Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos tem sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semi-deuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído.
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fernando Pessoa é inigualável neste poema. Ele desfia um a um os defeitos combatidos pela sociedade, e os assume como seus. Fala com naturalidade de suas mazelas, de sua mediocridade e de seus pesares. Despe-se da máscara social envergada pela maioria de seu tempo. E por que faz isso?
Seu tom amargo e crítico nos faz lembrar o existencialismo de Nietzche, que tudo criticava, e que levantava o véu da hipocrisia social. É impossível não imaginar que ao discorrer sobre todas as questões acima, Fernando Pessoa não estivesse perguntando por que todos viviam sustentando a ilusão de uma vida perfeita, ou buscando desesperadamente fazer acreditar aos outros que viviam uma vida perfeita? Por que procuram esconder dos outros suas reais personalidades, ou quem sabe, esconder de si mesmos o que realmente são ou pensam?
Ao colocar de frente o que as pessoas representam e o que ele é, chama a questão sobre o conflito entre Dionísio e Apolo. Dionísio é o deus grego do vinho, dos prazeres, onde não há regras e leis a serem cumpridas, onde se afloram todos os desejos contidos e resguardados pela moral. E Apolo é o deus da luz, do sol, da música, medicina e profecia. Tudo para Apolo é perfeito e harmonioso. O ser humano vive em profundo conflito entre estes dois pólos, os desejos e as regras morais.
Portanto, o Ideal é propalado como regra imposta por uma convenção social, aceita e praticada incondicionalmente por todos. Papéis condicionados vendidos como verdade absoluta, inquestionáveis, moduladores de uma sociedade que se distancia da verdade, preferindo a superficialidade e a aparência. E sedento por corresponder às expectativas sociais, rejeita-se a si mesmo, preferindo o distanciamento do Eu. Quanto mais distante se está, menos se conhece sobre si mesmo. Passa-se a acreditar que aquela imagem é a verdadeira. Luta-se bravamente para se manter a aparência, enquanto a sua verdadeira índole fica abafada pelas sucessivas máscaras que se tem de usar para cada vez mais esconder de si e dos outros a verdade.
Fernando Pessoa passa todo o poema convencido de que é o único a não rejeitar a si mesmo, embora isso lhe cause a estranha dor da solidão, mas a certeza de que pelo menos conhece a si mesmo.
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