sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Religiões da terra e ética ecológica


Dossiê: Biodiversidade, Política e Religião – Artigo original DOI – 10.5752/P.2175-5841.2010v8n17p26
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Religiões da terra e ética ecológica Earth religions and ecological ethics


Resumo

Rosalira dos Santos Oliveira

Na atual discussão sobre a importância de equilibrar a necessidade humana de intervir sobre a natureza com a nossa responsabilidade na preservação da vida no planeta, as chamadas religiões da terra ou religiões da natureza aportam uma contribuição fundamental. Visando explorar essas relações, este artigo discute o impacto causado pelo processo de dessacralização do mundo na percepção do homem em relação ao mundo natural. Nesta linha, contrapõe a atitude teísta (característica das chamadas “religiões do livro”) à perspectiva cosmobiológica presente nas religiões da terra. Em seguida, o texto explora a concepção anímica de natureza e de mundo, compartilhada por essas últimas, destacando a sua concepção de uma natureza viva e a intuição de um parentesco entre o homem e os demais seres. Como exemplos desta postura, o texto apresenta algumas características presentes tanto nas religiões afro-brasileiras quanto nas tradições neo-pagãs. A guisa de conclusão apresenta uma reflexão sobre as relações entre religião e ambientalismo e sobre a possível contribuição que a cosmovisão presente nas religiões da terra pode trazer para o movimento ecológico.
Palavras-chave: Religião; Natureza; Ecologia; Animismo.
Abstract
In the present discussion on the importance of balancing the human need for intervening in Nature with our responsibility to preserve life on the Planet, the so-called Earth Religions or Nature Religions play a fundamental role. With a view to exploring these relationships, this paper discusses the impact caused by the process of desacralising the human beings perception of the world in relation to Nature. Along these lines, the theistic attitude (characteristic of the so-called Book Religions) is opposed to the cosmobiological perspective, present in the Earth Religions. Following on this, the paper explores the animistic concept of Nature and the World shared by these religions. Furthermore, this work addresses to the animic conception of nature and world, shared by the cosmobiologic perspective, highlighting its conception of a live nature and the feeling of a bond between all live been as well as humans. With some example, the work shows some characteristics shared by the afrobrazilian religions and neopaganist traditions. To conclude, we present a reflection on the relationship between Religion and Environmentalism and on the possible contribution that the cosmovision present in the Earth Religions  may bring to the Ecology Movement.
Key words: Religion; Nature; Ecology; Animism.

Introdução: a natureza dessacralizada

Muito já se falou sobre o processo de dessacralização do mundo, parte constitutiva do processo de secularização,1 vivenciado no Ocidente,2 de forma mais aguda durante os séculos XVIII e XIX. Ao contrário do que se possa pensar, a dessacralização do mundo não significou a eliminação da religiosidade nas modernas sociedades ocidentais, mas, sim, a substituição de uma espiritualidade tradicional, baseada na relação entre o homem e a natureza, por outro modo de experiência religiosa, centrado na vida do homem em sociedade. De acordo com Eliade (1984), a distinção entre essas duas formas de espiritualidade remonta ao surgimento das primeiras sociedades urbanas. Segundo ele, a partir desse momento, desenvolveram-se dois tipos de atitudes religiosas: uma fortemente vinculada à vida natural, mais comum entre populações campesinas, e outra mais voltada para a vida social e suas regras, presente com mais intensidade entre as populações urbanas.
Laburthe-Tolra e Warnier (1997) expressam essa diferença de perspectivas através do contraste entre cosmobiologia e teísmo, enquanto atitudes religiosas. Na primeira, afirmam, temos a concepção de um universo (cosmos) visto como uma multiplicidade organizada de seres vivos (bios), diante da qual o homem se situa como diante de um absoluto que lhe escapa, mas ao qual deve integrar-se. A atitude cosmobiológica pressupõe a submissão do homem a uma ordem cósmica na qual ele, assim como os demais seres vivos, ocupa um lugar determinado. Já na perspectiva teísta, o centro de referência deixa de ser o mundo físico, para se tornar uma pessoa divina absoluta, independente do mundo. Assim, enquanto a cosmobiologia aponta para uma perspectiva de imanência, percebendo o divino como parte do mundo físico, o teísmo o situa num outro plano, considerando-o como algo distinto da matéria. Essa diferença de percepção leva os autores citados a afirmar que:
Cosmobiologia e teísmo são atitudes profundamente religiosas, mas para a primeira, da qual o panteísmo é uma forma, o absoluto da vida está incluído no mundo, ao passo que para a segunda, a vida, objeto essencial, remete a um absoluto que ela manifesta, mas que a transcende (LABURTHE-TOLRA; WARNIER, 1997, p. 225).
Convém salientar que, embora estejamos contrastando essas duas atitudes religiosas para efeito de análise, trata-se, na verdade, de tipos ideais, que não possuem uma correspondência inequívoca com as manifestações religiosas concretas. Não existe uma religião puramente teísta ou cosmobiológica, mas antes variadas formas de articulação entre essas perspectivas que se fazem presentes nas diferentes tradições e em suas variantes. Nesse sentido, ainda que reconhecendo suas diferenças, talvez fosse mais acurado pensar nelas em termos de um continuum mais do que de oposições. Entretanto, permanece como critério distintivo a predominância de uma ou outra percepção do divino e sua relação com o mundo físico. Assim, enquanto as ideias religiosas predominantemente teístas apontam para a visão de um deus imortal que cria o mundo, mas não se confunde com ele, a perspectiva cosmobiológica atualiza uma ideia do divino presente e materializado no mundo no qual vive, morre e se transforma.
Estabelecida essa ressalva, voltemos à distinção apresentada por Laburthe-Tolra e Warnier. A partir dela, podemos aprofundar a compreensão do processo de dessacralização da natureza, vendo-o como a substituição paulatina de uma atitude religiosa cosmobiológica – ainda presente no cristianismo medieval – por um teísmo que prega a existência de um deus abstrato e distante da materialidade do mundo. Trata-se, portanto, da perda do sentido do sagrado – entendido como uma produção de sentido que expressa um valor de reverência para com o radicalmente Outro – associado ao mundo físico. Trata- se, enfim, da perda da noção de uma vinculação cósmica do homem, que deixa de ser pensado como aparentado às demais formas de vida, para ser concebido como um ser insular, colocado à parte, único a se assemelhar ao divino.
Ainda que com diferentes matizes, a atitude teísta encontra-se fortemente presente no Cristianismo.3 Ao concentrar a dimensão do sagrado na imagem do homem, as tradições cristãs tenderam a sacralizar a separação deste em relação às demais formas de vida. No caso do Cristianismo ocidental, tal separação trouxe profundas consequências para a mudança de atitude em relação ao mundo natural. Os efeitos dessa transformação foram apontados por diversos autores. No ensaio intitulado “As Raízes Históricas da Nossa Crise Ecológica”, Lynn White afirma que:
O Cristianismo, em contraste absoluto com o antigo paganismo e religiões da Ásia (exceto talvez o Zoroastrismo), não só estabeleceu um dualismo entre homem e natureza como também insiste que é vontade de Deus que o homem explore a natureza para seus próprios fins. (WHITE, 2003, p. 144, 148, resp.).
Essa percepção da natureza como serva designada por Deus para o usufruto dos humanos encontra a sua expressão mais radical na chamada “doutrina das causas finais”. Em uma das suas formulações, essa doutrina afirma que as características do mundo natural – montanhas, desertos, rios, espécies vegetais e animais, etc. – foram todas planejadas por Deus para determinados fins, sendo um dos principais o benefício da humanidade. Desse modo, a nossa responsabilidade como seres humanos consistiria em:
Agradecer essa dádiva e em troca aceitar exercer o controle do planeta, uma aceitação que foi recomendada com insistência por alguns judeus e cristãos já em tempos antigos. Assim a ideia de usar uma Natureza criada para nós, a ideia de controle e a ideia de superioridade humana ficaram desde cedo associadas em nossa história. (EHRENFELD, 1992, p.05).
É exatamente a disseminação generalizada desse ideal de separação e controle que leva White (2003, p.143) a afirmar que “a vitória do Cristianismo sobre o Paganismo foi a maior revolução psíquica na história da nossa cultura”. A forma de ver a natureza foi profundamente influenciada por essa mudança. É assim, por exemplo, que “para um cristão, uma árvore não é mais do que um fato físico. O conceito de bosque sagrado é inteiramente alienígena à cristandade e ao ‘ethos’ do Ocidente”. (WHITE, 2003, p. 148).
A “revolução psíquica” a que se refere Lynn White Jr. não se completou senão com a Reforma. Ao contrário dos católicos, que preservaram muito das antigas formas de espiritualidade e veneração da natureza, os reformadores protestantes denunciaram as práticas rituais, as festividades sazonais, as peregrinações, o culto à Virgem e aos santos como superstição pagã. Os protestantes atacaram radicalmente a perspectiva tradicional de um mundo vivo, permeado pelo poder do espírito. Sua luta era para purificar o Cristianismo. E essa purificação implicava a remoção de todos os traços de magia, sacralidade e poder espiritual do âmbito da natureza e uma redução do domínio espiritual aos seres humanos. Ao final da sua cruzada contra as “sobrevivências pagãs” dentro da Igreja Católica, a Reforma:
Levou a uma redução do domínio espiritual, a uma retirada do espírito, que se afastou das operações da natureza. O domínio do espírito foi concentrado dentro dos seres humanos; o restante do mundo natural restringiu-se a ser apenas o pano de fundo em face do qual era encenado o drama humano. (SHELDRAKE, 1991, p. 33).
Desse modo, a dessacralização da natureza traduziu-se, principalmente, por uma mudança nas sensibilidades. Mudança essa na qual se abandonou a personificação e a divinização das forças da natureza, bem como a possibilidade da intervenção de divindades na origem e na sucessão dos fenômenos naturais. Despida de poder espiritual, a natureza passou a ser vista como um objeto sem vida, sujeita a leis necessárias para cujo conhecimento o saber (e o domínio) se encaminha. Daí em diante, o homem se viu sozinho, único ser consciente num universo mecânico e sem vida.
A teia da vida ou a natureza como presença divina
No outro polo da diferenciação estabelecida por Laburthe-Tolra e Warnier (1997), temos as religiões vinculadas à vida natural, caracterizadas pela predominância da atitude cosmobiológica. O conjunto dessas tradições constitui aquilo que chamamos de “religiões da terra” ou “religiões da natureza”. De forma bastante genérica, podemos dizer que o termo “religiões da terra” se refere ao conjunto das tradições nas quais a divindade (ou as divindades) é vista como imanente e considerada como “estando presente e/ou sendo” um (ou mais) aspecto da natureza. Em comum, possuem uma orientação mística que aponta para uma unidade entre natureza e sociedade, operada através daquilo que Bastide (2006, p.14) descreveu como um estado de participação mística com a natureza: uma relação “na qual o sujeito que contempla se identifica claramente com a coisa contemplada”. (BASTIDE, 2006, p.14).
Essa relação tem como pressuposto uma identidade de substância que perpassa todas as esferas do real: os seres humanos, a paisagem natural, os animais, os mortos e o cosmos. Todos são interligados porque compartilham uma mesma experiência sensível. Todos são “vivos”, uma vez que são habitados por uma vibração que é, em última instância, a fonte e a materialização de toda a vida. Resulta disso, que “não podem existir realmente objetos ‘inanimados’ e é por isso, aliás, que a vida é uma das condições a que toda existência corporal, sem exceção, está submetida”. (GUÉNON, 1986, p.169). Ainda, de acordo com Guénon (1986), esta é uma tradição de pensamento bastante antiga diante da qual a ideia moderna de que existem coisas e seres cuja existência e constituição são apenas corporais constitui uma ruptura surpreendente. No seu entender, podemos utilizar o termo “animismo” para nos referirmos a essa concepção de mundo, apenas se estivermos:
Entendendo por esta palavra só e nada mais, a afirmação de que há nessas coisas elementos anímicos; e ver-se-á que esse animismo opõe-se diretamente ao mecanicismo, tal como a própria realidade se opõe à simples aparência exterior. (GUÉNON, 1986, p. 170).
Para a cosmovisão animista, o mundo material não é uma realidade que basta a si própria, nem algo isolado. Ele “procede totalmente da ordem sutil, por intermédio da qual se liga, sucessivamente, à manifestação informal e depois ao não manifestado”. (GUÉNON, 1986, p.169). Decorre dessa premissa que:
Não pode haver nada nesse mundo corporal, cuja existência não se baseie em definitivo em elementos dessa ordem subtil e, para além deles, num princípio em que pode-se dizer “espiritual”, e sem o qual nenhuma manifestação é possível, seja em que grau for.” (GUÉNON, 1986, p. 169. Grifos nossos.)
A própria existência do mundo constitui prova e expressão dessa força criadora.
Cada objeto cósmico é capaz de falar e, pelo fato de falar de si mesmo, fala também do princípio criador de tudo, da potência que se encontra na origem de toda existência. Afinal, algo só é potência “porque mantém vivo tudo, é fonte de vida e de regeneração da vida quando a morte a ameaça” (ALES BELLO, 1999, apud GHIGI, 2008). Não há, nessa concepção, lugar para uma distinção ontológica entre animado e inanimado, criador e criatura, uma vez que não é possível “distinguir entre ‘coisa’ e ‘potência’: uma coisa se é potente, é a potência, uma vez que se apresenta como plena manifestação da potência mesma” (Idem). Assim sendo, tudo, desde o homem até o mais simples objeto, constitui uma manifestação dessa força. Falando dos movimentos alternativos contemporâneos, Soares (1994) destaca a presença de uma concepção semelhante entre os diferentes grupos reunidos sob essa denominação. De acordo com ele, é a categoria energia – percebida como um elemento em comum entre o homem e a natureza – que atua como mediador simbólico entre os diferentes grupos, permitindo-lhes a intercomunicação.
Na perspectiva das religiões da terra,4 é a natureza que constitui a fonte primeira de toda energia, uma vez que é presença e manifestação direta desse princípio espiritual criador. É esse lugar atribuído ao mundo natural como origem e expressão da força que anima o mundo que pretendemos explorar neste artigo. Para isto examinaremos duas concepções religiosas presentes de modos distintos na sociedade brasileira: as religiões de matriz africana, especificamente o Candomblé, e as releituras das tradições pré-cristãs que se agrupam sob o termo Neopaganismo.5
As diferenças no modo de inserção de cada uma dessas tradições junto à sociedade abrangente exigem um esforço de delimitação. Em que pese a sua extrema diversificação interna,6 as religiões afro-brasileiras constituem tradicionalmente um campo de estudo e de
análise de estudiosos brasileiros. Esse fato, associado à visibilidade de alguns dos seus rituais e à circulação de parte dos seus elementos simbólicos no campo das artes (dança, música, etc.), contribui para certo nível de reconhecimento – ainda que subordinado – por parte da sociedade brasileira.
Bastante diferente é o caso do Neopaganismo, ou simplesmente Paganismo.7 Trata- se de um fenômeno relativamente recente entre nós e ainda pouco investigado no Brasil. A maioria dos trabalhos produzidos a seu respeito concentra-se nos Estados Unidos e na Inglaterra, países onde o fenômeno é mais antigo e possui maior visibilidade social. Mesmo nesses lugares, ainda é limitada a produção acadêmica no campo que vem sendo denominado como Pagan Studies..8 De modo geral, os estudos sobre Neopaganismo tendem a situá-lo dentro de um conjunto mais amplo denominado “Novos Movimentos Religiosos”. O termo agrupa diferentes manifestações9 cujo único elo em comum parece ser o adjetivo “novo”. E é exatamente a “novidade” dessa forma de lidar com o sagrado que os diferentes estudos tentam explicar. Na opinião de Hargrove (1978), a novidade constitui-se no fato de que tais manifestações religiosas trazem consigo “uma inesperada reversão do processo de secularização que muitos pesquisadores julgavam ser um padrão fundamental da nossa cultura”. (HARGROVE, 1978, apud YORK, 1995, p. 6). Sob esse aspecto, continua o autor, o crescimento dessas formas de expressão religiosa pode ser interpretado como uma espécie de “sinalizador”, expressão de uma tentativa de contrabalançar as tendências majoritárias de uma sociedade individualista e hipertecnológica, enfatizando valores como vínculos comunitários, relações interpessoais e integração com a natureza.
No caso do Neopaganismo, essa busca por novos valores se faz através do apelo ao passado. Embora tenha tomado impulso a partir dos movimentos da contracultura nos anos 60, o movimento se autodefine como herdeiro de antigas tradições religiosas – particularmente aquelas dos povos pré-cristãos europeus, como celtas, gregos, germânicos e nórdicos, entre outros. Esse apego a um passado distante leva Margot Adler (1986) a afirmar que:
A maioria dos neopagãos olha para as antigas religiões pré-cristãs europeias, as religiões de êxtase e as religiões de mistério, como fontes de inspiração. (...) Eles recuperam essas fontes, transformando-as em alguma coisa nova, adicionando a elas as visões de Robert Graves, J.R. Tokien e outros escritores de ficção científica e de fantasia, bem como alguns dos ensinamentos e práticas dos povos aborígines remanescentes. (ADLER, 1986, p.44).
Como a citação acima deixa claro, trata-se de uma reconstrução moderna baseada em diversas fontes – históricas, mitológicas, artísticas, etc. – daquilo que, segundo se presume, seria a religiosidade desses povos. No centro dessa reconstrução, dois temas encontram-se fortemente entrelaçados: a imanência da divindade e a consequente sacralização da natureza. Embora o termo Neopaganismo seja, na verdade, uma generalização – uma denominação guarda-chuva sob a qual se abrigam perspectivas religiosas distintas – Druidismo, Reconstrucionismo Saxão (também conhecido como Ásatrú), Xamanismo e Wicca, entre outras –, todo o movimento é marcado por essa afirmação da divindade como imanente encarnada na natureza e nos fenômenos naturais. Esta é sem dúvida, a característica básica do Neopaganismo, o parâmetro que permite delimitar o tronco comum em torno da qual se unem suas diferentes manifestações. É essa ênfase que nos permite aproximar o movimento de uma atitude cosmobiológica, tal como fazem os historiadores Jones e Pennick, para os quais:

Essa nova religião chamada Neopaganismo ou simplesmente Paganismo poderia ser considerada, de modo lato, como uma forma de misticismo da natureza. Uma crença que toma a Terra e todas as coisas materiais como uma teofania, um brotar da presença divina, que em si mesma é normalmente personificada pela figura da Grande Deusa e seu consorte, o Deus ou o princípio masculino da natureza. Entre eles, estes dois princípios são vistos como reguladores de toda a existência e de todo o desenvolvimento. (JONES; PENNICK, 1999, p. 20).

De fato a divinização da natureza, seja na figura do par deusa/deus, seja através de uma miríade de divindades associadas a diferentes aspectos/fenômenos do mundo físico, constitui um ponto em comum a todas as religiões neopagãs. Em consequência, a divindade imanente é encarada como sendo (ou podendo ser) presente e encarnada tanto no ser humano como num animal, árvore ou pedra. É este o sentido do princípio de “perfeita igualdade”, tal como é apresentado na perspectiva do Druidismo contemporâneo. Para o druida, perfeita igualdade significa relacionar-se com Toda criatura, de pedra, madeira ou folha, ou o povo de barbatanas e o povo de penas, os de asas e os de quatro pés, os rastejadores e os deslizadores, os de pelo e os pelados, assim como os humanos vendo a todos essencialmente como espíritos e, portanto, com o mesmo direito à vida, ao respeito e à dignidade. (RESTALL ORR, 2002, p.15).
Perfeita igualdade significa, portanto, o reconhecimento do “parentesco” que une o homem ao mundo. Há uma identidade baseada no fato de serem todos, em última análise, a mesma coisa: espírito. É essa identidade que permite a comunicação entre os humanos e os demais seres, vista não apenas como possível, como também mutuamente desejada. É essa experiência de comunicação que o Druidismo moderno define por “awen”. Geralmente traduzido como “inspiração”, o termo “awen” significa literalmente “espírito que flui”, uma vez que, para os adeptos, é desse modo – através da comunicação de espírito para espírito – que flui a inspiração.
Ainda no campo do Paganismo, os praticantes contemporâneos do Neoxamanismo expressam o seu reconhecimento dessa interconexão através da expressão mitakuya oyasin (para todos os meus parentes),10 que enfatiza o fato de que somos todos fraternalmente conectados, uma vez que “viemos todos dos mesmos avôs: o espírito e a matéria; a terra e o céu”. (WAGNER, 2002). Também nesse caso, é a compreensão do espírito como algo comum a todas as coisas vivas e da vida como sendo a expressão da criatividade do espírito, que orienta essa percepção.
A mesma reafirmação de um vínculo profundo entre o homem e o mundo natural pode ser encontrada na cosmologia e nas práticas rituais das religiões de matriz africana. Aqui o elemento central é a noção de axé. Cada elemento da natureza é portador de axé. Falando sobre o axé, Elbein (1986) afirma que a sua força se mantém e se renova a partir de determinados elementos materiais, podendo ser transmitida aos outros seres e objetos a partir de determinados elementos materiais, nos quais ele se mantém e se renova. Segundo a autora:
O àse é contido numa grande variedade de elementos representativos do reino animal, vegetal e mineral quer sejam da água (doce e salgada), quer da terra, quer da floresta, do ‘mato’, ou do espaço ‘urbano’. O àsé é contido nas substâncias essenciais de cada um dos seres, animados ou não, simples ou complexos que compõem o mundo. (ELBEIN, 1986, p. 41).
Como se vê, é a partir dos elementos dos reinos animal, vegetal e mineral que o axé renasce e é transmitido. Desse modo, preservar esses elementos torna-se uma necessidade fundamental para se preservar o axé. Esta seria uma das explicações para a centralidade dos elementos naturais na simbologia e na ritualística dos cultos afro-brasileiros. A relação entre os homens e os deuses passa pelos elementos da natureza. É uma relação de inferioridade, submissão, de filiação celebrada através de contratos, já que esta se confunde com os próprios deuses (PRANDI, 2005). Uma vez que os próprios orixás estão presentes nos elementos da natureza e nos fenômenos naturais, a sua adoração torna-se parte constitutiva da experiência religiosa. A íntima relação entre orixá e natureza está simbolicamente representada nos altares sacrificiais (assentamentos dos orixás) e em muitos outros elementos rituais. Desse modo, no Brasil: como na África;
seixos provenientes de algum curso d’ água não podem faltar no assentamento dos orixás de rios, confundindo-se as pedras com os próprios orixás. Pedaços de meteoritos, as pedras do raio, no assentamento de Xangô, lembram a identificação deste orixá com o raio e o trovão. Objetos de ferro são usados para o assentamento de Ogum. E assim por diante. (PRANDI, R. 2007, p. 06).
O elemento vegetal é particularmente sagrado na tradição dos orixás. As folhas e raízes constituem parte indispensável dos rituais a eles destinados. Delas, as divindades retiram a energia necessária à manutenção da vida e a devolvem ao adepto reforçando a sua força vital. A conexão entre o devoto e seus deuses se dá pela trituração das folhas para compor banhos rituais – os amacis, omi-erô, abôs –, com os quais os filhos de santo e os objetos do culto são sacralizados. Os filhos de santo também são colocados para dormir, durante suas obrigações, em esteiras cobertas com folhas características de seu orixá e/ou do fundamento que está sendo manipulado. Os alimentos são envolvidos em folhas, e é através delas que os compostos mágicos são potencializados (SILVA, 1995). Cada folha possui virtudes que lhe são próprias, tem uma utilidade prática e uma personalidade:
O candomblé conserva a idéia de que as plantas são fonte de axé, a força vital sem a qual não existe vida ou movimento e sem a qual o culto não pode ser realizado. A máxima ioruba ‘kosi ewé, kosi orixá’ que pode ser traduzida por ‘não se pode cultuar orixá sem usar as folhas’ define bem o papel das plantas nos ritos. (PRANDI, 2007, p.08).
Desse modo, seja através dos muitos ritos que cotidianamente vinculam o adepto das religiões de matriz africana ao seu orixá e aos elementos naturais a ele associados, seja através da busca druídica pela inspiração que flui de espírito para espírito, seja na reverência xamânica para com “todos os nossos parentes”, podemos entrever um outro modo de relacionar homem/natureza. Um modo que expressa a preocupação em reconhecer e sacralizar o nosso pertencimento ao mundo, reafirmando o vínculo que nos une a todos aqueles com quem compartilhamos a vida na terra, todos vistos como expressão de uma mesma força divina.
Esse sentimento de irmandade constitui, para Morin (1997), uma característica central do universo animista, uma vez que este é sempre povoado por “espíritos concebidos de modo antropozoomórfico [enquanto] os seres humanos são concebidos de modo cosmomórfico, isto é, feitos do mesmo tecido que o universo”. (MORIN, 1997, p. 333). A consequência lógica dessa concepção é uma ampliação da noção de pessoa que deixa de designar apenas os seres humanos para incluir também os animais, as árvores, pedras, assim como os deuses, os ancestrais, os espíritos e demais habitantes dos outros mundos. Todos são pessoas, seres autônomos e comunicativos e formam, juntamente com os seres humanos também concebidos como parte do meio ambiente, uma comunidade viva.
Nessa comunidade, a humanidade do homem pode ser vivenciada como parte de um todo. Estamos aqui diante do sentimento de irmandade, de vinculação que identificamos acima como uma das perdas ocorridas com o processo de dessacralização da natureza. Como parte da comunidade, o homem tem obrigações para com o mundo, mas também o poder para intervir sobre ele, sendo, simultaneamente, responsável por e dependente da sua manutenção. Dentre essas obrigações, talvez a mais importante seja a da reciprocidade, a troca que assegura a circulação da energia e, com isso, a manutenção do mundo.
As religiões da terra são marcadas por essa preocupação com a reciprocidade. Os sacrifícios, as oferendas, os rituais sazonais e o culto aos antepassados são algumas das práticas desenvolvidas visando assegurar a comunicação e a integração entre o mundo humano e o mundo natural, ambos permeados por aquele “outro mundo” – dos deuses, dos espíritos e dos antepassados –, e assim vincular a todos nesta comunidade viva. Através dessa circulação de dons recíprocos, dessa troca de energia, a ritualística dessas religiões busca estabelecer uma “comunicação em anel entre a esfera da physys, a esfera da vida e a esfera antropossocial” (MORIN, 1997, p. 334).
É também na reciprocidade que Michel Serres fundamenta a sua reflexão sobre a necessidade de um novo tipo de contrato entre o homem e o mundo: um contrato natural, que não se baseia na posse, nem no domínio, mas na simbiose. Para ele, o direito de simbiose define-se, exatamente, pela reciprocidade: “aquilo que a natureza dá ao homem este deve lhe dar, a ela, tornada sujeito de direito.” (SERRES, 1991, p. 66). Ao contrário do parasita que suga o seu hospedeiro até a morte de ambos, o simbionte reconhece a interdependência básica que vincula os dois parceiros e sabe que “cada um dos parceiros em simbiose deve sua vida ao outro, sob pena de morte”. (Idem, p. 68).

Considerações finais: Religiões da terra e ecologia – celebrando a interdependência

Desde a Rio-92, o papel das religiões no processo de mudança cultural necessário à construção de um ethos – um modo de habitar – sustentável vem sendo profundamente destacado. Um dos exemplos desse reconhecimento pode ser encontrado no discurso final do Secretário Geral das Nações Unidas, o qual não apenas reconheceu a importância da relação espiritual que as culturas antigas tinham para com a Terra, como também falou da necessidade de recuperação desse sentido para a construção do contexto político necessário para se atuar em defesa do futuro do planeta. (apud LEIS, 1995, p. 37). Podemos afirmar que a agudeza e a urgência da crise ecológica nos fizeram atentar para a necessidade de, em termos éticos, sairmos do contrato exclusivamente social para a celebração de um contrato natural (SERRES, 1991). Essa mudança ética implica a adoção de novos valores, e este tem sido, historicamente, um dos campos privilegiados da religião. Não é por acaso que a distinção de Michel Serres entre os dois tipos de contrato traz um eco daquela estabelecida por Mircea Eliade entre uma espiritualidade vinculada à natureza e outra preocupada exclusivamente com a vida social.
Vista dessa maneira, a superação da espiritualidade antropocêntrica aparece como uma condição necessária à construção dessa ética. A incorporação da dimensão espiritual e a defesa do valor sagrado da natureza são vistas atualmente por uma parcela do movimento ecológico como “uma necessidade geral do ambientalismo para completar o seu ciclo evolutivo”. (LEIS, 1999, p. 188). Esta é a posição defendida por Hector Leis, para o qual:

A emergência e o desenvolvimento de um setor religioso e espiritual no ambientalismo não se deduzem de um desejo extemporâneo de alguns de seus membros para transformar o conjunto de suas vertentes num sentido mais sinérgico e cooperativo. Um ambientalismo laico não tem condições de perceber as causas profundas da crise ecológica, nem de avaliar a sua gravidade (...). A crise ecológica não tem alternativas realistas fora de um ambientalismo sustentado numa ética complexa e multidimensional que recupere o sentido de fraternidade, o sentido espiritual da vida social e natural. (LEIS, 1998, p. 83).

Como então, recuperar esse senso de fraternidade para com o mundo? Como reintroduzir a dimensão do sagrado na nossa relação com a natureza? Aqui é preciso salientar que a teologia cristã tem desenvolvido um esforço de reflexão sobre o tema, como o comprovam os trabalhos de pensadores como Maria Clara Bingemer e Leonardo Boff, entre outros. Entretanto, as tradições monoteístas se defrontam com grandes dificuldades na construção de uma espiritualidade que possamos definir como ecológica. Uma delas é o antropocentrismo, inerente à redução da divindade à imagem do homem, o “que o transforma (voluntária ou involuntariamente) numa espécie ‘escolhida’”. (LEIS, 1999, p. 186). Uma outra dificuldade diz respeito ao dualismo divindade/criadora x natureza/criada, que fundamenta a sua teologia.11 E leva à percepção do mundo e da natureza como criações divinas, mas, de modo algum, como a divindade em si.
As religiões da terra não compartilham essas dificuldades. Seu sentido de imanência do divino, seu reconhecimento da presença do espírito em cada ser vivo, seu politeísmo e a polimorfia da suas divindades (simultaneamente humanos e natureza), tudo isso inspira a reverência diante do mundo e o respeito para com todos os nossos parentes. Essa afinidade é percebida por alguns estudiosos como é o caso de Fritjof Capra, para quem a visão ecológica traz, em seu cerne, uma experiência espiritual que, em sua opinião, aproxima-se de algumas tradições religiosas. Diz ele:
Em última análise, a percepção da ecologia profunda é espiritual ou religiosa. Quando a concepção de espírito humano é entendida como o modo de consciência no qual o indivíduo tem uma sensação de pertinência, de conexidade com o cosmos como um todo, torna-se claro que a percepção ecológica é espiritual na sua essência mais profunda. Não é, pois, de se surpreender, o fato de que a nova visão emergente da realidade baseada na percepção ecológica profunda seja consistente com a chamada filosofia perene das tradições espirituais. Quer falemos da espiritualidade dos místicos cristãos, da dos budistas, ou da filosofia e cosmologia subjacentes às tradições nativas norte-americanas. (CAPRA, 1998, p. 26).
Esse sentido de conexão, pertencimento e interdependência está presente, por exemplo, no vínculo estreito que une o adepto das religiões de matriz africana ao seu orixá e aos elementos naturais a ele associados, todos vistos como manifestações distintas de uma mesma energia. Também se encontra presente no conceito de awen - "espírito flutuante" – a inspiração divina, experiência considerada central na vivência dos modernos praticantes do Druidismo.
Por sua perspectiva não dualista sobre a relação homem/mundo, natureza/cultura, essas religiões estão mais próximas da realização de uma ética ambiental ou ecoética, entendida como “o comportamento humano ideal em relação à natureza”. (PELIZOLLI, 2003, p.89). Por conta disso, religiões como o hinduísmo, o xintoísmo, o xamanismo nativo-americano e as tradições neopagãs e as religiões afro-brasileiras, entre outras, têm sido encaradas como fontes de inspiração para a formulação de uma ética ecológica. É o que pensa, por exemplo, Leis (1998) para quem:

Um ambientalismo laico não tem condições de perceber as causas profundas da crise ecológica, nem de avaliar a sua gravidade (...). A crise ecológica não tem alternativas realistas fora de um ambientalismo sustentado numa ética complexa e multidimensional que recupere o sentido de fraternidade, o sentido espiritual da vida social e natural. (LEIS, 1998, p. 83).

Na mesma perspectiva, José Jorge de Carvalho (2005) argumenta que apenas a dimensão do sagrado pode colocar um limite à busca desenfreada pelo lucro e à exploração predatória da natureza. Para ele, o Brasil se apresenta como dotado de grandes possibilidades de contribuir para uma mudança global, uma vez que não só detém uma parte da natureza intacta do mundo como conta também com tradições sagradas que a reverenciam (entre elas o Candomblé, o Xangô e as religiões indígenas). Em sua opinião:

São as religiões da natureza, as religiões xamânicas, as religiões de origem indígena e africana com seus cultos aos ancestrais e às manifestações naturais, as que podem educar as gerações futuras de seres humanos para coabitar com outros seres vivos na terra sem destruí-los e sem destruir a própria terra. (CARVALHO, 2005, p.18).

Em outras palavras, as religiões da terra podem nos ajudar a recuperar o sentido de reverência pelo mundo vivo, reencontrando a dimensão do sagrado presente na natureza. Nesse sentimento de reverência e respeito se atualiza outro sentido etimológico para a palavra religião. Já não se trata de estabelecer uma religação (religare) entre o homem e o divino. Ao contrário, a visão do divino como algo incorporado à matéria e ao mundo físico torna impossível e desnecessário qualquer religare. Não é possível separar o mundo e o divino, da mesma maneira que não é possível separar – e nem religar – coisa e potência. A perspectiva das religiões da terra, com seu sentido de imanência e sua sacralização da natureza, aponta muito mais para o sentido atribuído pelo filósofo romano Cícero,12 para quem a palavra religião provém do termo religiare, que significa refletir, meditar sobre coisas importantes, recolher-se e também cumprir escrupulosamente os deveres com a autoridade superior. No pensamento romano pré-cristão, religiare caracterizava uma atitude oposta a negligenciare, negligenciar. Pensada desse modo, a religião diz respeito àquilo que não pode ser negligenciado, ao conjunto de obrigações aos quais não podemos, sob nenhum pretexto, nos subtrair. Se concordarmos com este sentido, podemos pensar que talvez, no momento atual, a recuperação do cuidado afetuoso e da reverência diante do mundo vivo constitua, realmente, uma obrigação religiosa.

Referências

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Como se afirma, a dessacralização constitui apenas um dos aspectos do processo mais amplo de secularização, o qual implicou na retirada do fundamento divino como fonte de legitimidade das instituições. De forma bastante genérica, podemos definir a secularização, como o faz Jean Pierre Sirroneau (1982), como sendo “a passagem – que se estende por numerosos séculos – de uma interpretação metafísica da realidade para uma experiência e uma interpretação da realidade onde o mundo histórico, social, humano, finito, constitui o horizonte da responsabilidade e do destino humanos” (p.78). Pensado dessa maneira, o processo de secularização teria, então dois aspectos distintos: um aspecto objetivo (a secularização das instituições) e outro subjetivo, que ocorre nas consciências. É este último que será objeto de discussão ao longo deste artigo. Estou usando o termo “ocidental” como uma denominação genérica, querendo referir-me, como o faz Nancy Mangabeira Unger apoiada no pensamento de Heidegger, a certo modo de relacionamento com a realidade em termos de dicotomia, hierarquização e exclusão. Nesse sentido, a palavra Ocidente, mais do que a uma região geográfica determinada, refere-se a um modelo de pensamento que, apesar de dominante, está longe de ser único em qualquer parte do globo.
Poderíamos citar vários exemplos dentro do Catolicismo, desde o sentimento de irmandade com o mundo e seus habitantes, apregoado por Francisco de Assis, até o Catolicismo místico de Hildegard de Bingen, conhecida como a Sibila do Reno. Ambos são considerados por alguns ativistas do movimento ambientalista como precursores de um pensamento que se pode denominar de “ecológico”.

Os termos “religiões da natureza” e “religiões da terra”, aqui usados como sinônimos, designam as diferentes tradições nas quais o mundo natural (seus ciclos, animais, vegetais e/ou características físicas) é visto como presença e expressão do divino. De modo geral, essas tradições são politeístas e têm a compreensão da natureza, seja como um todo, seja em alguns dos seus elementos, como algo sagrado.
Esta escolha se justifica em função de pesquisas realizadas por mim junto a esses dois grupos religiosos, a saber: “Tecendo vínculos com a Terra – Paganismo contemporâneo: percepções, valores e visão de mundo” – tese de doutorado – e “Kossi ewé, kossi orixá: percepções sobre a natureza entre adeptos das religiões afro- brasileiras em Recife e João Pessoa” atualmente em desenvolvimento.
O conjunto de tradições que agrupamos sob o termo “religiões afro-brasileiras” apresenta construções diversificadas conhecidas por vários nomes como: Candomblé, Xangô, Umbanda, Quimbanda, Jurema, Catimbó, Macumba, entre outros. As religiões afro-brasileiras são estruturadas a partir da oralidade, não estando centralizadas em uma doutrina institucionalizada nem possuindo uma organização generalizada que possa conferir a elas um aspecto unificado.


O termo Paganismo vem sendo aplicado a essas manifestações religiosas tanto por adeptos quanto por pesquisadores do fenômeno, tais como Michael York, Nigel Pennick, Graham Harvey, etc. Michael York (2002) considera o Paganismo como uma religião mundial (ainda que multifacetada em função de fatores socioculturais) e vê no Neopaganismo ocidental um aspecto que representa, em termos numéricos, apenas uma fração do fenômeno global.

8No Brasil, onde o movimento ainda é relativamente desconhecido, tem-se como referência apenas alguns trabalhos acadêmicos quase todos dedicados ao aspecto mais conhecido do movimento: a religião Wicca.
O termo “Novos Movimentos Religiosos – NRMs” agrupa diferentes grupos religiosos, a depender da perspectiva adotada por cada autor. Alguns incluem nesse termo tanto as religiões neopagãs quanto as releituras contemporâneas das tradições orientais e os grupos vinculados à “Nova Era”. Outros discordam da inclusão desses últimos, afirmando que os grupos da Nova Era nem sempre assumem um caráter religioso. Outros ainda incluem na categoria “Novos Movimentos Religiosos” também os grupos mais recentemente organizados dentro das Igrejas tradicionalmente estabelecidas, como é o caso dos Neo pentecostais, entre outros.


10 “Para todos os nossos parentes”, a expressão original é atribuída aos povos Lakota.
11 Observe-se a permanência dessa posição mesmo no panenteísmo de um pensador radical como Leonardo Boff. Conforme ele mesmo faz questão de destacar, “o panenteísmo segue distinguindo, ainda que sempre relacionando, Deus e as criaturas. Um não é o outro. Cada qual possui sua autonomia relativa, embora sempre relacionada”. (BOFF, 1993, p. 52)

12 Marco Cícero, “De natura deorum”, (45 a.C.). In: PAWLOWICZ, Basílio. Nosso paradigma cultural – a identidade coletiva. 2008.

∗ Doutora em Antropologia – PUC – São Paulo. Pesquisadora Assistente da Diretoria de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco – PE. País de origem: Brasil. E-mail: rosalira.santos@fundaj.gov.br

domingo, 25 de novembro de 2012

Pai Rivas recebe Cleone Guedes!!!

Pai Rivas recebe Cleone Guedes (filho de Geraldo Guedes, referência da Jurema de Tombamento de Natal/RN) no Congresso Internacional das Religiões Afro-americanas 2012.
Foi com grande alegria que ouvimos o relato da história desta linhagem tão respeitada!
As fotos foram tiradas do Blog de Luiz Assunção.




Pai Rivas entrevista Mestre Cleone Guedes:
Mestre Cleone Guedes é uma referência no nordeste brasileiro dentro do Culto da Jurema. Filho carnal de Mestre Geraldo e iniciado na Jurema por Mestre Carol, também foi feito no Nagô e no Keto. Hoje, é o responsável pela casa de seu pai. 
Mestre Cleone veio ao Congresso Brasileiro de Umbanda, feito pela FTU neste último final de semana, trazido pelo respeitadíssimo antropólogo Mestre Luiz Assunção, onde concedeu esta entrevista, estreitanto seus laços com Mestre/Pai Rivas. Paó às Santas Almas do Cruzeiro Divino que, por meio de Pai Rivas, possibilitaram esta vivência inesquecível!!! Salve à Jurema Sagrada!




Prof. Luiz Assunção lança o Livro "Da minha Folha", com direito a noite de autógrafos!



http://lassuncao.blogspot.com.br/2012/11/congresso-internacional-das-religioes.html

Catimbó - Jurema

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O corpo no transe religioso afro-brasileiro - Teólogas da FTU publicando na ABHR!!! A "visão desde dentro"


O CORPO NO TRANSE RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO 
         
Érica F. C. Jorge
Sumaia Miguel Gonçalves


   “Assim, há tudo a observar, e não apenas a comparar.” 
        Marcel Mauss,1934. 







1. INTRODUÇÃO

A frase acima foi uma das várias que podemos destacar de Marcel Mauss ao realizar seu 
As técnicas do corpo encontrado hoje agrupado com outros tão importantes escritos em 
Sociologia e Antropologia (MAUSS, 2003). 
Consideramos a frase fundamental para discutirmos o trabalho em questão que foi 
pensado primeiramente para entender como os praticantes afro-brasileiros lidam com o 
corpo no momento do transe religioso. 
Atualmente a antropologia apresenta variados métodos que permitem a melhor 
compreensão do meio estudado sem que haja escalonamento e gradações entre as 
possibilidades do estudo das culturas. Entretanto,  é no fazer antropológico 
(DAMATTA, 1990) que nos deparamos com as dificuldades em olhar o outro com 
isenção de valores ou, ao menos, sem construir um modelo comparativo entre várias 
práticas religiosas. 
É por isso que destacamos a frase acima uma vez que assumimos a postura de observar 
e relatar (sem comparar) o que acontece entre as infinitas possibilidades rituais 
existentes nas religiões afro-brasileiras. 
                                                          
O trabalho procura, portanto, compreender a maneira de lidar com o corpo em um dos 
momentos, se não o principal, do ritual religioso afro-brasileiro: o transe. Para isso 
elegemos como estudo a comunidade religiosa Ordem Iniciática do Cruzeiro Divino 
fundada e localizada em São Paulo há 42 anos pelo sacerdote F. Rivas Neto. 
O templo hoje pratica Umbanda Omolocô, uma Escola afro-brasileira (RIVAS NETO, 
2002) que mescla elementos da Umbanda e do Culto de Nação Africano. Nossa 
pesquisa de campo foi realizada pelo método etnográfico, que pressupõe observação 
participante e entrevistas abertas e foi realizada  nos rituais de caboclo e exu que 
ocorrem quinzenalmente no terreiro. 

2. UNIVERSO AFRO-BRASILEIRO: MAGIA E RELIGIÃO 

Algumas temáticas do universo afro-brasileiro foram longamente estudadas como, por 
exemplo, o transe (RAMOS, 1934; BASTIDE, 1958; MOTTA, 1988, BIRMAN, 1995), 
a iniciação (BARROS, 1993; SILVA, 2005), a mitologia dos Orixás (VERGER, 1997; 
PRANDI, 2002), as festas de santo (FONSECA, 1995; AMARAL, 2002) e ervas rituais 
(VERGER, 1995; BARROS, 1993, 2000). Já a relação entre aspectos mágicos e 
religiosos, fundante nesse universo, foi principalmente pontuada por Montero (1986) e 
depois retomada por Lísias Negrão (1996), Antônio Flávio Pierucci (2001) e Arthur 
Cesar Isaia (2011).  

Marcel Mauss ofereceu muito substrato para o estudo da relação entre magia e religião 
que foi abordada pelos pesquisadores acima, desde a publicação de  Esboço de uma 
teoria geral sobre a magia (1903). Seu escrito é, de certa forma, amparado pela teoria 
positivista comteana, a sociologia da religião de Weber e Durkheim, estudos sobre a 
mente primitiva com Lévy Bruhl e a antropologia inglesa de Evans-Pritchard, apenas 
para citar algumas referências. 

Ainda que tenha procurado superar algumas antinomias, Marcel Mauss (1903/2003) se 
preocupou em delimitar o campo religioso e mágico,  embora em muitos casos tenha 
dificuldade ou demonstra a impossibilidade de fazê-lo apontando a complexidade desta 
relação. De qualquer forma, explicita as categorias da magia com base em seus agentes, 
atos (rituais) e suas representações (ideias e crenças): 

A magia compreende agentes, atos e representações:  chamamos mágico o indivíduo 
que efetua atos mágicos, mesmo quando não é um profissional; chamamos representações 
mágicas as ideias e crenças que correspondem aos atos mágicos; quanto aos atos, em relação 
aos quais definimos os outros elementos da magia, chamamo-los ritos mágicos. (MAUSS, 2003, 
p.55) 

Em verdade o primeiro que problematizou a relação entre magia e religião foi Sir James 
Frazer e o fez segundo o espírito científico de sua época, valorizando a primazia da 
razão sobre qualquer outra forma de compreensão e de significado da realidade humana. 
Assim, para Frazer a magia era “um sistema espúrio  de leis naturais assim como um 
guia errôneo de conduta, é uma ciência falsa e uma  arte abortiva”

A mentalidade científica frazeriana escalonava magia, religião e ciência, ficando claro 
que a primeira era a mais grotesca e relativa a um pensamento arcaico, mal elaborado. 
Já a religião era uma etapa mais “evoluída”, apresentando processos de sistematização, 
hierarquia e instituições organizacionais bem definidas. Entretanto, era com o pé 
fincado na ciência que o homem chegaria, para Frazer, a interpretações e explicações 
 verdadeiras e bem fundadas sobre a realidade. A ciência apresentava-se como um 
discurso legítimo e superior. 

O defeito da magia estava em sua concepção errônea  da natureza e de suas leis 
particulares. Frazer sistematizou dois princípios:  a magia imitativa e a magia 
contaminante. A primeira baseia-se na lei que o semelhante produz o semelhante, o 
segundo que as coisas que uma vez estiveram em contato continuam a atuar a distância. 
Daremos exemplos retirados das próprias religiões afro-brasileiras, foco de nosso 
trabalho. As oferendas magísticas visam propiciar bons auspícios. Quando um sacerdote 
oferta, por exemplo, um akassá, ele intenta preservar sua integridade espiritual e física 
assim como dos “seus”. Um assentamento de Ogum, por exemplo, se constitui por 
trazer a força guerreira e ativa deste Orixá para aqueles que o estão cultuando. É o 
semelhante produzindo o semelhante. 

Já a magia contaminante ou por contiguidade pode ser exemplificada quando um 
sacerdote oferta a um adepto um objeto particular, um colar, anel, talismã, a fim de que, 
aquele material mesmo a distância, possa veicular suas vibrações. O adepto não viveria 
com o sacerdote, mas com suas vibrações já que estas estão retidas no objeto. 
Frazer define religião como a conciliação dos poderes transcendentes ao universo 
humano (FRAZER, 1996). Assim, a religião teria dois aspectos fundamentais, um 
teórico e um prático: a crença nos poderes superiores ao homem e a necessidade prática 
de manifestação dos mesmos pelos rituais, fossem estes sacrificiais ou de recitação de 
orações. Frazer afirmava que a religião diferia da magia e da ciência, pois estas estavam 
pautadas em leis rígidas, processos invariáveis, que não poderiam ser alterados por uma 
súplica, ameaça ou intimidação, enquanto a religião pretendia alterar o curso das coisas 
suplicando às divindades. De todo modo, mais uma diferença aparece aqui. Enquanto a 
magia preocupa-se em coagir, a religião procura suplicar. Na magia a força está nos 
magos, indivíduos com notáveis poderes para atuar nos elementos da natureza visando 
um fim prático. Na religião a centralidade está nas divindades, com poderes 
sobrenaturais e que regem toda a coletividade. O sacerdote é apenas o intermediário 
entre os mundos. O mago faz. O sacerdote pede. 

Após Frazer, é possível posicionarmos Émile Durkheim no que tange ao estudo da 
relação magia e religião. O sociólogo aponta que a magia também possui seus ritos e 
crenças como a religião, porém mais rudimentares  (grifo nosso), pois que visa fins 
técnicos e utilitários. (DURKHEIM, 1996). Segundo o autor, “o mágico tem uma 
clientela, não uma igreja, e seus clientes podem perfeitamente não manter entre si 
nenhum relacionamento”. (ibidem, 1996:29). Uma grande marca da magia seria então, 
para Durkheim, o clientelismo.  

Já a religião ele define como “um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a 
coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma 
comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a eles aderem”.  (ibidem, 
1996:32). A religião estaria vinculada à suposição bipartida do mundo, aliás, Durkheim 
coloca esta como uma das características do fenômeno religioso, sendo o sacerdote o 
responsável por intermediar o mundo sagrado com o profano. Já o mago atuaria com a 
manipulação de elementos e forças da natureza visando fins práticos, objetivos, 
materiais.  

A razão de evocarmos esta tradição antropológica e sociológica para a presente análise 
reside no fato de que estamos lidando com o universo afro-brasileiro, o qual se constitui 
justamente pelo imbricamento entre as relações mágicas e religiosas. Em nossa pesquisa 
de campo, ao observarmos os rituais e ficou claro que há tanto atos mágicos quanto 
religiosos. A liderança exerce também papel de mago e de sacerdote. Ora pratica com 
suas forças próprias uma movimentação magística ora invoca e evoca seres 
sobrenaturais, Orixás, caboclos, pretos-velhos, encantados, exus entre outros. É 
importante pontuarmos que este trabalho faz parte de um contexto maior, de uma 
proposta de mapeamento mais amplo da realidade afro-brasileira na capital paulista. De 
qualquer forma, os resultados obtidos até o momento nos sugerem pistas importantes 
para a compreensão do que ocorre neste campo. 

3. O TRANSE E O CORPO NO UNIVERSO AFRO-BRASILEIRO: A 
PESQUISA NA CASA DE FUNDAMENTOS ORDEM INICIÁTICA DO
CRUZEIRO DIVINO. 

O transe é um elemento fundante para as cosmovisões afro-brasileiras. Se por um lado é 
um ato religioso por excelência, por outro não deixa de ser um ato mágico, como nos 
sugere Arturo Castiglioni ao enumerar as qualidades de um mago: 

A qualidade essencial e principal do mago, em todas as suas funções e em todas 
as suas práticas, é, sem dúvida, a de saber provocar em si mesmo e nos demais, 
esse estado de ânimo especial que é necessário para a magia. (...) O estado de 
encantamento se pode provocar por uma série de meios, muitos dos quais 
conhecemos e que todavia são usados para produzir estados análogos, sonhos, 
hipnose, sonambulismo ou alucinação ou nos estados mais simples de redução 
crítica ou de diminuição da consciência. (CASTIGLIONI, 1987, 69).

O transe é, portanto, uma prática ritual complexa.  Atrai seres sobrenaturais, mas é 
fundamental que a pessoa tenha qualidades suficientes para possibilitar o estado 
alterado de consciência. Aliás, “nem todos os seres humanos são veículos de espíritos” 
(RIVAS NETO, 1994, p.109) e, portanto, há uma vasta lista de competências que são 
necessárias para a manifestação de uma divindade no corpo de um ser humano. 

O transe pode ser facilitado pelos sacerdotes e magos, por seus cânticos, encantamentos 
ou mesmo por bebidas rituais, como é o caso da bebida jurema, álcool e tabaco 
(FERRETTI, 1985; CASCUDO, 1962; ASSUNÇÃO, 2010). Nos rituais que participamos 
as bebidas não foram utilizadas para propiciar o transe, ainda que as  entidades as utilizem para outros fins. 

Os transes que assistimos foram mediúnicos e não de possessão dos Orixás. 
Presenciamos incorporações de caboclos e exus. O templo-raiz conforme é chamdo 
possui atualmente 256 filhos de santo, sendo que destes 137 incorporam e apenas 39 
incorporam e atendem mediunicamente a assistência que frequenta o terreiro. Há outro 
templos vinculados ao templo raiz que são denominados agrupamentos. Em trabalhos 
futuros poderemos nos ater ao detalhamento numérico destes. 

A modalidade que presenciamos na pesquisa de campo é concebida como mecânica de 
incorporação semi-consciente ou irradiação intuitiva. Nela, a entidade atua em três 
partes da constituição etéreo-física do médium: a função psíquica, a função sensorial e a 
função motora.  

O sacerdote do templo pesquisado recebe uma entidade ligada ao Orixá Oxalá 
denominada Caboclo Urubatão da Guia, que em alguns terreiros é vinculado ao Orixá 
Oxossi. Encontramos uma descrição da incorporação desta entidade: 

A ligação fluídica magnética dessa entidade com o médium começa pelo alto da 
cabeça, em sua região posterior, fazendo descer uma sensação de friagem pelo 
pescoço até os ombros. Esta se propaga muito rápido pelo tórax, acelerando 
suavemente a respiração e a frequência cardíaca (...) e do tórax desce ao 
abdome, na região do plexo solar, onde se liga em todo sistema visceral do 
médium, dando uma leve rotação harmônica de todo o  corpo, levantando-lhe 
ligeiramente a cabeça, controlando o psiquismo, o sensorial e a motricidade do 
aparelho mediúnico. (RIVAS NETO, 1994, p. 192) 

Ao lermos esta descrição imediatamente nos reportamos a Mauss que analisou as 
técnicas do corpo em diversas sociedades. Aliás, seu ensaio foi o ponto de partida para a 
presente análise. Afinal, seria possível que até as técnicas de transe fossem ensinadas 
culturalmente, fossem aprendidas? Uma vez que elas partem da relação do humano com 
o sobrenatural, com uma realidade diferente da sócio-cultural, como poderíamos 
entender as técnicas do corpo no momento do transe  afro-brasileiro? Na realidade o 
próprio Mauss sugere que há técnicas do corpo que influenciam os aspectos místicos. 
“Esse estudo sociopsicobiológico da mística deve ser feito. Penso que há necessariamente 
meios biológicos de entrar em “comunicação com o Deus.” (MAUSS, 2003, p.422). 

Nosso trabalho não tem a pretensão de fazer o levantamento das possibilidades 
biológico-corporais para facilitar o transe. Antes disso, intentamos questionar se isto era 
viável pela lente de quem praticas as religiões afro-brasileiras. Elegemos o método 
etnográfico, com observação participante e pesquisas abertas, justamente para que as 
representações contidas nas falas dos entrevistados fossem consideradas sob uma 
perspectiva êmica (HARRIS, 1968; GEERTZ, 1983), ressaltando o segmento social ao 
qual o sujeito pertence. A ideia foi, portanto, não falar de e pelos adeptos da religião, 
mas falar com eles. 

Neste caminho, encontramos brilhante ajuda da sacerdotisa da casa pesquisada. 
Perguntamos a ela como os adeptos aprendiam as danças e a lidar com o corpo:  

As danças são adquiridas pelo processo vivencial, por meio dos ritos. Não existe uma 
sistematização do ensino dessas danças. É necessário participar da comunidade para 
que você assimile essa linguagem simbólica. 

Nesta resposta, a prática do ensino das danças estão em conformidade com que afirmou 
Mauss sobre a natureza social do “habitus”. Os hábitos são adquiridos segundo a 
sociedade e a educação cultural. Neste caso, as danças afro-brasileiras até podem ser 
ensinadas pelos pais e mães espirituais mas são melhor apreendidas pelo processo 
vivencial, pelos anos de transmissão da tradição pela oralidade. Ao abordar a questão da 
mimese na infância quando a criança imita os atos bem sucedidos dos adultos nos quais 
confia e que possuem autoridade sobre ela, Mauss afirma que “o indivíduo assimila a 
série dos movimentos de que é composto o ato executado diante dele ou com ele pelos 
outros” (MAUSS, 2003, p. 404). Exatamente o que encontramos nos rituais afrobrasileiros 
e bem informado pela sacerdotisa da casa. Os atos não são reproduzidos mecanicamente, 
mas são observados, apropriados e vivenciados. 

Durante a entrevista aberta também perguntamos como o corpo era visto nas religiões 
afro-brasileiras e como ela sentia seu corpo no momento do transe: 

O corpo nas religiões afro-brasileiras não tem a concepção de ser algo negativo. O 
corpo é uma expressão da espiritualidade, capaz de  ser um veículo dessa 
espiritualidade. Por isso que dentro das religiões  afro-brasileiras há música, canto, 
dança, transe, possessão. São vistos como expressão da espiritualidade. É a conexão 
entre o corpo do homem e o mundo dos Orixás. É interessante querermos criar 
um processo de hierarquização. Isto já está implícito que seja ou material ou espiritual. 
Não temos uma ideia de que esta relação, entre o corpo do homem e a divindade, seja 
de planos de existência, ou seja, não preciso anular meu corpo para ter uma expressão do Orixá. 
É como se fossem duas realidades que se encontram e que nossa consciência mundana, cotidiana, 
pelos excessos de vida social, não permitem esses encontros. Mas eles são sempre presentes. 

Logo que a sacerdotisa nos deu essa resposta percebemos a diferença entre a 
cosmovisão afro-brasileira e a de outros segmentos. O corpo é sacralizado, ele permite o 
encontro do mundano com o sagrado, ele possibilita o encontro entre as duas realidades. 
Então ela foi questionada se sentia seu corpo no momento do transe e se seria possível 
ensinar alguém tecnicamente a entrar em transe.  

Você tem durante o transe uma redução do seu estado de consciência pleno, então você 
não tem um controle absoluto do seu corpo. É importante frisar que há diferença entre 
a incorporação e o transe em si, são coisas distintas. Mas é impossível ensinar algum 
filho de santo a entrar em transe, a ter uma incorporação porque o transe possibilita o 
encontro de dois planos de existência e a liberação do inconsciente individual e 
coletivo, o que torna impossível você ter controle, cada pessoa tem uma expressão 
particular e cada Orixá ou entidade vai se manifestar também segundo as 
particularidades das pessoas. Aprender a dançar é uma coisa, aprender o transe é 
impossível. 

Nesta frase a sacerdotisa respondeu ao problema que nos propusemos estudar. O que 
nos inquietava era entender se existia a possibilidade de ensino, de métodos para entrar 
em transe, pois se assim fosse, qual a importância do mundo sobrenatural? Se tudo fosse 
aprendido socialmente, inclusive o transe, significaria que nas religiões afro-brasileiras 
qualquer um poderia se candidatar a médium, a sacerdote. Mas a resposta foi enfática. 
No transe não estamos no domínio das técnicas. Trata-se de competências, de 
qualidades pessoais para revelar a disposição psíquica, o inconsciente individual e 
coletivo e, acima de tudo, de permitir que uma entidade de outro plano se manifeste.  

Mauss chamava de técnica um ato tradicional e eficaz. “Não há técnica nem transmissão 
se não houver tradição. Eis em quê o homem se distingue antes de tudo dos animais: 
pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral.” 
(MAUSS, 2003, p.407). As danças dos Orixás são técnicas corporais, são assimiladas 
pela tradição de cada escola afro-brasileira e pelo anos de contato com o sacerdote 
responsável por aquela comunidade religiosa. 

Já o transe, ainda que seja fundante no universo afro-brasileiro, não pode ser ensinado 
tecnicamente. E, quando perguntada se no momento do transe haveria maior 
importância dos aspectos espirituais, sociais ou psíquicos, a sacerdotisa respondeu: 

Impossível dissociar isto. As religiões afro-brasileiras não tem o cunho individual da 
espiritualidade. Ninguém se realiza individualmente, assim como elas não tem uma 
divisão estanque dos planos de existência. Dentro desses planos todos estão ligados a 
esta teia. Nossa mente é muito dividida e vê tudo segmentado. A realidade é uma só em 
planos diferentes. No transe as três realidades se fundem. Isso é maravilhoso e único.
Esta última fala também foi bastante indicativa de  como o transe é visto atualmente 
pelos próprios adeptos afro-brasileiros. Se antes, diversos praticantes consideravam que 
a possessão requeria tratamento e por isso procuravam um terreiro de umbanda e 
candomblé, atualmente o mesmo é visto como salutar, já que proporciona um bem estar 
em diversos âmbitos.  

Hoje, o transe não é mais associado à doença. Nina Rodrigues, o primeiro a abordar a 
relação entre o contato cultural e religioso das várias matrizes africanas encontradas no 
Brasil (RODRIGUES, 2008), analisava o transe da perspectiva patológica. Aliás, 
patologia, fetichismo, animismo, histeria, sonambulismo são alguns dos termos 
utilizados pelo iniciador dos estudos sobre o negro no Brasil, e denotam claramente “de 
onde” ele falava. Rodrigues seguia a perspectiva “médico-científica” e naquele 
momento atrelou o transe afro-brasileiro ao desvio, à anormalidade, sendo todas as 
práticas associadas a uma forma primitiva de construir sua cosmovisão religiosa.  

Graças ao desenvolvimento de novas posturas antropológicas e da valorização da 
cultura afro-brasileira no país (danças, culinária, rituais) os próprios adeptos passaram a 
afirmar suas crenças e a compreender melhor as suas práticas. Não é por acaso que o 
Ministério da Educação e Cultura credenciou e autorizou em 2003 o funcionamento do 
bacharelado em teologia com ênfase nas religiões afro-brasileiras, instituição que, 
dentre outras cadeiras, ministra disciplinas sobre o transe, sincretismos e tradição oral 
afro-brasileira. Isto corresponde ao processo sócio-cultural do país, de legitimação de 
elementos da cultura africana pela classe média intelectualizada carioca e paulista 
(PRANDI, 2001). 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Nosso trabalho pretendeu levantar discussões sobre a relevância do corpo no momento 
do transe afro-brasileiro e se era viável que as técnicas de transe fossem ensinadas aos 
filhos de santo. Ainda que tenhamos feito, do ponto de vista metodológico, um estudo 
de caso em um templo afro-brasileiro, consideramos que as posições apresentadas tanto 
nas observações quanto nas entrevistas apontam para um caminho importante de ser 
colocado. 

As religiões afro-brasileiras são de tradição oral, assim, todo o conhecimento 
transmitido é de pai espiritual para filho espiritual, no decorrer das vivências e contato 
constante com a vida de santo e de sua comunidade.  Ainda assim nos questionamos 
sobre a possibilidade das técnicas de transe serem  apreendidas uma vez que um 
elemento primordial entra no contexto: a relação com o transcendente.  

O templo estudado nos trouxe como contribuição o caminho de que o transe não é 
ensinado, diferentemente das danças e toques sagrados. O corpo no momento do transe 
é um veículo para manifestação do transcendente e este irá guiar o indivíduo, a entidade 
espiritual é quem ensina e “domina” seu “cavalo de santo” ou médium. 

Assim, ainda que existam técnicas específicas em outros setores religiosos que 
propiciem o contato com uma divindade (como a técnica da respiração hinduísta, por 
exemplo), este não é o caso na comunidade estudada. Deu-se relevância para os 
aspectos espirituais e para a centralidade da entidade em nortear o médium e sua 
atuação mediúnica. 

Pretendemos continuar com essa pesquisa em outros templos, mas esperamos que os 
resultados e as reflexões apresentadas até o momento possam contribuir para a análise 
do campo religioso afro-brasileiro. 

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