Giselle Guilhon Antunes Camargo (UFSC)
GT:Estudos da Performance
Palavras-chave:Sama – Dervixes Mevlevi – Ordem Mevlevi – Ordem Kubravi
Girar no Sama não é simplesmente girar em torno de si mesmo em círculos. Significa conquistar a sensação de equilíbrio interno e externo, do Céu com a Terra. Esse é o equilíbrio da vida em perfeita comunhão com a Criação [...]. De que adianta fazer giros maravilhosos em torno de um pé se minha vida afunda num caos? [...] Devemos saber que esse é um caminho sufi, que nos confronta com o nosso próprio desequilíbrio. O caminho sufi conduz – através da aceitação do trabalho e da prática constante dos exercícios – a uma abertura para a realização. A tarefa tem a ver com renúncia. Milhares
de tarefas orlam esse caminho e todas elas, juntas, conduzem à domesticação dos egos (nafs).
O parágrafo acima – extraído do livro Sama: a Dança-Giro dos Dervixes ou A Arte do Equilíbrio da Vida, dos alemães Ingrid e Kurt Bauer – sintetiza a experiência pessoal dos autores no processo
iniciático do Sama. O casal, que viajou de motohome para a Turquia em busca dos dervixes giradores ou
Mevlevi, acabou tendo muito mais do que um simples contato com o Sufismo. A maneira vívida como a
experiência é narrada – ao mesmo tempo em que um método prático de ensino vai sendo revelado – situa
o texto entre os mais autênticos e didáticos relatos sufis contemporâneos. A grande contribuição do livro reside, todavia, no campo da pré-expressividade: nele encontramos os princípios e as técnicas (mentais-) corporais extracotidianas que norteiam a práxis – o giro – dos dervixes Mevlevi.
O Sama, como toda arte ou prática tradicional, é ensinado progressivamente, em graus sucessivos, através de passos que podem ser seguidos. É por essa razão que se diz que esse é um caminho que pessoas inexperientes também podem trilhar.
Lembremos, contudo, que dervixes – sejam eles Mevlevi ou de qualquer outra escola sufi – não
são, por definição, atores. (Muito embora alguns atores sejam dervixes!). Eles são, antes, pessoas comuns
que desempenham no mundo os mais diversos papéis e profissões e que escolheram o Sufismo, a via
mística do Islã, como um caminho para o seu desenvolvimento espiritual. Do mesmo modo, a prática do
Sama não tem por objetivo primeiro a (re-) presentação cênica – ainda que alguns praticantes de Sama
tenham se tornado “dervixes giradores” profissionais, apresentando o ritual dançante, artisticamente, em
teatros e salas de concerto.
O Sama é uma dentre as várias técnicas mentais-corporais utilizadas no Sufismo com o objetivo de abrir a mente e o coração do indivíduo para o seu potencial maior. Tanto quanto o zikr (repetição dos nomes de Deus), o Sama é considerado “um meio de liberar a energia espiritual”, ou seja, de “permitir que a parcela de luz divina que jaz adormecida no místico desperte, unindo-se à sua semelhante, no Cosmos”: Cada vez que o coração aspira ao Trono, o Trono aspira ao coração, de sorte que eles se encontram. Cada pedra preciosa (ou seja, cada um dos elementos do homem de luz) que está em ti, provoca em ti um estado místico ou uma visualização no Céu que lhe corresponde [...]. Cada vez que ascende de ti uma luz, desce em direção a ti uma luz, e cada vez que teus raios de luz ascendem, descem, igualmente, em tua direção, raios de luz que lhes correspondem. [...] Se essas energias tiverem ambas, a mesma qualidade, encontrar-se-ão a meio caminho (entre o Céu e a Terra) [...]. Mas quando a substância de luz que habita em ti crescer [...].
A hermenêutica espiritual que rege o princípio do semelhante atrair o semelhante – amplamente
discutida pelo filósofo Henry Corbin, em seu L’homme de lumière dans le Soufisme Iranien – foi fixada
entre os séculos XII e XIII pelo místico persa Najmuddin Kubra e continuada por seu discípulo direto
Alâoddawileh Semnânî. Partindo do pressuposto de que as partes que constituem o ser humano são consideradas fragmentos de suas homólogas cósmicas, Kubra desenvolveu uma fisiologia esotérica ou fisiologia dos órgãos sutis da percepção (lataif), na qual cada órgão ou centro sutil está associado a uma
metafísica da luz que se reflete no Infinito: Em cada parte purificada do homem, se reflete a contraparte que lhe é homogênea, pois as coisas só podem ser vistas e reconhecidas pelas coisas que lhes são semelhantes. Quando a natureza esotérica que designa os gênios e as faculdades se torna pura,
contempla-se nela o que lhe é homólogo no Macrocosmo. O mesmo é verdadeiro para a alma (naf), o intelecto (‘aql), o coração (qalb), o espírito (ruh), a trans-consciência (sirr), o arcano ou centro intuicional (khafi) – o lugar interior onde se revelam os atributos divinos que embriagam [...] – até a consciência profunda (haqq).
A hipótese de que houve influência da Ordem Kubravi ou Kubrawiyya sobre a Ordem Mevlevi
ou Ordem dos Dervixes Giradores – quer através do contato de Rumi (fundador da escola Mevlevi) com
o mestre Shams de Tabriz (discípulo de Baba Kamal, aluno de Kubra), quer através dos ensinamentos de
seu próprio pai, Bahauddin Walad (que, igualmente, recebera ensinamentos de Kubra) – é sustentada por
Michel Random, em seu livro Rumi, la Connaissance et le Secret. Conforme Random é no Adâb altarîqa, um curto tratado sobre iniciação, que Kubra expõe as regras da Ordem Kubravi. Essas regras assemelham-se às prescrições essenciais da Ordem Mevlevi ou Mawlawyyia: os membros da ordem devem usar o manto correspondente à tariqat (escola), sentar-se sobre tapetes de oração e praticar tanto a repetição dos nomes divinos (zikr) quanto a dança mística (Sama).
A influência de Kubra sobre os Mevlevi vai, entretanto, muito além das regras de comportamento (adab) e técnicas de meditação (zikr e Sama) prescritas pelos Sheikhs do Silsila (corrente de transmissão) do Sufismo. Kubra dedicou-se a estudar e a descrever o fenômeno luminoso, fazendo das percepções visionárias um método experimental: conforme a coloração das luzes vistas pelos próprios discípulos em estado meditativo, ou que, emanando destes, fossem percebidas pelo mestre, poder-se-ia saber em que grau de elevação espiritual eles se encontravam. Embora essa metafísica da luz não seja abordada diretamente pela maioria dos estudiosos de Rumi, a ênfase que os Mevlevi dão à ativação do coração sutil (qalb) – órgão fundamental da percepção supra-sensível – demonstra que esse conhecimento iniciático não apenas continuou sendo transmitido através dos séculos, como é, ainda hoje, um dos pontos centrais do esoterismo Mevlevi.
Se, como dissera Kubra, “em cada parte purificada do homem, reflete-se a contraparte que lhe é
homogênea”, então, seguindo essa mesma lógica, o coração (qalb) purificado buscará, ele também, sua
homóloga cósmica. “Cada vez que o coração aspirar ao Trono, o Trono aspirará ao coração”, diz o mestre iraniano. Quando essa atração ocorre – do “Céu celeste” em direção ao “céu do coração” ou “céu
da alma” – ,o coração (qalb) passa a ser chamado de “Espírito Santo”: O Espírito Santo, no homem, é um órgão sutil celeste. Quando lhe é concedida a força concentrada da energia espiritual, ele alcança o Céu e o Céu se imerge nele. Ou, antes, o Céu e o Espírito são uma só e mesma coisa. [...] Ou então podemos dizer: existem, no ser humano, pedras preciosas de toda espécie de mina, e tudo que aspiram é encontrar sua própria mina original e homogênea a elas.
Eis a essência da intuição de Kubra: se as partes que constituem o ser humano são fragmentos de suas homólogas cósmicas; se uma substância só vê e conhece a substância que lhe é semelhante (do mesmo modo que só pode ser vista e conhecida pela sua semelhante); e, se todo semelhante busca unir-se ao seu semelhante; então, a “pedra preciosa”, metáfora do fragmento cósmico no ser humano, buscará ela
mesma unir-se à sua “mina original”, sendo, portanto, capaz de ver e reconhecer apenas a “mina” que foi
sua origem e para a qual todo seu querer e nostalgia se dirigem.
Esta lei – da atração e do reconhecimento mútuos do semelhante pelo semelhante –, exemplificada por Kubra das mais diversas maneiras, baseia-se, essencialmente, na comunicação entre o humano e o Divino, o buscador e o Buscado, o contemplador e o Contemplado, o amante e o Amado: Há luzes que sobem e luzes que descem. As luzes que sobem são aquelas do coração; aquelas que descem são as do Trono. O ser criatural é o véu entre o Trono e o coração; quando o véu é rompido e no coração se abre uma porta para o Trono, o semelhante se lança em direção ao seu semelhante. A luz sobe em direção a luz, e à luz desce em direção à luz, e é luz sobre luz.
Essa breve introdução ao esoterismo de Kubra – trabalho quase arqueológico – conecta, eu
insisto, o esoterismo Mevlevi às suas mais profundas raízes. E são, precisamente, essas raízes que
fornecem os elementos necessários para a compreensão dos princípios que regem a prática do Sama.
Alguns desses princípios foram fixados por Ingrid e Kurt Bauer no livro Sama: a Dança-Giro dos
Dervixes ou A Arte do Equilíbrio da Vida e podem ser expressos nos seguintes termos: o Sama é “a arte
de abrir as asas internas”; “um processo transformador intensivo entre os dois pólos: Céu e Terra”; seu
sentido e objetivo são, através do “equilíbrio do interior com o exterior”, “conduzir o indivíduo à
experiência da energia divina”. Mas o que significa, exatamente, “abrir as asas internas”, “alquimizar os dois pólos, Céu e Terra”, “equilibrar o interior com o exterior”? (Percebem o quanto a hermenêutica Kubravi é capaz de decifrar essas metáforas?)
Se conectarmos o esoterismo de Kubra ao esoterismo de Rumi, podemos, facilmente, deduzir que “abrir as asas internas” significa “liberar a energia espiritual”, ou seja, “permitir que a parcela de luz divina que jaz adormecida no místico desperte, unindo-se à sua semelhante, no Cosmos”.
Notas
1 In: BAUER, Ingrid & Kurt. Sema der Wirbeltanz der Derwische – Die kunst der lebensbalance. Neuhausen
am Rheinfall: Urania Verlags AG, 1993, p. 43-44. (Tradução: Noris Lindeke)
2 O nível que se ocupa de como tornar a energia do ator ou bailarino cenicamente viva, isto é, de como o ator pode
tornar-se uma presença que atrai imediatamente a atenção do espectador é o nível pré-expressivo. Esse substrato
pré-expressivo está como que implícito no nível da expressão, podendo ser percebido pelo espectador. Durante o
processo de treinamento, o ator pode trabalhar no nível pré-expressivo, como se, nessa fase, o objetivo principal
fosse a energia, a presença, o bios de suas ações e não o seu significado: “O nível pré-expressivo, pensado dessa
maneira é, portanto, um nível operativo, não um nível que pode ser separado da expressão, mas uma categoria
5
pragmática, uma práxis, cujo objetivo, durante o processo, é fortalecer o bios cênico do [bailarino] ou ator.”
(BARBA, E. A arte secreta do ator: Dicionário de Antropologia teatral. São Paulo: Ed. Hucitec, 1995, p. 188)
3 KUBRA, Najmuddin apud CORBIN, H. L’homme de lumière dans le Soufism Iranien. Saint-Vincent-sur-
Jabron: Éditions Présence, 1971, p. 84. (Tradução minha)
4 Ver CORBIN, H., op. cit.
5 Nascido em 1145, em Khwarizm, e morto em 1221, em Samarcanda, durante a invasão de Gengis Khan,
Najmuddin Kubra foi um dos grandes iniciados de seu tempo, com discípulos vindos de toda a Ásia Central. Dentre
eles, muitos se tornaram célebres, a exemplo de Bahauddin Walad, pai de Rumi, e Baba Kamal, que é citado como
um dos mestres de Shams de Tabriz, o Sheikh mais importante de Rumi. Além de Najm Râzi, autor de um tratado
místico em Persa, e de Fariduddin Attar.
6 HAMADÂNÎ, ‘Alî apud CORBIN, H., op. cit., p. 80. (Tradução minha)
7 RANDOM, Michel. Rumi, la connaissance et le secret. Paris: Éditions Dervy, 1996, p. 60.
8 Ibidem, p. 81.
9 Trecho do Alcorão. In: CORBIN, H., op. cit., p. 83. (Tradução minha)
10 Ver BAUER, I. & K., op. cit., p. 27; 35; 45-46.
Bibliografia
BAUER, Ingrid & Kurt. Sema der Wirbeltanz der Derwische – Die Kunst der Lebensbalance. Neuhausen am
Rheinfall: Urania Verlags AG, 1993. (Tradução: Noris Lindeke)
BARBA, E. A Arte Secreta do Ator: Dicionário de Antropologia teatral. São Paulo: Ed. Hucitec, 1995.
CORBIN, H. L’Homme deLumière dans le Soufism Iranien. Saint-Vincent-sur-Jabron: Éditions Présence, 1971.
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