Cássia Maria Carloto e Imairo S. Dalla Costa
Cidadania e Mulheres em uma Perspectiva Feminista Cássia Maria Carloto * Imairo S. Dalla Costa ** |
* Assistente Social, docente do Curso de Serviço Social da UEL e doutora em Serviço Social pela PUC-SP ccarloto369@hotmail.com ** Assistente Social, mestre em Serviço Social pela UEL.r |
RESUMO: A proposta deste texto é, a partir de uma revisão bibliográfica crítica a noção liberal de cidadania, introduzir elementos de reflexão propostos por teóricas feministas que trazem para o debate aspectos que consideramos importantes para seu aprofundamento, em tempos de banalização e simplificação do que é cidadania. Estes aspectos referem-se à própria noção que já nasce excluindo as mulheres, ao modo como a cidadania das mulheres é atrelada a uma concepção de lugar e dependência do espaço privado. Por outro lado é no processo de luta por conquista de autonomia que uma nova abordagem, radical, de cidadania ativa é construída e demandada como fator indispensável à construção de relações igualitárias. PALAVRAS CHAVE : Cidadania ativa, cidadania liberal, mulheres e cidadania.ABSTRACT:The proposal of this text is starting from a critical bibliographical revision the liberal notion of citizenship, to introduce reflection elements proposed by theoretical feminists that bring for the debate aspects that we considered important for the engrossing of the debate, in times of banality and simplification of what is citizenship. These aspects refer to the own notion that is already born excluding the women, to the way as the women’s citizenship is harnessed her/it a place conception and dependence of the private space. On the other hand it is in the fight process for autonomy conquest that a new approach, radical, of citizenship activates is built and disputed as indispensable factor to the construction of equalitarian relationships. KEY WORDS: Citizenship activates, liberal citizenship, women and citizenship. A concepção liberal É a partir da crítica à concepção liberal de direitos, que novas abordagens começaram a ser discutidas no contexto dos chamados novos movimentos sociais da década de 1970, introduzindo a noção de cidadania ativa a partir de Hannah Arendt. Soares (2002) apresenta a definição de cidadania ativa e passiva, que é elaborada por Hannah Arendt, Para ela, a idéia de cidadania ativa está no compromisso cívico e na deliberação coletiva acerca de todos os temas que afetam a comunidade política. A cidadania passiva consiste no acesso aos direitos (políticos, sociais, civis), e a cidadania ativa traz a dimensão das responsabilidades que os sujeitos têm com a comunidade política à qual pertencem. (SOARES, 2002, p. 101). Outra definição que a autora apresenta também fundamentada em Arendt, refere-se ao espaço público, “é onde os cidadãos se inter-relacionam por meio dos recursos do discurso e da persuasão, descobrem suas identidades e decidem, coletivamente, acerca de interesse comum” (SOARES, 2002, p. 101). A partir da década de 1980, essa noção emerge como aponta Dagnino (1994), num esforço de “indicar alguns parâmetros do campo teórico e político”. A autora destaca também que a cidadania tem [...] o seu caráter de estratégia política, o fato de que ela expressa e responde hoje a um conjunto de interesses, desejos e aspirações de uma parte sem dúvida significativa da sociedade, mas que certamente não se confunde com toda a sociedade (DAGNINO, 1994 p. 103). Ao afirmar a cidadania enquanto estratégia, a autora quer ressaltar o sentido de sua construção histórica, que se define por interesses concretos e práticas concretas de luta e pela contínua transformação. Ou seja, não há uma essência única nesse conceito de cidadania, [...] seu conteúdo e significado não são universais, não estão definidos e delimitados previamente, mas respondem à dinâmica dos conflitos reais, tais como vividos pela sociedade num determinado momento histórico. Esse conteúdo e significado, portanto, serão sempre definidos pela luta política. (DAGNINO, 1994 p. 103) Essa nova noção de cidadania deriva da experiência dos movimentos sociais urbanos, pois segundo a autora, a cidadania está entrelaçada com o acesso à cidade, e também, dos movimentos de mulheres, negros, homossexuais, ecológicos, entre outros. No interior desses movimentos sociais, há o alicerce para a emergência dessa nova noção de cidadania que Dagnino, cita que é “a luta por direitos, tanto o direito à igualdade como o direito à diferença”. Reforçando o sentido da construção da cidadania como luta e conquista, Vargas (2000 p.173), argumenta que a cidadania aparece, agora mesmo, como terreno de disputa, por seu caráter restringido, parcial, excludente, assim como pelas tentativas e os excluídos de pressionar e negociar a inclusão, requalificando e democratizando o conteúdo dessa inclusão. Nessa nova concepção de cidadania, Dagnino (1994) aponta alguns aspectos, tanto no campo político, quanto no teórico. O primeiro, se refere a noção de direitos, no qual o ponto de partida é a concepção de um “direito a ter direitos”. Essa concepção inclui a criação de novos direitos, que segundo a autora, emergem de lutas específicas e da sua prática concreta, bem como o direito à igualdade e o direito à diferença. O segundo item requer que, nessa nova cidadania, haja a constituição de sujeitos sociais ativos, definido o que eles consideram ser os seus direitos e lutando pelo seu reconhecimento. Nesse sentido, ela é uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos, uma cidadania de ‘de baixo para cima. No terceiro ponto, a autora coloca que essa nova concepção se constitui enquanto uma proposta de sociabilidade, ou seja, novas formas de sociabilidade por meio de um desenho mais igualitário das relações sociais em todos os seus níveis, e não apenas a incorporação ao sistema político no seu sentido estrito. Já no quarto item, a autora argumenta que o processo de construção da cidadania se constitui enquanto afirmação e reconhecimento de direitos. Na sociedade brasileira, se constitui num processo de transformação das práticas sociais enraizadas na sociedade como um todo e se apresenta como, [...] um processo de aprendizado social, de construção de novas formas de relação, que inclui de um lado, evidentemente, a constituição de cidadãos enquanto sujeitos sociais ativos, mas também, de outro lado, para a sociedade como um todo, um aprendizado de convivência com esses cidadãos emergentes que recusam permanecer nos lugares que foram definidos socialmente e culturalmente para eles (DAGNINO, 1994 p. 109). No último ponto, Dagnino apresenta a idéia de que, na nova cidadania há o direito de participar efetivamente da própria definição desse sistema, o direito de definir aquilo no qual queremos ser incluído. Ou seja, a conquista dos direitos de cidadania, “implicará em modificações radicais na nossa sociedade e na estrutura das relações de poder que a caracterizam”. Neste contexto, se insere a reflexão sobre a cidadania feminista, já que as mulheres foram historicamente colocadas à margem da própria construção da cidadania, quanto de seu exercício. Um primeiro elemento dessa reflexão é a crítica da concepção liberal de cidadania. Dietz (1999) expõe aspectos considerados importantes na discussão de cidadania, que ela organiza em quatro pontos. O primeiro ponto refere-se noção de que os seres humanos são agentes autônomos e racionais, cuja existência e cujos interesses são ontologicamente prévios à sociedade. Para o liberalismo a concepção das necessidades e capacidades dos indivíduos independe da condição social ou política, pois para eles o importante é que “entendamos os seres humanos como indivíduos racionais, com seu próprio valor intrínseco” (DIETZ, 1999, p.6). Já o segundo princípio do pensamento político liberal está no dever da sociedade garantir a liberdade a todos seus membros, a fim destes realizarem suas capacidades, constituindo-se, como afirma a autora no “princípio ético central da tradição liberal ocidental” (DIETZ, 1999, p.6). A autora se utiliza de John Stuart Mill que afirma que a única liberdade que merece tal nome é a de perseguir cada qual seu próprio bem a sua maneira na medida em que não tentemos despojar os outros de seu próprio bem ou impedir os esforços feitos por eles para obtê-los. A insistência na igualdade humana é apontada pela autora como a terceira característica, e está vinculada ao princípio da liberdade individual. Fundamentada em Locke, a autora afirma que se deve considerar que todos os homens foram criados iguais, por isso merecem a mesma dignidade e respeito. Também nas teorias liberais como coloca a autora, começa com a pressuposição da perfeita igualdade entre os indivíduos, que está relacionada às argumentações de que a justiça social implica sufrágio igual onde cada pessoa deveria ser levada em conta. A autora afirma que: Este igualitarismo adota a forma do que os teóricos chamam ‘liberdade negativa’, à qual Isaiah Berlin no seu ensaio clássico sobre a liberdade caracteriza como ‘a área na qual um homem pode atuar sem ser obstaculizado pelos demais’. É a ausência de obstáculos a possíveis opções e atividades. Nesta concepção liberal o que está em jogo não é a eleição ‘correta’ nem a ‘boa’ ação, mas simplesmente a liberdade do indivíduo para eleger seus próprios valores ou fins sem que interfiram nos outros, e de com uma liberdade similar para os demais (DIETZ, 1999, p. 8). O quarto aspecto do liberalismo, [...] se dirige ao indivíduo em sua faceta política de cidadão: a concepção de indivíduo como ‘portador de direitos formais’, que estão calculados para protegê-lo da infração ou interferência dos demais e para lhe garantir as mesmas oportunidades ou ‘acesso igual’ que aos demais (DIETZ, 1999, p.8). Segundo a autora, o conceito de direito reforça os princípios da liberdade individual e da igualdade formal, bem como estabelece também a distinção entre o ‘público’ e o ‘privado’ que inspira grande parte da perspectiva liberal sobre a família e as instituições sociais; os direitos individuais correspondem à noção de um âmbito de liberdade privado, separado e distinto do público. Teóricos liberais aceitam a concepção de que determinados direitos são invioláveis e existem no âmbito privado, onde o Estado não pode interferir. Segundo Dietz, a noção liberal do ‘privado’ tem a abrangência do que se tem denominado ‘esfera da mulher’ como ‘propriedade do homem’, bem como mantém “fora da vida do público aquelas que ‘pertencem’ a essa esfera: as mulheres” (DIETZ, 1999, p.9). No contexto de igualdade de oportunidades, de acesso à sociedade de mercado, a liberdade é um conjunto de garantias formais para o indivíduo de que ele (e depois ela) poderão gozar. Ou seja, o significado da cidadania para o liberalismo consiste em como ser membros iguais na esfera econômica e social e como afirma a autora, a cidadania no liberalismo não consiste numa atividade coletiva e política, mas uma atividade individual e econômica. Outro aspecto apontado pela autora é que o gozo dos direitos, para os liberais está. [..] a busca do livre mercado como critério da cidadania, concepções alternativas como a atividade cívica e o auto-governo participativo são deixado de lado. O liberalismo tende a ambas as interpretações: a entender o poder como acesso e a uma concepção da cidadania como liberdade civil (DIETZ, 1999, p.12). A autora afirma que nenhuma destas formulações são adequadas para uma teoria política feminista. Diante do aspecto político em relação à teoria liberal da liberdade, ao papel do Estado, ao público e ao privado, ao capitalismo e à democracia, apresenta as críticas feministas a partir de duas referências: as marxistas e as maternalistas. As feministas marxistas tentam revelar as bases capitalistas e patriarcais do Estado liberal, assim como a opressão inerente à divisão sexual do trabalho. Para estas o embuste feito pelo Estado quanto a garantia dos direitos do cidadão, é que contribui para encobrir a realidade de uma classe dominante masculina que governa. Outro aspecto que a autora pontua quanto as feministas marxistas, está no reconhecimento que, [...] sob a ideologia liberal, há todo um sistema econômico de gênero implantado nas estruturas capitalistas predominantemente masculinas, desde a noção de homem independente e racional até a concepção de âmbitos separados para o privado e o público. (DIETZ, 1999, p.14). Quanto a cidadania, um termo pouco presente nas discussões marxistas, estas feministas partem da análise combinando-a com trabalho, luta de classes e revolução socialista. Para elas a verdadeira cidadania se realiza com a propriedade coletiva dos meios de produção e com o fim da opressão nas relações de reprodução. Estas [...] associam ambas as idéias com a ação revolucionária e o desaparecimento do Estado patriarcal. Na sua visão da cidadania, tendem a restringir a política à luta revolucionária, as mulheres à categoria de ‘reprodutoras’ e a liberdade à realização da igualdade econômica e social e à derrota da necessidade natural (DIETZ, 1999, p.14). A análise feminista-marxistas, segundo Dietz, revela as insuficiências na visão liberal, [...] em particular no ponto de vista predominante por ela defendido sobre o trabalho das mulheres e a confiança que conferem à lei, ao Estado, aos grupos de interesse e às reformas instituídas pelo Estado como fonte de justiça social, igualdade individual e ‘acesso’. A vantagem do ponto de vista feminista-marxista não consiste unicamente na crítica que faz ao capitalismo, na qual revela o caráter explorador e socialmente construído do trabalho das mulheres, como também na sua crítica política que estabelece um desafio à suposição liberal e o arbitro legítimo da mudança social. (DIETZ, 1999, p.14). As teóricas feministas marxistas também defendem que a libertação das mulheres será possível unicamente quando o Estado liberal for derrotado, e for desmantelada sua estrutura capitalista e patriarcal. Nesse sentido, uma das conseqüências que se seguirá, será o fim da divisão sexual do trabalho, levando a uma política feminista posterior ao liberalismo. Outro entendimento da maioria dessas teóricas, é que para elas “esta política é o reordenamento igualitário do trabalho produtivo e reprodutivo e a construção de relações humanas verdadeiramente liberadoras, umas sociedade de ‘produtores de valores de uso que não tenham propriedades’” (DIETZ, 1999, p.14). Dietz reconhece a importância da critica feminista-marxista principalmente quando esta aponta que é a igualdade econômica e a justiça social que conferem poder as pessoas, mas chama a atenção para o limite da discussão sobre a perspectiva libertadora. Para autora o que fica acentuado é uma imagem de liberdade econômica e não política, “ além de uma sociedade de seres sociais autônomos e satisfeitos e não um governo de cidadãos”. A política feminista nesta perspectiva se detém apenas na luta revolucionária contra o Estado, que pode contemplar as relações de dominação de classe, mas não as de gênero e raça-etnia, que conforme afirma Saffioti (1997), não são indissociáveis, mas formam um nó. Já as teóricas feministas maternalistas, identificam-se com uma concepção da consciência política feminista assentada nas virtudes da esfera privada das mulheres, primordialmente na maternidade. Afirmam também a necessidade de referir-se às mulheres como mães e não como reprodutoras. As feministas maternalistas, assim como as marxistas, evitam a noção liberal do cidadão como portador individual de direitos protegidos pelo Estado, pois esta noção é “moralmente subversiva já que descansa em uma concepção claramente masculina da pessoa como ser independente, interessado em si mesmo e econômico” (DIETZ, 1999, p.16). Afirma também, que para as maternalistas, a cidadania está relacionada às virtudes da maternidade o ‘molde’ de um novo mundo público mais humano, tais virtudes são o amor, atenção, compaixão, cuidado e absorção. Trazem também uma reflexão sobre a rígida distinção liberal entre o público e o privado e consideram que o privado pode ser o lugar de uma possível moralidade pública e um modelo para a atividade da própria cidadania. Para Dietz, há uma perspectiva feminista nesta corrente, quando reconhece a experiência das mulheres como mães no âmbito privado, como doadoras de uma especial capacidade e de um imperativo moral para contradizer tanto a concepção individualista do mundo masculino e liberal, como sua noção masculinista de cidadania. A crítica de Dietz a essa corrente é que a mesma sofre dos mesmos problemas que todas as teorias que afirmam que um lado da oposição é superior ao outro. Correm o perigo de cometer o mesmo erro encontrado na corrente liberal, “ameaçam transformar as mulheres historicamente caracterizáveis em entidade não-históricas e universalizadas” (p.20). Outra questão apontada pela autora, e que considera a mais grave é quanto a “escolha” entre o publico estatal que estaria corrompido e o privado íntimo. Esta opção é enganosa porque, Se equipararmos o público com a política estatal e o privado com a virtude da intimidade, o feminismo maternalista resulta ser mais próximo ao ponto de vista liberal do que poderíamos supor a princípio. Então, é suscetível de ser objeto da mesma acusação que o liberalismo: a concepção que tem da cidadania está inspirada em uma defeituosa concepção de política em quanto governo impessoal e representativo. (Dietz,1999, p. 20) Para a autora, a cidadania deve referir-se às virtudes, relações e práticas que são expressamente políticas e, com maior exatidão, de participação e democráticas. Ela denomina esta “concepção de democrática, e concebe assim à política como o compromisso coletivo e de participação dos cidadãos na resolução dos assuntos de sua comunidade” (DIETZ, 1999, p.21). DIETZ também afirma que a cidadania democrática consiste numa prática que [...] desfruta de um conjunto de relações, virtudes e princípios próprios. Sua relação é a dos pares cívicos; a virtude que a orienta é o respeito mútuo; seu princípio primordial é a ‘liberdade positiva’ da democracia e do auto-governo e não simplesmente a ‘liberdade negativa’ da não interferência. (1999, p.22). A idéia chave da autora é que a cidadania tem que se conceber como uma atividade contínua e um bem em si, e não como um compromisso momentâneo, voltado a um objetivo final ou em um convênio social. Dietz afirma que as feministas têm que transformar suas próprias práticas democráticas em uma teoria da cidadania que seja mais inclusiva, antes que possam chegar a uma alternativa da teoria liberal não democrática. Neste ponto a autora faz uma advertência quanto ao que ela chama de tentação ao “mulherismo”. O que a defesa feminista da democracia deve evitar, de qualquer maneira é a tentação do “mulherismo”. Prestar atenção às “mulheres da república” é à organização feminista em busca de inspiração para articular os valores democráticos é uma coisa; outra muito diferente é chegar a conclusão de que nisso reside a prova da natureza democrática superior das mulheres ou de sua voz política mais madura. Uma defesa verdadeiramente democrática da cidadania não pode permitir que seu apelo seja lançado desde uma oposição de gênero e superioridade das mulheres.(Dietz, 1999, p.26). A autora termina sua argumentação aconselhando as feministas que garantam a defesa política da teoria da cidadania democrática, na diversidade dos territórios democráticos: “ históricos e contemporâneos, masculinos e femininos”. A cidadania relativa Chamamos a atenção agora para um outro aspecto deste debate que se refere à exclusão das mulheres na concepção inicial de cidadania, conforme apontada por Saraceno (1995, p. 208), que enfatiza que a posição das mulheres é uma construção interna à própria cidadania – “dependentes tanto das circunstancias da vida feminina como das da vida masculina, tal como são recíproca e interdependentemente definidas”. Saraceno comenta em seu artigo que: O fato de pertencer à comunidade/unidade familiar pelo casamento e a responsabilidade de gerar filhos para a família (para o marido) constituem, para os “pais” da cidadania, a “causa”, da incapacidade das mulheres de serem cidadãs, tornando-as ao mesmo tempo dependentes do marido. Reconhecê-las como sujeito de direito autônomo como os homens, de fato, solaparia as bases da unidade família e da negociação dos interesses entre iguais, que eram apontados como característicos da esfera pública dos cidadãos. Assim como também aponta Lavinas (1997, p.180), os homens são pensados como indivíduos e não numa relação de complementariedade. “As mulheres, ao que parece, não conseguem individualizar-se a não ser de forma sexuada, isto é: não como indivíduos, mas como indivíduos mulheres, que escapam pois ao caráter universal do conceito de individuo, e portanto, de cidadão”. A doutrina liberal, como aponta Lavinas (1997), se assenta sobre a dissociação das esferas da produção e da reprodução e dicotomicamente opostas na relação público-privado. De um lado a família como paradigma do privado, espaço da vida doméstica, das relações interpessoais, lugar do feminino e da subjetividade. De outro lado, o domínio do público, dos interesses impessoais, portanto civis e universais, “lugar da política e dos negócios, arena exclusiva dos homens”. Enquanto a esfera privada implica em relação de dependência, a esfera pública é marcada por pressupostos igualitários que caracterizam a relação de cidadãos independentes entre si. As mulheres tiveram sua cidadania retardada e prejudicada pelos interesses da comunidade familiar e também pela diferença com os homens cidadãos. As mulheres, que eram esposas e mães de cidadãos, por uma questão política, desde a sua origem mantiveram-se excluídas das decisões e dos direitos. A ‘causa’ da incapacidade das mulheres de serem cidadãs, o fato de pertencer a família pelo casamento e a responsabilidade de gerar filhos, é o que a torna dependente do marido. Mulheres não são portadoras de interesses autônomos, mas sim dos da família definidos a partir dos interesses e poderes dos maridos-cidadãos, são as relações privadas que lhes negam o estatuto de cidadãs Saraceno (1995). Na definição do que seria cidadania, na visão androcêntrica, a mulher por pertencer à comunidade/unidade familiar pelo casamento e ter o dever de gerar filhos, é excluída da cidadania, pois as mulheres não têm interesses autônomos, somente os da família, e o que importa é somente o interesse dos maridos-cidadãos. Logo, o estatuto de esposa reforça o papel feminino de mãe, esposa, dona de casa e acrescenta à diferença entre homens e mulheres os valores de fraqueza e de dependência. Assim, a discussão de cidadania não muda a visão das relações e da visão androcêntrica. A autora coloca que ao observarmos do ponto de vista da igualdade entre os sexos, o fenômeno da dependência econômica das mulheres tem a ver com a divisão do trabalho dentro do casamento, não só como prática, mas também como modelo em que se inspiram tanto as estratégias individuais de homens e mulheres, quanto a própria organização do trabalho e das carreiras e também do sistema de previdência social e a organização do trabalho. Por continuarem a serem definidas como posições e experiências socialmente construídas como assimetricamente complementares com base na pertença de gênero, marido e mulher, pai e mãe, ainda não se constituem enquanto posições sociais equivalentes e complementares intersubjetivamente definidas em desejos, inclinações, ou por opção do casal. Tais opções, os fenômenos de modificação dos conteúdos das identidades e das relações de gênero, ocorrem a partir do terreno dessa construção, nos recursos materiais e de valorização disponíveis aos dois sexos, enquanto forma de tematização das prioridades, dos conflitos. Continua a autora, Isso por sua vez, tem conseqüências sobre os direitos de cidadania efetivamente reconhecidos às mulheres e sobre a capacidade de agir como cidadãs em todas as três dimensões que segundo Marshall, são constitutivas da cidadania plena: civil, política e social. (SARASSEM, 1995, p.215). Destacamos alguns pontos sobre o debate que a autora faz a partir destas três dimensões definidas por Marshall. Com base em pesquisas qualitativas realizadas por Hochshild, a autora discorre sobre o uso do tempo que é empregado no trabalho remunerado entre homens e mulheres em que há uma diferença bem visível para o homem. Como também, entre os níveis de remuneração Na realidade, essas diferenças derivam do cruzamento das estratégias de gênero que homens e mulheres põem em ação como casal, negociando de maneira mais ou menos explícita e conceitual não só aquilo que cada um deve ou está disposto a fazer, mas também a identidade de gênero de cada um. São justamente essas estratégias que mostram o impasse em que se acha o casamento contemporâneo e as mulheres dentro dele, em razão de seus fundamentos culturais e práticos na divisão do trabalho entre os sexos e, simultaneamente, na atribuição assimétrica de valor e poder aos dois sexos. (SARACENO, 1995, p.215). Portanto, as mulheres como esposas e mães continuam a ser definidas e definirem-se como responsáveis pelos trabalhos e cuidados familiares e os homens continuam a ser definidos como ausentes e não responsáveis em relação aos trabalhos familiares assim, “autônomos, independentes, capazes de plenas realizações profissionais, machos enfim” (SARACENO, 1995, p.216). Trabalhando ou não no mercado de trabalho, as mulheres investem mais tempo, atenção, energia na família que os homens, o que as priva de direitos individuais, dificultando sua carreira profissional e proporcionando aos homens pela família e pelo casamento alguém que cuide das necessidades suas e dos seus. A dependência econômica das mulheres, esposas que se dedicam exclusivamente à família e a dependência dos familiares da sua disponibilidade de tempo leva a uma redução de uma série de direitos de cidadania como exemplo, moradia, emprego do tempo, entre outros. Uma vez que os direitos não se esgotam no direito de voto, mas requer capacidade e disponibilidade para o engajamento e a participação. A autora coloca como questão chave em seu estudo, que a divisão do trabalho entre os sexos, atribui um estatuto diferenciado quanto aos direitos, Enquanto a dependência econômica, parcial ou total, das mulheres em relação aos maridos, mesmo não sendo estigmatizada, é evidenciada como tal, a dependência dos maridos e, relação ao trabalho de assistência das esposas, nem é tematizada como tal. E enquanto a dependência dos familiares em relação à renda do homem pode constituir para ele um título de acesso a alguma forma de garantia e proteção social (além de legitimar de fato o ‘maior direito’ de colocar-se no mercado de trabalho), a dependência dos familiares em relação ao trabalho de assistência de uma mulher constitui para ela apenas um handicap social, além de individual. (SARACENO, 1995, p.226). Ou seja, a falta de valor do trabalho realizado pelas mulheres na esfera doméstica e a execução da assistência por elas prestada em função do trabalho remunerado, leva a que estas não tenham nem cidadania econômica, nem reconhecimento de direitos sociais próprios. Portanto, o paradoxo da “dependência feminina” consiste no fato de que as mulheres “dependentes” assim são porque outros dependem delas. Pois a possibilidade de fornecer assistência “não parece sequer constituir o modelo em que se inspiram os teóricos contemporâneos de uma cidadania que incorpore também deveres de solidariedade ativa, não mediada exclusivamente pelo pagamento de taxas”. (SARACENO, 1995, p.226). Contudo, a construção social de gênero feminino, como estrutura simbólica e também de expectativas sociais e individuais, torna precária a cidadania das mulheres, pois continua a pedir a elas que paguem o preço da assistência, uma vez que se continua a não reconhecer o valor dessa assistência como fonte de direito e de status de cidadania. Por fim, gostaríamos de comentar a concepção de cidadania fragilizada comentada por Soares (2003). A autora também parte da critica compartilhada por diferentes teorias feministas, a pretensa universalidade do pensamento político e da construção cidadã. Essa universalidade, segundo Soares, tornou invisíveis as mulheres e todos os demais setores excluídos do modelo hegemônico (masculino, branco e trabalhador). Muitas das concepções cidadãs que prevalecem, embora tendam a reconhecer a diversidade, não assumem a dimensão da desigualdade que essa diversidade conteve e atualmente contém. Essa desigualdade intrínseca ao desenvolvimento das cidadanias modernas, pois seu surgimento ocorreu em condições de profunda iniqüidade, ao tratar os diferentes como desiguais, fora da regra, excluídos (2003b, p.96). A concepção de cidadania fragilizada de Soares parte, tal como vimos em Saraceno, de uma reflexão crítica sobre as separações entre o publico e o privado, a divisão sexual do trabalho. Compartilha a idéia que as relações de gênero têm forjado uma divisão de papéis e uma simbologia cultural que restringem a atuação das mulheres à unidade familiar, naturalizando aí sua atuação. Com essa manutenção oferece-se ainda a elas, e só a elas, “um modelo de cidadania social, de cidadania no mundo do trabalho e no mundo da política cujas referências não lhes permitem ainda uma relativa autonomia em relação à família” (SOARES, 2003 p.91). Sua cidadania é restringida e passiva. Soares exemplifica comentando como, por exemplo, a inclusão no sufrágio universal ou a entrada no mercado de trabalho não substituem nem abandonam, mas, ao contrário, absorvem, recuperam, reintroduzem as dimensões assimétricas culturais e simbólicas entre os sexos. “Assim a construção da cidadania deve ser vista com permeada, pela simbologia de gênero, com suas referencias na divisão social entre os sexos e às características atribuídas a homens e mulheres na unidade familiar” (Soares apud Cappellin, 1996). Concluindo nossas reflexões desenvolvidas a partir das teóricas citadas, num âmbito de uma critica feminista a noção de cidadania, mais uma vez nos apoiamos em Soares (2003 p.98), concordando com a autora quando esta afirma que a relação cidadania e gênero podem possibilitar ampliar e reconhecer os impasses teórico-políticos da questão. Um desses impasses é a relação/interação entre indivíduos e sociedade. “Indivíduos, que numa sociedade contemporânea, transformam suas exigência e desenvolvem suas individualidades; sociedade que exige também uma co-responsabilidade social maior e a solidariedade coletiva”. Referências bibliográficas DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania.In: DAGNINO E. (org.) Anos 90: Política e sociedade no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1994, pp. 103-118. DIETZ, Mary G. O contexto é que conta: Feminismo e teorias da cidadania. In: Cidadania e Feminismo. Edição especial. Productos Culturales, S.A.C.V. México, 1999. pp. 3-28. LAVINAS, L. Gênero, Cidadania e Políticas Urbanas. In RIBEIRO, L.C. & SANTOS JR., O. A.(orgs.) Globalização, Fragmentação e Reforma Urbana. Rio de Janeiro . Civilização Brasileira, 1997, pp. 169-187 SAFFIOTI, H.I.B Violência de Gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade. In:Revista Lutas Sociais, nº2, 1ºsemestre 1997. 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** Artigo originalmente publicado na revista Serviço Social em Revista
EcoDebate, 24/02/2011
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