Mãe de santo acusa policiais militares de tortura em Ilhéus
Posted In: Notícias , Religiões de Matriz Africana . By Y.Valentim
Bernadete foi algemada, puxada pelos cabelos e jogada no formigueiro quando estava incorporada por Oxóssi.
Alexandre Lyrio e Jorge Gauthier | Redação CORREIO
É na terceira pessoa que a ialorixá Bernadete Souza Ferreira dos Santos, 42 anos, relata uma sessão de tortura que ela própria sofreu de policiais militares. “Pegaram Oxóssi, puxaram os cabelos, jogaram ele em cima de um formigueiro, pisaram no pescoço e disseram: ‘só assim para o demônio sair’”, denuncia, garantindo estar incorporada no momento das agressões.
Mãe de santo e coordenadora de educação do assentamento Dom Helder Câmara, em Ilhéus, Sul do estado, Bernardete diz que foi algemada e torturada após questionar a presença dos policiais militares numa área que pertence ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), de responsabilidade da Polícia Federal (PF).
O fato ocorreu no último dia 23 e pelo menos uma dezena de assentados presenciou tudo. Somente através deles Bernadete diz ter tomado conhecimento do que sofreu. Isso porque, depois de algemada e puxada pelos cabelos, a ialorixá diz ter sido “tomada” por Oxóssi, seu guia espiritual. Em seguida, jogada sobre as formigas, Mãe Bernadete ficou com marcas de mordidas nas duas pernas.
Ao CORREIO, Bernadete contou que o assentamento, localizado no distrito de Banco do Pedro, vivia um dia tranquilo quando, por volta das 14h30, ela e o marido, o agricultor e professor de filosofia Moacir Pinho de Jesus, assistiam televisão quando perceberam a presença de oito PMs, que adentraram o assentamento, fortemente armados, com um jovem algemado.
O casal perguntou sobre os motivos da presença da PM na comunidade, mas não obtiveram resposta. “Disseram que estavam numa investigação e que não poderiam dar explicações. A gente colocou para eles que o assentamento estava sob jurisdição do Incra e que, para entrar ali, tinha que ter ordem judicial”.
TRUCULÊNCIA
Nenhuma ordem judicial foi mostrada. Os PMs entraram na sede da associação de moradores do assentamento e a vasculharam. Foi quando Bernadete resolveu ser mais incisiva. “É melhor vocês se retirarem. Isso aqui é uma área privada, um assentamento. Vocês podem entrar nas casas de quem não conhece as leis. Mas aqui nós não somos abestalhados”.
O suficiente para que o PM que comandava a patrulha, identificado como Adjailson, ordenasse a prisão dela por desacato. Bernadete foi algemada e puxada pelos cabelos.
“Quando pegarem meu cabelo, o orixá chegou. A partir daí só os relatos das pessoas. O pessoal disse que gritava: ‘Solta que é Oxóssi, é o orixá que está aí’. As crianças começaram a gritar, um desespero. Pegaram Oxóssi, pisaram no pescoço dele e jogaram em cima de um formigueiro. Aí disseram: ‘só assim para o demônio sair’”.
AGRESSÃO
O marido de Bernadete conta que, ao tentar defender a esposa, foi empurrado. “O tempo todo eles apontavam armas e ameaçavam atirar”, diz Moacir. No grupo de oito policiais, três foram identificados como os mais cruéis. Segundo os assentados, além de Adjailson, que seria um sargento, os soldados Guedes e Jesus também participaram da tortura.
Bernadete diz ter sido arrastada pelos cabelos por cerca de 600 metros até o distrito, onde estava a viatura da polícia. Passaram por quatro pontes. Ao atravessar uma delas, os PMs teriam atirado spray de pimenta para impedir a passagem dos assentados. Um dos atingidos foi o próprio coordenador geral do assentamento, Egnaldo Leal.
“E Oxóssi dando os ‘ilá’ dele”, contou a assentada Edleuza de Oliveira Moreira, referindo-se ao grito característico do orixá. Filha de santo, Edleuza testemunhou tudo. “Se Oxóssi não tivesse lá, ela não ia aguentar. Foi muito sofrimento”. Edleuza diz que um dos PMs chegou a apontar uma arma para a neta, de 4 anos, de Bernadete, que apenas suplicava. “Não levem minha avó”.
PMs seguem na rua
Mesmo com a acusação de tortura à ialorixá, os oito policiais militares continuam em serviço, segundo a assessoria de comunicação da Polícia Militar. O tenente coronel Manoel Amâncio Neto, da corregedoria da PM, preside sindicância para apurar a autoria e materialidade do fato. A explicação para que os militares sigam em serviço é que não há confirmação das denúncias. O oficial faz viagens ao Sul do estado para ouvir os envolvidos.
O prazo para a conclusão da sindicância é de 30 dias. Bernadete e outros líderes do assentamento já foram ouvidos. Os PMs não tiveram os nomes divulgados, mas a comunidade identificou o sargento Adjailson e os soldados Guedes e Jesus.
Quanto às denúncias, a PM informou que só vai se pronunciar quando as investigações forem concluídas. “É um absurdo esses PMs estarem atuando, coagindo testemunhas”, disse um dos diretores da União Geral de Trabalhadores (UGT), Magno Lavigne, que emitiu comunicado à Organização dos Estados Americanos (OEA).
O caso vem à tona em pleno Novembro Negro, quando se comemora o Dia da Consciência Negra, no dia 20. “A tortura não foi contra uma ialorixá, mas, como foi feita com Oxóssi incorporado, foi contra todo o povo de santo”, diz Lavigne.
Incra cobra solução
A entrada da Polícia Militar na área do assentamento em Ilhéus não agradou ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que é dono da área. “A PM não conseguiu justificar agora a motivação dessa ação. Precisamos de um esclarecimento plausível para essa história”, disse o superintendente em exercício do Incra na Bahia, Marcos Nery.
“Caso não tenha, pedimos à Polícia Militar que tenha celeridade nas investigações. Eles invadiram uma área de propriedade federal, onde só a Polícia Federal tem autonomia para entrar”, completou Nery.
O Incra, no dia 24 de outubro, enviou ofícios para a Superintendência da Polícia Federal, Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Ministério Público, Secretaria de Segurança Pública, Casa Militar, Casa Civil, Gabinete do Governador e comando geral da Polícia Militar cobrando medidas.
Segundo Nery, somente a Sepromi, a Casa Militar e o Ministério Público, até ontem à tarde, haviam respondido o ofício informando que iriam participar das investigações.
Diante da gravidade das denúncias, o desembargador Gercino José da Silva Filho, ouvidor nacional do Incra, realizará uma audiência pública sobre violência no campo ainda este mês.
Alexandre Lyrio e Jorge Gauthier | Redação CORREIO
É na terceira pessoa que a ialorixá Bernadete Souza Ferreira dos Santos, 42 anos, relata uma sessão de tortura que ela própria sofreu de policiais militares. “Pegaram Oxóssi, puxaram os cabelos, jogaram ele em cima de um formigueiro, pisaram no pescoço e disseram: ‘só assim para o demônio sair’”, denuncia, garantindo estar incorporada no momento das agressões.
Mãe de santo e coordenadora de educação do assentamento Dom Helder Câmara, em Ilhéus, Sul do estado, Bernardete diz que foi algemada e torturada após questionar a presença dos policiais militares numa área que pertence ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), de responsabilidade da Polícia Federal (PF).
"Pegaram Oxóssi, puxaram os cabelos e jogaram num formigueiro", contou Bernadete
O fato ocorreu no último dia 23 e pelo menos uma dezena de assentados presenciou tudo. Somente através deles Bernadete diz ter tomado conhecimento do que sofreu. Isso porque, depois de algemada e puxada pelos cabelos, a ialorixá diz ter sido “tomada” por Oxóssi, seu guia espiritual. Em seguida, jogada sobre as formigas, Mãe Bernadete ficou com marcas de mordidas nas duas pernas.
Ao CORREIO, Bernadete contou que o assentamento, localizado no distrito de Banco do Pedro, vivia um dia tranquilo quando, por volta das 14h30, ela e o marido, o agricultor e professor de filosofia Moacir Pinho de Jesus, assistiam televisão quando perceberam a presença de oito PMs, que adentraram o assentamento, fortemente armados, com um jovem algemado.
O casal perguntou sobre os motivos da presença da PM na comunidade, mas não obtiveram resposta. “Disseram que estavam numa investigação e que não poderiam dar explicações. A gente colocou para eles que o assentamento estava sob jurisdição do Incra e que, para entrar ali, tinha que ter ordem judicial”.
TRUCULÊNCIA
Nenhuma ordem judicial foi mostrada. Os PMs entraram na sede da associação de moradores do assentamento e a vasculharam. Foi quando Bernadete resolveu ser mais incisiva. “É melhor vocês se retirarem. Isso aqui é uma área privada, um assentamento. Vocês podem entrar nas casas de quem não conhece as leis. Mas aqui nós não somos abestalhados”.
O suficiente para que o PM que comandava a patrulha, identificado como Adjailson, ordenasse a prisão dela por desacato. Bernadete foi algemada e puxada pelos cabelos.
Marcas da agressão ainda estão no corpo da mãe de santo agredida por policiais
“Quando pegarem meu cabelo, o orixá chegou. A partir daí só os relatos das pessoas. O pessoal disse que gritava: ‘Solta que é Oxóssi, é o orixá que está aí’. As crianças começaram a gritar, um desespero. Pegaram Oxóssi, pisaram no pescoço dele e jogaram em cima de um formigueiro. Aí disseram: ‘só assim para o demônio sair’”.
AGRESSÃO
O marido de Bernadete conta que, ao tentar defender a esposa, foi empurrado. “O tempo todo eles apontavam armas e ameaçavam atirar”, diz Moacir. No grupo de oito policiais, três foram identificados como os mais cruéis. Segundo os assentados, além de Adjailson, que seria um sargento, os soldados Guedes e Jesus também participaram da tortura.
Bernadete diz ter sido arrastada pelos cabelos por cerca de 600 metros até o distrito, onde estava a viatura da polícia. Passaram por quatro pontes. Ao atravessar uma delas, os PMs teriam atirado spray de pimenta para impedir a passagem dos assentados. Um dos atingidos foi o próprio coordenador geral do assentamento, Egnaldo Leal.
“E Oxóssi dando os ‘ilá’ dele”, contou a assentada Edleuza de Oliveira Moreira, referindo-se ao grito característico do orixá. Filha de santo, Edleuza testemunhou tudo. “Se Oxóssi não tivesse lá, ela não ia aguentar. Foi muito sofrimento”. Edleuza diz que um dos PMs chegou a apontar uma arma para a neta, de 4 anos, de Bernadete, que apenas suplicava. “Não levem minha avó”.
PMs seguem na rua
Mesmo com a acusação de tortura à ialorixá, os oito policiais militares continuam em serviço, segundo a assessoria de comunicação da Polícia Militar. O tenente coronel Manoel Amâncio Neto, da corregedoria da PM, preside sindicância para apurar a autoria e materialidade do fato. A explicação para que os militares sigam em serviço é que não há confirmação das denúncias. O oficial faz viagens ao Sul do estado para ouvir os envolvidos.
O prazo para a conclusão da sindicância é de 30 dias. Bernadete e outros líderes do assentamento já foram ouvidos. Os PMs não tiveram os nomes divulgados, mas a comunidade identificou o sargento Adjailson e os soldados Guedes e Jesus.
Quanto às denúncias, a PM informou que só vai se pronunciar quando as investigações forem concluídas. “É um absurdo esses PMs estarem atuando, coagindo testemunhas”, disse um dos diretores da União Geral de Trabalhadores (UGT), Magno Lavigne, que emitiu comunicado à Organização dos Estados Americanos (OEA).
O caso vem à tona em pleno Novembro Negro, quando se comemora o Dia da Consciência Negra, no dia 20. “A tortura não foi contra uma ialorixá, mas, como foi feita com Oxóssi incorporado, foi contra todo o povo de santo”, diz Lavigne.
Incra cobra solução
A entrada da Polícia Militar na área do assentamento em Ilhéus não agradou ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que é dono da área. “A PM não conseguiu justificar agora a motivação dessa ação. Precisamos de um esclarecimento plausível para essa história”, disse o superintendente em exercício do Incra na Bahia, Marcos Nery.
“Caso não tenha, pedimos à Polícia Militar que tenha celeridade nas investigações. Eles invadiram uma área de propriedade federal, onde só a Polícia Federal tem autonomia para entrar”, completou Nery.
O Incra, no dia 24 de outubro, enviou ofícios para a Superintendência da Polícia Federal, Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Ministério Público, Secretaria de Segurança Pública, Casa Militar, Casa Civil, Gabinete do Governador e comando geral da Polícia Militar cobrando medidas.
Segundo Nery, somente a Sepromi, a Casa Militar e o Ministério Público, até ontem à tarde, haviam respondido o ofício informando que iriam participar das investigações.
Diante da gravidade das denúncias, o desembargador Gercino José da Silva Filho, ouvidor nacional do Incra, realizará uma audiência pública sobre violência no campo ainda este mês.
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