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Segundo Michel Cuypers, devido à importância conferida à Lei divina, o Islã está mais próximo do Judaísmo do que do Cristianismo
Por: Patricia Fachi, Márcia Junges e Moisés Sbardelotto | Tradução: Benno Dischinger
“Por seu teocentrismo muito acentuado, o Corão não parece espontaneamente apto para fazer frente a um mundo secularizado”, analisa Michel Cuypers, autor de Le Festin. Une lecture de la sourate al-Mâ’ida (Paris: Lethielleux, 2007). Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele informa que o Islã atravessa a crise mais profunda de toda a sua história, a qual gera posições diferentes entre a comunidade muçulmana. Para uns, explica, “o mundo deve mudar e adaptar-se às leis divinas do Islã”, para outros, continua, “é preciso repensar radicalmente o Islã para reconciliá-lo com o mundo atual”.
Ainda nesta entrevista, Cuypers aborda alguns aspectos da composição do texto do Corão e diz que “as regras de composição das suras corânicas são as mesmas que se encontram nos textos bíblicos”. Segundo ele, o Corão e a Bíblia pertencem ao mesmo mundo literário, “não somente em sua forma retórica, mas também em razão de temáticas similares”. Os livros sagrados são textos antigos, escritos num contexto diferente do nosso, em função disso, aconselha, “é preciso necessariamente distinguir nesses textos o que diz respeito à sua época e ao seu meio, e o que tem um valor permanente, que ainda pode inspirar o homem de hoje”.
Michel Cuypers é belga e residiu no Irã por doze anos. Cursou doutorado em Literatura Persa, na Universidade de Teerã. Também estudou árabe na Síria e mudou-se para o Cairo, onde reside atualmente e atua como pesquisador do Instituto Dominicano para os Estudos Orientais. É membro da International Society for the Studies of Biblical and Semitc Rhetoric, da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as principais teorias e as novas maneiras de abordar o Corão que o senhor propõe na obra Le Festin. Une lecture de la sourate al-Mâ’ida?
Michel Cuypers - Como muitos leitores não muçulmanos que lêem pela primeira vez o Corão , fui, há muito tempo, tocado pela aparente ausência de ordem e de coerência do texto corânico, que parece feito de pequenos fragmentos postos em sequência sem nenhuma lógica aparente. Perguntava-me: “É possível que um texto sagrado, circundado por tal veneração há quatorze séculos por milhões de muçulmanos, tenha sido tão mal composto?” Quis então estudar o Corão do ponto de vista de sua composição. Era uma espécie de desafio. Os pesquisadores ocidentais que estudaram o Corão a partir do século XIX, admitiram todos como evidência o caráter composto do texto do Corão, e eles só o abordaram sob o enfoque da crítica histórica, com o cuidado de compreender a gênese e a história do texto corânico, classificando os fragmentos que o compõem numa ordem mais lógica e cronológica. Seu acesso ao texto era então claramente “diacrônico”. Foi apenas mais recentemente que alguns pesquisadores adotaram outro ponto de vista, “sincrônico”, procurando compreender o texto das suras (os capítulos do Corão) tal como ele se apresenta em sua versão canônica, na sua estrutura ou composição. Eles partem do pressuposto de que o texto deve ter uma coerência, porém uma coerência que é preciso descobrir. A tradição exegética muçulmana se colocou também, desde o início, esta questão da coerência e da composição do texto, mas sem chegar a dar uma resposta satisfatória. De minha parte, creio ter encontrado a resposta, não na tradição da sabedoria islâmica, mas voltando à exegese bíblica, que desenvolveu desde o século XVIII, porém, sobretudo nestas últimas décadas, um método chamado “análise retórica”.
IHU On-Line - O senhor aplica ao Corão um sistema de análise que provém dos estudos bíblicos. Partindo deste pressuposto, que nova leitura do Corão propõe?
Michel Cuypers - Todos os grandes estudiosos clássicos do Corão comentaram o texto versículo por versículo, sem consideração do seu contexto literário imediato. O resultado é que eles, com freqüência, deram múltiplas interpretações diferentes de um versículo, entre as quais o leitor não sabe qual escolher. De outra parte, esses comentários clássicos, em vez de explicar um versículo, situando-o em seu contexto literário, explicam-no, pondo-o em relação com o que eles chamam tecnicamente “as ocasiões da revelação”, isto é, tal ou tal evento da vida do profeta Maomé teria sido “a ocasião” ou a razão pela qual ele teria “descido” sobre o Profeta. Infelizmente, é difícil conferir um valor histórico real à maioria dessas “ocasiões da revelação”. A análise retórica, sim, mostrando a estrutura das suras, recoloca cada versículo em seu verdadeiro contexto literário que lhe confere seu sentido. A descoberta da estrutura é, portanto, o caminho em direção ao sentido do texto, sem que haja necessidade de recorrer ao artifício dessas “ocasiões da revelação”.
IHU On-Line - Como é construído o Corão e qual é sua relação com o mundo dos grandes textos bíblicos judeus e cristãos?
Michel Cuypers - A análise retórica permitiu destacar as regras da “retórica bíblica”, muito diferente da retórica grega e latina que herdamos. Os textos da Bíblia são construídos na base de simetrias que podem assumir três formas ou três “figuras de composição”: o paralelismo (por exemplo, uma sequência de versículos na ordem AB/À’B’), a construção em espelho ou o paralelismo invertido (AB/B’À’) e a construção concêntrica, quando um elemento central conecta os dois versículos da construção em espelho (ABC/x/C’B’À’). Essas figuras de composição se encontram em diversos níveis do texto: por exemplo, entre dois ou três versículos de um salmo, depois um grupo de versículos, e em seguida um bloco textual mais amplo ainda, e assim por diante, até o salmo inteiro. Estes princípios foram perfeitamente teorizados pelo padre Roland Maynet s.j., em seu Tratado de Retórica bíblica (Lethielleux, Paris, 2007). Ora, eu pude constatar que o texto do Corão é construído exatamente da mesma forma. As regras de composição das suras corânicas são as mesmas que se encontram nos textos bíblicos.
Mas as relações do Corão com o texto bíblico não param aí. O Corão pertence ao mesmo mundo literário da Bíblia, não somente em sua forma retórica, mas também em razão de temáticas similares: a “releitura” de numerosos textos anteriores, seja da Bíblia, seja de textos parabíblicos (textos rabínicos como a Mishna, ou apócrifos cristãos), dando-lhes um novo sentido, conforme a teologia corânica; um pouco como o Novo Testamento “relido” segundo os textos do Antigo Testamento, dando-lhes um novo sentido, “crístico”.
IHU On-Line - O que o Islã tem de específico ou “não negociável” em sua construção interna que, sem isso, essa religião perderia sua característica?
Michel Cuypers - O credo muçulmano é simples: “Eu atesto que não há divindade senão Deus e que Maomé é seu Profeta”. Falando estritamente, o que é não negociável, como você diz, é o estrito monoteísmo islâmico, que exclui até a ideia de Trindade e de Encarnação. Não pode haver multiplicidade em Deus, mesmo relativa. É, pois, impensável que Deus possa ter um filho, e mais ainda, um filho que se torna homem! Tal é o artigo de fé absolutamente primário e essencial para o Islã. Mas, ele é acompanhado indissociavelmente da fé no profeta Maomé, cuja mensagem se resume precisamente nesse monoteísmo rigoroso. É por isso que o Corão não cessa de convocar ao mesmo tempo Deus e seu Profeta. Mas, atenção: nenhuma religião se reduz ao seu fundamento essencial. Este se desdobra em toda uma vida, uma tradição, ritos, outros pontos de fé importantes (como o último Julgamento). Cabe definitivamente aos muçulmanos responder à sua questão, e ela já constitui o objeto de ásperos debates entre reformistas e fundamentalistas, por exemplo.
IHU On-Line - Como compreender o mundo de hoje com base no Corão, isto é, com base em um texto da tradição islâmica?
Michel Cuypers - A questão seria a mesma no que se refere à Bíblia. O Corão, a Bíblia, são textos muito antigos, escritos num contexto histórico preciso e totalmente diferente do nosso. É, pois, preciso necessariamente distinguir nesses textos o que diz respeito à sua época e ao seu meio, e o que tem um valor permanente, que ainda pode inspirar o homem de hoje. Já um grande pensador muçulmano egípcio de fins do século XIX, Muhammad Abduh, dizia que muitos versículos do Corão devem ser compreendidos à luz de sua época e que eles não têm um valor permanente. Do ponto de vista da prática religiosa, eles são, pois, caducos, contrariamente a outros versículos que exprimem uma sabedoria mais universal e intemporal, válida até o fim do mundo. Esses versículos podem, sim, inspirar muito bem a conduta e a fé do homem de hoje. Eles se encontram principalmente na parte mais antiga do Corão, centrada na perspectiva da justiça social e do último Julgamento.
IHU On-Line - Quais são os pontos de ruptura do Islã com o Judaísmo e o Cristianismo?
Michel Cuypers - O próprio Corão diz claramente: é antes de tudo a questão da filiação divina. Não somente a do Cristo, mas também a do simples fiel, cristão ou judeu. A ideia de “divinização” do homem, tão cara aos Padres da Igreja, é um non sens para o Islã. Segue-se, seguramente, outra concepção da relação do homem com Deus, mas também dos homens entre si, os quais não serão considerados como irmãos, filhos de um mesmo Pai. No entanto, é preciso tomar em conta certas correntes místicas que existem no Islã (o sufismo), cujas vias se aproximam da espiritualidade cristã.
Por sua insistência no monoteísmo e também pela importância conferida à Lei divina, o Islã está mais próximo do Judaísmo do que do Cristianismo, embora a polêmica do Corão seja paradoxalmente mais severa em face dos judeus do que dos cristãos – sem dúvida em razão de conjunturas históricas diferentes.
IHU On-Line - Muitos filósofos defendem que no Ocidente a metafísica já é ultrapassada. Como pode o Corão ajudar a compreender esta nova configuração social? É necessário passar por uma releitura em face desse novo contexto no qual vivemos?
Michel Cuypers - Por seu teocentrismo muito acentuado, o Corão não parece espontaneamente apto para fazer face a um mundo secularizado, em todo o caso, menos do que o Evangelho da Encarnação. Mas ele pode ser um fator de equilíbrio, lembrando ao homem moderno o seu destino eterno, sob a condição, todavia, que os muçulmanos aceitem também uma releitura do Corão que confira direito, ao lado da transcendência divina, a todos os valores humanos do homem de hoje. Muitos intelectuais muçulmanos (em geral universitários “laicos”) reclamam por tal nova exegese do Corão, adaptada ao mundo de hoje. Parece-me que a exegese que eu proponho em meu livro é um início de resposta nesse sentido.
IHU On-Line - Quais são as principais tendências e os grandes movimentos do Islamismo de hoje referentes ao ser humano contemporâneo?
Michel Cuypers - A resposta a esta questão ultrapassaria as dimensões de uma entrevista. No entanto, é preciso lembrar, como, aliás, o sugere sua questão, que o Islã não é monolítico. Fala-se frequentemente do Islã de maneira essencialista, como se houvesse um só Islã, quando o Islã (como também o Cristianismo), de fato, é múltiplo. A mídia informa principalmente sobre tudo o que, no Islã, choca nossos contemporâneos (condição da mulher, violência...). Na realidade, o Islã atravessa uma crise profunda, sem dúvida a mais profunda de toda a sua história. Os muçulmanos adotam uma série de posições diferentes diante desta crise. Podem-se esquematizar, assim, as posições extremas: para uns, é o mundo que deve mudar e adaptar-se às leis divinas do Islã (pela ação violenta ou por um lento trabalho de infiltração e de transformação); para outros, é preciso repensar radicalmente o Islã para reconciliá-lo com o mundo atual. Entre estas duas posições, você encontrará uma gama de atitudes intermediárias.
IHU On-Line - Como o senhor percebe a inculturação do Islã no mundo, num momento de globalização e de fronteiras cada vez mais abertas, com grande mobilidade e trocas culturais?
Michel Cuypers - Seguramente o Islã tem dificuldades em se inculturar no nosso mundo de hoje, cuja evolução muito rápida é, antes de tudo, comandada pelo Ocidente. A modernidade, a mundialização não nasceram do Islã. O Islã deve, pois, se adaptar à força a condições culturais que ele não inventou. Mas eu não creio que isso seja impossível. A história mostra que o Islã soube integrar bastante bem culturas diferentes, do Marrocos à Indonésia. O desafio, hoje, é por certo muito grande (mas para quem ele não o é, num mundo em plena transmutação?). Somente o futuro dirá se os muçulmanos saberão enfrentá-lo. Em todo o caso, pode-se constatar que muitos muçulmanos já conseguem viver harmoniosamente sua fé no mundo globalizado, notadamente no Ocidente. Eu creio realmente que a renovação de que necessita o Islã virá dos muçulmanos que vivem no Ocidente.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum ponto que não foi abordado?
Michel Cuypers - Falamos do que deveria ser a exegese do Corão ou do Islã no nosso mundo globalizado. Mas eu creio que a integração dos muçulmanos se fará tanto mais facilmente quanto os não muçulmanos que os acolhem ou vivem ao lado deles se abrirão a eles e aprenderão a conhecer o Corão e o Islã. Respeite aquele que o respeita, interessamo-nos pelo outro, se ele se interessa por nós. De onde a grande importância de multiplicar os encontros inter-religiosos, e, para os cristãos, uma boa informação, respeitosa, sobre a fé muçulmana, longe de toda polêmica e apologética. É alias, penso eu, a própria finalidade desta entrevista e de sua revista.
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>> O sítio do IHU já publicou entrevistas sobre Michel Cuypers. O material está disponível na página eletrônicahttp://www.ihu.unisinos.br/.
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