quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O livro não escrito

 Nenhuma religião sem livros oficiais se difundiu tanto como a dos povos africanos. Veja como a tradição oral guardou e multiplicou a crença na mitologia dos orixás

por Texto Débora Sanches

A chegada de uma nova mãe-de-santo é anunciada com festa no terreiro de candomblé. Em meio a batuques e cânticos oferecidos aos orixás, a devota é presenteada com um jogo de búzios e um conjunto de elementos que simbolizam os fundamentos da crença. Depois de passar anos ouvindo ensinamentos dos mais velhos, entoando cânticos e preparando oferendas aos orixás, entre outros ritos, ela está pronta para passar adiante o que aprendeu. Mãe-de-santo, pai-de-santo, babalorixá, babalaô, nganga, mameta-de-inquice, alagbá, doné. Eles têm diferentes nomes, de acordo com a religião a que pertencem. Todos têm em comum a missão de transmitir, oralmente, de geração a geração, as crenças nascidas no continente africano e cultivadas, a partir do século 16, nas Américas. A escravidão espalhou os povos do continente pelo Novo Mundo. E, para onde eles foram, levaram na memória seu livro não escrito.
“Para os escravos, não se tratava apenas de uma religião mas de um jeito de interpretar o mundo. Mesmo com a diáspora, extratos dessa cultura permaneceram ligados à realidade dos negros”, diz Fernandez Portugal Filho, professor de antropologia das religiões Afro-brasileiras da Universidade de Havana, em Cuba. Nas senzalas, as histórias de lutas, perdas e glórias dos orixás eram justamente o que dava identidade aos negros violentados pelo exílio e maus-tratos. Em cada lugar, seus mitos dialogaram com culturas locais para formar novas religiões. Hoje, cerca de 100 milhões de pessoas compartilham essas crenças. Uma expansão única entre as religiões que nunca traduziram sua fé em palavras escritas.

Capítulos cantados
Talvez isso aconteça porque, apesar de a mitologia dos orixás ser transmitida oralmente, ela é uma espécie de livro imaginário. Segundo a história, Exu, o orixá mensageiro, teria percorrido as terras africanas para recolher todas as narrativas de vida possíveis e entregá-las a Ifá, o deus do oráculo, que as organizou em 16 capítulos. Cada um é subdividido em 16 partes, totalizando 256 lendas de orixás, em forma de poemas cantados. Cada conjunto de poemas, os versículos de Ifá (ou itans de Ifá), é conhecido como odu e descreve a vida e as atribuições de orixás e seus filhos. Tais lendas e deuses são compartilhados por diferentes povos africanos, inclusive inimigos. O reino Abomei, da nação jeje, que comercializou homens e mulheres iorubás com portugueses mercadores de escravos, reverenciavam os inquices, deuses semelhantes, com nomes diferentes. “As divindades africanas representam manifestações da natureza, com nomes diferentes de acordo com a região. O iorubá Xangô pode ser o vodum Badé ou o inquice Zaze. E Oyá pode ser o vodum Sobô ou o inquice Bamburucema”, diz o sociólogo Armando Vallado, da USP.
Em praticamente todos os lugares para onde vieram escravos negros, a mistura desses ritos e divindades misturaram-se com características regionais e tomaram diversas formas. A partir do século 19, surgiram crenças como o xangô, em Pernambuco, o tambor-de-mina, no Maranhão, e o batuque, no Rio Grande do Sul. No início do século 20, o candomblé se encontrou com o espiritismo francês, no Rio de Janeiro, e fez nascer a umbanda. Em Cuba, além da santeria, onde as vestimentas dos orixás lembram trajes ciganos e de colonizadores espanhóis, há o palo monte e o palo mayombe, formas de culto aos egunguns (espíritos ancestrais) de origem banto. As crenças se desdobraram no Brasil, em Cuba, no Haiti e em Trinidad e Tobago, mas o transe de possessão das divindades e a fé no jogo da adivinhação permaneceram como ponto comum dos ritos em cada local.
Segundo a mitologia, Ifá seria dono de todos os porquês dos acontecimentos na vida do ser humano e saberia como identificar e solucionar os problemas de cada um deles. E contam os africanos que Ifá teria deixado o dom do oráculo a todos os povos por onde passou, mudando apenas a maneira de cada nação manipular os amuletos que permitem fazer as previsões. Os jejes jogam as peças – que, além dos búzios, podem ser nozes de dendê – para a frente. Os nagôs, para trás. Os odus, os versículos do livro, são relacionados à vida de quem faz a consulta se revelam na posição em que eles caem. “No jogo de búzios, a combinação de 3 odus sintetiza a vida da pessoa, dando ênfase ao passado, presente ou futuro”, diz Portugal Filho. Aqui, os pais-de-santo preservaram apenas o nome dos odus, os orixás protagonistas de cada história, as previsões e os ebós (ou oferendas). “Os pais e mães-de-santo brasileiros simplificaram a leitura dos odus, tornando rápida e simples a formação dos sacerdotes”, diz Reginaldo Prandi, autor de Mitologia dos Orixás. Na África e em Cuba os babalaôs – conhecidos como pais do segredo – ainda memorizam meticulosamente cada história.
Os ritos de possessão são o outro elemento ritual transmitido com o “livro”, com algumas mudanças em cada rito. No candomblé, os orixás “pegam a cabeça” de um filho-de-santo – como se diz no terreiro quando eles incorporam em um devoto com o dom da mediunidade –, dançam ao som de batuques e cânticos, com movimentos que sinalizam suas qualidades. Iansã, por exemplo, é a deusa dos ventos e das tempestades e tem poder sobre o mundo dos vivos e dos mortos. Quando incorporada, empurra o ar com as mãos como quem quer espantar os eguns ou controlar os ventos. Nessa vertente, os orixás não conversam com seus devotos, ao contrário dos voduns do tambor-de-mina, que se expressam verbalmente e comem do banquete servido no terreiro. Na umbanda, os orixás nem chegam à Terra. Quem toma o corpo dos filhos-de-santo são guias espirituais, como os ancestrais pretos-velhos, caboclos e crianças, que visitam os humanos para levar seus pedidos e agradecimentos aos deuses e para trazer do mundo divino as bênçãos e os alertas.

A fala que muda e renova
Mesmo com o desenvolvimento da escrita nas civilizaçãos africanas e o contato com a língua de outras culturas, as religiões africanas continuaram sem livro. Até hoje só existem inúmeros livros etnográficos – surgidos a partir do século 19 – e registros nas cadernetas dos sacerdotes – que acabam servindo como consulta para os seguidores. Em Cuba, os babalaôs cultivaram o hábito de registrar os odus em suas libretas (cadernetas), anotações pessoais com mitos, interpretações e prescrições de sacrifícios. Os primeiros escritos desse tipo também são do século 19, e apareceram em pesquisas do padre Baudin, de 1884, e do coronel Ellis, de 1894, missionários europeus que levaram a escrita à África Ocidental, dando início à escolarização dos negros e à formação da primeira gramática iorubá, com listas de verbos e substantivos. O mais antigo registro brasileiro com divinizações de antigos babalaôs foi o do baiano Agenor Miranda Rocha, o mestre Agenor, datado de 1928. O curioso é que, ao mesmo tempo que guardam informações para a posteridade, quando essas coisas vão para o papel, muitas outras se perdem. “Toda a literatura sagrada tem que ser memorizada. E, quando se usa a escrita, perde-se a memória do que não está registrado”, diz Reginaldo Prandi.
Com o tempo, tanto a falta de uma versão escrita como a transcrição de alguns mitos para o papel mudou a forma da tradição. Ao longo do tempo, o jogo de adivinhação limitou-se a um segredo de iniciação na religião – a leitura dos búzios para quem ingressa no terreiro. Já os mitos se difundiram mais como manifestação popular do que como parte essencial do oráculo, no Brasil. “Como a mitologia iorubá é muito rica em símbolos e signos, teria gerado uma maleabilidade de ritos”, diz o sociólogo Vallado. Em Mitologia dos Orixás, Reginaldo Prandi compilou 301 mitos africanos e afro-americanos. Em cada um os orixás se multiplicam em vários, criando uma diversidade de devoções, cada qual com um repertório específico de ritos, cantos, danças, paramentos, cores, preferências alimentares, cujo sentido pode ser encontrado nos mitos. Essa flexibilidade que a tradição oral viabiliza e admite, no entanto, é justamente a fonte da riqueza e da resistência das religiões de origem africana. Isso e a fé dos velhos negros nos orixás e suas histórias, passadas adiante de pai para filho-de-santo, de sacerdote para discípulo.

A travessia dos orixás

O tráfico de escravos entre os séculos 16 e 19 foi determinante para a difusão das religiões de origem africana. Para os exilados, elas eram seu contato com o divino e a terra natal.
CARIBENHAS
Nas colônias espanholas de Cuba e no Haiti o sincretismo originou a santería e o vodun (“espírito”, no idioma fon). Na crença haitiana, bonecos são mensageiros entre homens e deuses. Mas os alfinetes são invenção de filmes americanos.
ORIGEM
Povos africanos de mais de 1000 etnias com relações de aliança e guerra fundem divindades de diferentes regiões. Desses mesmos lugares sairiam os escravos levados para a América.
CANBDOMBLÉ
O sincretismo do candomblé nasce na Bahia graças à proibição dos cultos africanos: forçados ao catolicismo, os escravos disfarçavam o culto aos orixás com imagens de santos. Em 1960, o fim da proibição difunde o culto no Brasil.
UMBANDA
No Rio de Janeiro, o contato com o espiritismo formou a umbanda, na década de 1920. Na nova religião, guias espirituais incorporados no terreiro, como o preto-velho e o caboclo, fazem a comunicação entre os devotos e os orixás.
DIÁSPORA
A partir do século 19, navios negreiros fizeram cerca de 35 mil viagens à América. A bordo, seguiram para o continente 12,5 milhões de africanos, principalmente dos povos iorubá e banto.

O panteão dos orixás

A vida e os poderes dos orixás, deuses da religião iorubá, são contados nos versículos de Ifá. Sua origem humana os faz imperfeitos, com desejos e defeitos
Oxalá
Chamado de Grande Orixá, é o criador do homem, senhor do princípio da vida, da respiração e do ar. Castigado por Exu por não lhe oferecer uma oferenda, bebeu muito e, bêbado, não pôde criar o mundo. Restou a ele criar os humanos. Ainda, embriagado, modelou seres distintos, dando origem à diversidade.
Exu
Mensageiro entre orixás e humanos, foi incumbido de receber numa encruzilhada os presentes das visitas de Oxalá, enquanto ele criava o homem. Por isso, ele não executa pedidos sem algo em troca. Tem personalidade vingativa, que o fez ser associado ao demônio cristão por missionários europeus.
Ogum
Deus da guerra e dos caminhos, da tecnologia e das oportunidades de realização pessoal. Dono do segredo da forja, que cria instrumentos mais resistentes para a agricultura e lanças para caçadores e guerreiros. Além da enxada, seu símbolos é a espada,que o fez ser ligado aos católicos santo Antônio e são Jorge.
Xangô
Governador da justiça, foi um dos primeiros reis da cidade de Oió, que dominou por muito tempo diversas cidades iorubanas. Geralmente, quem o incorpora usa uma coroa, demonstrando seu nobre posto. É o patrono das religiões dos orixás no Brasil e marido de Iansã, Obá e Oxum, deusas de rios africanos.
Iansã
Dirige o vento e as tempestades e é também deusa da sensualidade feminina. Seu nome quer dizer “mãe nove vezes” e, segundo o mito, precisou fazer uma oferenda para conseguir ter a prole. Mãe batalhadora, vendia dendê para sustentar os filhos. Outra lenda diz que teria sido uma princesa na cidade de Irá, em 1450 a.C.
Oxóssi
Orixá das florestas, de onde se retira o sustento. Na África, teria sido rei de Ketu, cuja população foi destruída pelos inimigos jejes. Por isso, sobreviveu apenas no Brasil,onde é padroeiro dos ketus. Incorporado, segura arco e flecha e dança como se estivesse caçando. Em alguns mitos também é irmão de Ogum.
Iemanjá
Senhora das águas, tem o culto ligado ao rio Níger, na África, onde também é celebrada entre as divindades femininas primordiais, donas do conhecimento e do feitiço. É mãe dos orixás porque ajudou a criar e povoar a Terra. Em sua festa, dia 2 de fevereiro, devotos oferecem flores e presentes ao mar.
Omulu
Senhor da peste e conhecedor de seus segredos e curas. Por ter no corpo as marcas da varíola, uma das doenças a que os escravos foram expostos, tem sincretismo com são Lázaro, cujo corpo também é coberto de chagas. Nos ritos, sacode o xaxará, feixe de palha com cabaças que guardam remédios. 

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