades para a comunidade, desempenhando o papel de terapeutas na Grécia, Roma, nos templos de Asclépio, no Egito, Fenícia, Cartago, etc. Estes médiuns de cura logram muitas vezes mais êxitos com os seus dogmatismos e tabus do que os psicoterapeutas oficiais, reticentes em suas afirmações e atitudes e, particularmente, sem os proclamados poderes espirituais. (Câmara, 2005, p. 18)
[5] Deuteronômio 18, 9-14.
[6] GOODY, Jack. O roubo da história. São Paulo: Editora Contexto, 2012, p. 32.
[7] Priore (2004, p. 52) cita que Padre Nóbrega foi quem primeiro registrou o fenômeno da intensa atividade religiosa dos profetas indígenas no litoral brasileiro. Foi o primeiro a usar a palavra santidade para designá-lo, escrevendo da Bahia em 1549. Observou o jesuíta que, com intervalo de alguns anos, feiticeiros percorriam as aldeias dizendo trazer santidade, sendo recebidos com grandes festas e danças. Ao anúncio da visita, os moradores limpavam os caminhos e preparavam-se para a festa. Entre as mulheres, a aproximação do pajé produzia efeito singular: a correr, “de duas em duas desandavam pelas casas, dizendo publicamente as faltas que fizeram a seus maridos umas às outras, pedindo perdão delas”. Recebido com choro ritual e danças, o recém-chegado escolhia para a celebração das cerimônias uma maloca especial, que Nóbrega chamou de casa escura, e se instalava na parte mais conveniente, segurando um maracá. Falando com voz de menino, convencia os que o rodeavam de que era a cabaça que falava e começava a pregar. Dizia que se aproximava o tempo em que os mantimentos brotariam naturalmente da terra e as flechas iriam por si mesmas em perseguição da caça. As velhas encarquilhadas voltariam a ser moças e belas. Os guerreiros alcançariam vitória fácil na guerra fazendo muitos cativos. Que não tivessem receio dos brancos: todos eles estavam prestes a transformar-se em animais de pena e pelo, para alimento da tribo. Para adquirir o espírito da santidade, a assistência tinha de se deixar defumar e assoprar. O pajé punha-se a fumar tabaco (chamado também petum e erva-santa), atirando baforadas de fumo ao rosto dos aspirantes. Devidamente assoprados e defumados, os homens começavam a suar e tremer, enquanto as mulheres mais sensíveis rolavam por terra em convulsões. Estas práticas estiveram presentes na Colônia ao longo de todo o século XVI e XVII em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo.
[8] “Há um considerável consenso de que esses estados são amplamente generalizados nas sociedades humanas, tanto ancestrais como contemporâneas. De modo geral, nos dias atuais não se interpretam esses fenômenos como centralmente psicopatológicos; são estados culturalmente constituídos e sancionados com diferentes repercussões (psicopatógicas ou não) sobre os indivíduos. As EACs incluem uma variedade de fenômenos, tais como transe, êxtase, possessão e mediunidade, também podendo ser incluídos os fenômenos denominados  estados de graça, dissociação, experiência mística, iluminação, consciência cósmica, renascimento, etc. (DALGALARRONGO, 2008, p. 173). Para maiores informações: Bourguignon (1977) e Peters-Price-Williams ( 1983, p. 5-39).
[9] Psiquiatra renomado e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.  Ele criou a classe diagnóstica intitulada Delírio Espírita Episódico.  Esta nova doença foi apresentada na França em um Congresso de Psiquiatria, mas parece não ter sido valorizada, pois não foi utilizada pela Associação Americana de Psiquiatria na compilação do Primeiro Manual de Diagnóstico de Saúde Mental (DSM) em 1952.
[10] Médico (Maranhão, 1896-1897) e pesquisador que dedicou-se como cientista convicto ao estudo dos fenômenos de possessão nos cultos afro-brasileiros em terreiros de Candomblé de Salvador/BA.
[11] Entre suas conclusões, o estado de possessão é resultado de alteração qualitativa de consciência causada por sugestão e manifestada por estado sonambúlico, modificações nesse estado por meio de respostas verbais e físicas dadas às injunções sugestivas feitas por uma figura de autoridade, assunção temporária de outras identidades, confusão mental ou sonolência, além de grande desgaste físico e amnésia ao sair do processo. Além dessa forma clássica do estado de santo, notou que as manifestações poderiam ser frustras ou incompletas, mas também se prolongarem em “delírio furioso e duradouro”, o que ele considerou “desvios, aberrações do verdadeiro estado de santo”.
[12] Fundador do Hospital do Juquery/SP, e da primeira sociedade de psicanálise da América do Sul, primeiro professor da cadeira de Neuropsiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo (USP).
[13] Segundo Almeida (2008, p. 7), as teorias de dissociação mental histérica e dos automatismos psicológicos de Pierre Janet (1859-1947) foram as mais adotadas pelos psiquiatras da época para explicar o mediunismo. Janet considerava que na atividade mental normal haveria uma função de síntese que integrava as percepções sensoriais vivenciadas e transformadas em ideias conscientes. Nos histéricos, ocorreria uma fraqueza psíquica constitucional dessa função integradora, de maneira que eles eram mais sensíveis a se dissociarem por meio de sugestão ou em situações traumáticas; a teoria dos automatismos psicológicos explicaria os comportamentos nas crises dissociativas, quando “ideias fixas subconscientes” seriam reproduzidas (RODRIGUES, 1935, p. 78; MOREL, 1997, p. 130).
[14] O “médium receitista” era o indivíduo que inspirado por um espírito, diagnosticava doenças e prescrevia tratamento, geralmente fitoterápicos.
[15] Rivas Neto (2012, p. 49 e 83)
[16] Artigo 156 – pune a prática de medicina por indivíduos desprovidos de título acadêmico. Artigo 157- condena práticas de “magia e seus sortilégios” e o uso de “talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública”. Artigo 158- punia o exercício de curandeirismo.
[17] Rivas Neto (2012, p. 49 e 83).
[18] Brown (1985, p. 10): Segundo Brown, não se pode afirmar com certeza absoluta que Zélio tenha fundado a Umbanda. A data da primeira manifestação do caboclo das Sete Encruzilhadas passou a ser aceita pela maioria dos umbandistas, como marco inicial. Ver também: CHATELAIN, H. Folk Tales of Angola. London: The American Folk Lore Society, 1894, p. 268. Chatelain já dava uma definição para o termo Umbanda.
[19] psiquiatra de Recife incentivou Gilberto Freyre a organizar o 1º Congresso Afro-Brasileiro em 1934, em Recife.
[20] No artigo Tratamentos religiosos das doenças mentais (1975), Pinho estudou 60 pacientes psiquiátricos. O autor coletou 11 categorias diferentes de etiologia: 23% encosto, 15% feitiço, 12% esgotamento, 7% mediunidade não resolvida. Quanto ao tratamento, 1/3 buscou ajuda com tratamento médico, 2/3 inicialmente buscaram tratamentos populares, principalmente no candomblé de caboclo 47% e “centros espíritas kardecistas” 42%. (ALMEIDA, 2007, p. 11)
[21] ALMEIDA, 2007; RAMOS, 1937; CALDAS, 1929; MOREL, 1997; RODRIGUES,1935; OLIVEIRA, 1931; RIBEIRO,1937, 1952, 1956, 1957; RIBIERO e CAMPOS, 1931.
[22]No Brasil, realizou-se um dos estudos provavelmente mais cuidadosos relativos à avaliação da saúde mental de pessoas classificdas como médiuns espiritas. Alexander Moreira de Almeida (2004) entrevistou cuidadosamente um grupo de 115 médiuns espíritas na cidade de São Paulo, aplicando a eles o Self-Report Psychiatric Screening Questionnaire(SQR-20) e a Escala de Adequação Social (EAS). Identificou 12 sujeitos (7,8%) com provável psicopatologia e comparou-os com 12 sujeitos normais. O autor verificou que o grupo de 115 médiuns apresentava baixa prevalência de transtornos mentais e boa adequação social. Os médiuns não apresentavam, também, o transtorno de identidade dissociative. Assim, pode concluir que a mediunidade, pelo menos no context espírita brasileiro, não se associa nem a transtornos mentais (incluindo os transtornos dissociativos da personalidade), nem a dificuldades de adaptação social”. (DALGALARRONDO, 2008, p. 175)
[23]A memória oral dos povos africanos não valia tanto quanto aquela que permitiu aos gregos conceber a Ilíada e a Odisséia”. (PRIORE, 2004, p. 1)
[24] Segundo Rivas Neto (2012, p. 48) as religiões de tradição oral são politeístas, multirreferenciais, polissistemáticas e, portanto, policêntricas. Politeístas porque não utilizam uma única divindade, mas um panteão, cada um com sua importância, daí a multirreferencialidade. São polissistemáticas porque não há uma única forma de realizar um rito, mesmo que ele seja destinado à mesma divindade. E policêntrico porque não há um único modelo a ser seguido, exemplo disso são as religiões afro-brasileiras, com suas inúmeras escolas[24] (Culto da Jurema, Candomblé de Caboclo, Toré, Xambá, Babassuê, Xangô, Tambor de Mina, Umbanda, Candomblé, Catimbó, Batuque, Omolocô, Umbanda, etc.).
[25] GOODY, 2012, p. 24-25.
[26]O tempo nas culturas orais era contado de acordo com fenômenos naturais: a progressão diária do sol, sua posição na esfera especial, as fases da lua, o transcorrer das quatro estações.” (GOODY, 2012, p. 24)
[27] O termo superstitio tem origem no latim, e significava prática incorreta de um rito, antítese portanto, do termo religio. A superstição não estava ligada à crença, mas à prática. Durante a Reforma, religio foi ligada à fé crista comum e à confissão, e o termo superstitio foi alterado para magia, prática malefica e ignorante. (HOCK, 2010)
[28] Mircea Eliade fala do Homo religious, para quem tudo é dotado de significado religioso, o Cosmos vive e fala. Este homem busca a transcendência na imanência, experimentando o Sagrado. (ELIADE, 1996, p. 17). Humberto Eco fala da religiosidade laica como a crença em formas de religiosidade, e logo, sentido do sagrado, do limite, da interrogação e da espera, da comunhão com algo que nos supera, mesmo na ausência da fé em uma divindade pessoal e providente (ECO in DALGALARRONDO, 2008, p. 17). Max Weber fala do ouvido religioso que, assim como o ouvido musical, tem uma sensibilidade especial para perceber de forma discriminada e intuir de forma aprofundada. (WILLAIME; HERVIEU-LERGER in DALGALARRONDO, 2008, p. 17) Segundo Dalgalarrondo, a experiência religiosa remontaria a dois aspectos, um racional, ligado ao pensamento filosófico, que possibilitaria a formação ideológica e teológica, como comumente conhecemos nos púlpitos tradicionais.  E um irracional, que remontaria a um aspecto irredutível e intraduzível, de natureza misteriosa e individual.  Foi a este aspecto que Rudolf Otto (2007) classificou como terrível e fascinante, que geraria e sustentaria a religião.
[29] Estaria aqui o conceito de nível consciencial?
[30] Coordenador de pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG.
[31] “nem todos os seres humanos são veículos de espíritos” (RIVAS NETO, 1994, p. 109)
[32] Consultar também: FERRETI, 1985; CASCUDO, 1988; ASSUNÇÃO, 2010)
[33] Mauss (2003, p. 422) diz “[...] Penso que há necessariamente meios biológicos de entrar em comunicação com Deus.”
[34] Mauss (2203, p. 404) afirma que o “indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado diante dele ou com ele pelos outros.” O habitus é de natureza social. 

Anais do Simpósio  Internacional da ABRH: http://www.abhr.org.br/?page_id=1568

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