sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A nova classe média brasileira


Assiste-se a uma vigorosa mobilidade social no Brasil. Milhares ascendem socialmente, melhoram sua renda e passam a consumir mais. Cientistas políticos, sociólogos e economistas falam do nascimento de uma nova classe média brasileira. A emergência dessa nova classe associa-se ao fenômeno do lulismo, ou seja, é nos dois mandatos deLula que ela vai tomando corpo e se configurando.
Quais são as características dessa nova classe média? Como ela se manifesta economicamente? O que pensa? Como se comporta politicamente? Quais são os seus valores religiosos? E ainda mais: por que a antiga classe média se sente ameaçada pelo surgimento dessa nova classe média? A grande movimentação da base da pirâmide para cima, engrossando a classe média brasileira tem resultado num crescente conservadorismo da sociedade. Como se explica isso?
Analisar a irrupção dessa nova classe média associada ao fenômeno do lulismo e suas implicações para a sociedade é o objetivo da presente análise de conjuntura. Auxiliam-nos nessa tarefa as revistas IHU On-Line n. 352 publicada nessa semana – O lulismo. Um fenômeno político em debate;  revista IHU On-Line n. 270 – Uma nova classe média brasileira e as ‘Notícias do Dia’, publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos.
A emergência da nova classe média brasileira
Segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD), 22,7 milhões de brasileiros mudaram de patamar de renda, sobretudo, nos últimos cinco ou seis anos. Valemo-nos aqui dos dados do economista e pesquisador do Cesit/UnicampWaldir Quadros. A maior movimentação na mobilidade aconteceu na base da pirâmide, entre os miseráveis e a massa trabalhadora que ascenderam e deram robustez à classe C – estrato social que percebe, segundo a PNAD, entre de R$ 700,00 a R$ 1.750,00 – renda individual.
Destaque-se que não há unanimidade sobre os critérios e medições para definir e classificar famílias em classes ou estratos sociais. Os pesquisadores Marcelo Neri eWaldir Quadros, dois dos principais nomes em pesquisas sobre estratificação social, concordam que não existe um critério único para medir a classe média. Segundo Marcelo Neri, “não existe definição oficial – muito menos consensual – do que seja a classe média”.
O mesmo pensa Waldir Quadros, para quem “não existe uma divisão única, aceita por todos os economistas e sociólogos”. “O que a gente tem, diz ele, são metodologias diferentes que atingem a diferentes interesses e necessidades”. “[O economista da Fundação Getúlio Vargas] Marcelo Neri, por exemplo, determina as classes por estatística, faz uma média, encontra os valores aproximados que corresponderiam à chamada classe média”.
Waldir Quadros observa como componente importante na composição da classe média, a ocupação profissional: “Por definição teórica e por sensibilidade para a situação brasileira, podemos afirmar que determinadas ocupações (que refletem a escolarização, o padrão de vida) são típicas de cada camada social. Assim, quando estamos falando de professores, um professor do ensino superior representa a alta classe média. Junto com ele estão os médicos, os juízes, advogados, engenheiros etc. Um professor de ensino médio se aproxima mais da média classe média. Quem mais está nesse estrato? Os funcionários públicos de nível médio, prestadores de serviços não qualificados, e outros. O professor de ensino fundamental estaria na baixa classe média, ao lado das balconistas, dos carteiros. Para baixo dessas três camadas, ainda temos a massa trabalhadora e, por fim, os miseráveis”.
A fila andou
Independente dos critérios há concordância generalizada em que se assistiu e, se assiste, a uma grande mobilidade social da base da pirâmide para cima na sociedade brasileira. “Os ‘de baixo’ estão subindo, mesmo que os ‘de cima’ não estejam descendo”, diz Andre Singer em entrevista à IHU On-Line. Segundo ele, “vemos essa reação, por exemplo, em relação a ter muitos carros nas ruas, a ter muitas pessoas que nunca viajaram de avião e que agora estão nos aeroportos, etc”. Singer comenta ainda que até os mais pobres sentem-se beneficados por esse fenômeno. Diz ele: “Em relação àquelas camadas do subproletariado que ainda não passaram para essa condição de classe C, penso que, como dizia o professor Albert Hirschman, a fila começou a andar. Às vezes não é a sua fila, mas a fila do lado. E daí vem a sensação de que a sua fila também vai começar a andar daqui a pouco”.
O sociólogo Rudá Ricci vislumbra ineditismo na emergência dessa nova classe média brasileira. Segundo ele: (...) “Na primeira década do século 21, praticamente 24 milhões de pessoas são alçadas à condição de classe média no Brasil. Esta é uma situação inédita na história do país e só encontramos algo similar nos Estados Unidos, na década de 1950, depois da Segunda Guerra Mundial”.
Segundo Ricci, “essa nova classe C, que ganha entre 4 e 10 salários mínimos – pensando na renda familiar e não individual – rompe com o histórico de pobreza. São pessoas jovens, com até 25 anos, magras e negras. Eles romperam portanto com a história dos pais, dos avós, dos bisavós e, por isso mesmo, consomem muito, porque querem se afastar a qualquer custo, como faria qualquer pessoa no lugar deles, do histórico de marginalidade que sempre existiu”.
A irrupção dessa nova classe média se dá, sobretudo, a partir de 2002 com o crescimento da economia brasileira. Pesquisas do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (Ipea) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) já antecipavam esse movimento. Ambas as pesquisas foram publicadas em 2008 e destacavam que aos poucos o Brasil tornava-se um país de classe média.
Classe média. Um conceito em debate
Antes de abordar as características dessa nova classe média, cabe ainda um parêntesis. Sociólogos e cientistas políticos consideram um reducionismo tipificar a classe média apenas a partir de critérios de renda. Segundo eles, o conceito ou categoria classe média configura-se também a partir de outros componentes. Os sociólogos Francisco de OliveiraJosé de Souza Martins, e Luiz Werneck Vianna afirmam que o conceito de classe média é muito mais complexo do que se costuma pensar.
O sociólogo Francisco de Oliveira, em entrevista à IHU On-Line dessa semana, destaca que “uma classe social é algo muito mais complexo e profundo” do que simplesmente renda. Na opinião do sociólogo José de Souza Martins, “análises se enredam nas limitações interpretativas de concepção do que é classe média”. Segundo ele, “(...) classe média é conceito muito mais abrangente e teoricamente muito mais complexo” do que se pensa. Para o sociólogo, “as classes têm referências profundas de situação social, de mentalidade, de comportamento e de aspirações sociais e políticas”.
O sociólogo Luiz Werneck Vianna corrobora: “O conceito de classe média é muito complexo”. Segundo ele, “não deriva apenas de variáveis referidas à renda das pessoas, embora a renda seja importante, mas não determinante. Educação, ocupação, lugar de moradia, além de outras variáveis que dizem respeito à cultura, a atitudes, comportamentos, expectativas, também configuram esse estrato”, afirma.
Em sua opinião, “não se pode pensar a classe média apenas na linha produtivística, ou seja, de quem está ligado à produção. Trata-se de um estilo de vida, de uma forma de ser no mundo, que depende de educação, de renda, de sedimentação, de práticas”, destacaWerneck Vianna. Na sua análise do que seja a classe média, não se pode esquecer o fator autonomia: “Setores submetidos à heteronomia não podem participar da classe média. Setores dependentes de políticas sociais do Estado não fazem parte da classe média”, afirma.
O economista Guilherme Delgado vai na mesma linha ao destacar que “classe média é um conceito mais sociológico do que puramente econômico. É um conjunto de ocupações e funções da sociedade dentro da economia que acessa poder, riqueza, bens socioculturais, e uma certa modernidade”.
Há ainda um outro componente no debate sobre a caracterização da classe média que vai para além do econômico, o ideológico. Na análise de Vinicius Torres Freire, o que caracteriza um grupo social é “o fato de compartilhar valores, universos simbólicos e de fazer parte de certa rede de relações sociais”.
Nova classe média e lulismo
A nova classe média está associada ao lulismo? Há um debate intenso na “academia”, mas não apenas nela, sobre a relação do lulismo com a nova classe média. Um dos primeiros a formular o conceito do lulismo e associar esse fenômeno político à emergência de uma nova classe média foi André Singer a partir do ensaio Razões sociais e ideológicas do lulismo.
A síntese da tese propugnada por André Singer nesse ensaio, e retomada por ele ementrevista à IHU On-Line dessa semana, afirma que, na essência, o lulismo sob a perspectiva econômica conformou uma nova classe média e sob a perspectiva política provocou um realimento eleitoral que se deu sem mobilização e sem fazer-se notar – no qual os mais pobres que antes rechaçavam Lula, e agora ascendem socialmente, passam a votar nele, no PT e na continuidade.
No ensaioSinger destaca que o “pulo do gato” de Lula, que dará forma e conteúdo ao lulismo, “foi sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir uma substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos”. Ou seja, “a sensação de eleitores de renda baixa e média de que o seu poder de consumo aumentara, seja em produtos tradicionais (alimentos, material de construção), seja em novos (celulares, DVDs, passagens aéreas)”.
Na base desse sentimento de inclusão social e responsável por ele, destaca André Singer, encontra-se a porção social do governo Lula: “o Programa Bolsa Família, o controle dos preços (cesta básica), o aumento real do salário mínimo, o crédito consignado, a ampliação de empréstimo à agricultura familiar, o microcrédito e a bancarização de pessoas de baixíssima renda e a ampliação do Beneficio de Prestação Continuada. É o conjunto dessas políticas, diz Singer, que dá força e consolida o lulismo.
André Singer, na entrevista à IHU On-line, considera que esse fenômeno – o lulismo – altera a estrutura social brasileira, ou seja, promove “a passagem de uma camada importante de cidadãos de baixíssima renda para uma condição de renda melhor, com acesso maior ao consumo. Isso é o que poderíamos chamar, tentando ser o mais neutro possível, de nova classe C. De modo geral, é a passagem de pessoas que tinham renda familiar de até dois salários mínimos para um patamar superior. (...) Essa nova classe C é o que alguns chamam de nova classe média e outros chamam de nova classe trabalhadora. Eu diria que são as duas coisas se entendermos o seguinte: acredito que há uma nova classe trabalhadora no sentido de ser uma nova camada da população que se integra ao mercado na condição de trabalhadores”.
Sob a perspectiva política, André Singer dirá que os pobres atomizados pela sua inserção no sistema produtivo necessitavam de alguém que pudesse, desde o alto, receber a projeção de suas aspirações. E aqui surge o lulismo, “um raio em céu azul, uma vez que surge de cima para baixo, sem aviso prévio, sem a mobilização lenta (e barulhenta) que caracteriza a auto-organização autônoma das classes subalternas quando ela se dá nos moldes típicos do século XIX, isto e, dos partidos e movimentos de classe”.
O lulismo como protagonista de uma nova classe é contestado por outros cientistas políticos. Na opinião do sociólogo Francisco de Oliveira, o fenômeno conhecido como lulismo não é responsável pela formação de uma nova classe social no Brasil.
Segundo ele, “não surge classe nenhuma”. Francisco de Oliveira comenta que “isso é ligeireza de alguns jornalistas, sobretudo do professor André Singer, que tem sido o interlocutor mais disposto, do lado petista, a debater o tema intelectualmente”. Na opinião do sociólogo, “uma classe social não se forma assim. São estratos que a técnica de pesquisa em estratificação social criou, mas não classes. Uma classe social é algo muito mais complexo e profundo”.
Para Francisco de Oliveira, “o lulismo não traz nenhuma novidade do ponto de vista de classe. Tivemos uma elevação econômica que fez com que um determinado estrato social pudesse ter acesso a bens e serviços que não tinha antes, como o crédito bancário mais facilitado, sem aquelas enormes exigências de cadastro, e como a compra muito facilitada de bens duráveis de consumo. Isso é uma novidade no Brasil, no sentido de que o capitalismo agora pode propiciar o acesso a esse tipo de bens. Mas isso não forma uma classe social sozinha. Não é uma façanha do capitalismo brasileiro. Na Europa ocidental, todo o proletariado tem acesso a esses bens. A questão dos valores realmente se altera, como vitória do capitalismo”, diz ele.
O sociólogo diz ainda mais: que o lulismo é “uma regressão política, porque traz a política novamente para o colo do paternalismo. Lula usou imagens dele, em metáforas, ou se referindo a futebol ou à família. A política deu um passo atrás”.
A análise de Chico de Oliveira de que não se pode associar o lulismo à emergência de uma nova classe é compartilhada pelo pesquisador e professor da Unicamp José Dari Krein, para quem o aumento de consumo de parcela significativa da população brasileira “não se pode associar automaticamente ao que se chama de lulismo”. Segundo ele, em entrevista à IHU On-line, “não existe uma fidelidade de segmento clara com o lulismo. A identidade se dá muito mais pela progressão no consumo do que por uma identidade política criada com o governo”.
Em sua opinião, “onde existe uma fidelidade maior com o chamado lulismo é com os segmentos mais empobrecidos da sociedade, que tem dependência mais direta, que tinham condições de vida bem piores e que, com a elevação do salário mínimo, com as políticas de transferência de renda, com o acesso ao crédito e com emprego, têm uma ligação maior com o chamado lulismo do que essa classe média que ascende ao consumo no período recente”.
Entre aqueles que ainda dissociam o lulismo da nova classe média, encontra-se Rudá Ricci, para quem “o lulismo não se limita a Lula. Não forma uma doutrina e não cria uma legião de seguidores. É um modelo gerencial e de estrutura de poder político a partir do Estado. Está circunscrito ao conceito de modernização conservadora”.
Independentemente do fato de o lulismo conformar ou não uma nova classe social, há consenso de que foi no período dos dois mandatos de Lula que um contigente significativo ascendeu socialmente sob a perspectiva econômica. Ao mesmo tempo, análises dão conta de que esse estrato social que ascendeu economicamente é conservador.
Quem é a nova classe média? O que pensa e deseja?
A nova classe média brasileira – a classe C – é conservadora, políticamente, socialmente e religiosamente. Na opinião do sociólogo Rudá Ricci, os valores que orientam a nova classe média “são conservadores e individualistas”. Segundo ele, essa nova classe média é “refratária a mobilizações sociais, ao espaço público, não seguem líderes (daí não aceitar a tese de André Singer de que o lulismo é uma vertente do bonapartismo) e sente que está sendo incluída no país pelo consumo”. Rudá Ricci avalia que “formam um caldo de cultura popular muito conservador, que não gosta de confronto, de rupturas, da agenda de direitos civis” e ainda “tratam da fé como instrumento de negociação para o sucesso pessoal e familiar”.
Em outra entrevistaRudá Ricci comenta que a nova classe média “é muito consumista, espantosamente consumista (...) e tem muito receio de cair de novo, por isso não vota em candidatos que signifiquem ruptura, que demonstrem alguma tendência de mudar a ordem pública (...) Só votam em quem garante a ascensão social, ou seja, querem garantias de que vão continuar comprando e que vão pagar as dívidas (...) e a segunda característica é que eles não votam em quem propõe ruptura. E nesse sentido, o Lula cai como uma luva para esses anseios. Mas não como idolatria, é fundamental dizer isso.Lula combina com esse pensamento pragmático da ascensão social e da manutenção da ordem vigente”, afirma Rudá.
É nessa perspectiva – receio de rupturas que ameaçem o seu novo status quo – que se explica politicamente o voto em Lula e posteriormente em Dilma dado pela nova classeC: “Eles sabiam que estavam votando num projeto que assegurava a ascensão da família”, diz Rudá Ricci.
Na opinião do sociólogo a nova classe média – assim com a “antiga” classe média – é religiosamente conservadora. Segundo ele, “são famílias egocêntricas. Por exemplo, vão à igreja para conseguir o sucesso, por isso fazem muitas novenas e promessas. A religião é usada como uma estratégia de garantia e de estratégia da família”.
Diz ele: “Eu mesmo coordenei uma pesquisa com os católicos praticantes e isso ficou muito claro. É o que estamos chamando de religiosidade privada, de se trabalhar a fé a partir de si e da sua família. A votação no final do 1º turno, com dados muito duros de crítica, ligadas à candidatura de Dilma, como a questão do aborto e do casamento de homossexuais, foi a primeira emergência pública política desse conservadorismo fundamentalista religioso no Brasil. Eu acho que surgirá nos próximos anos o primeiro movimento social de massa, de base, depois do regime militar, ultraconservador no Brasil. E eles vão definir as próximas eleições”.
Na entrevista à IHU On-lineRudá Ricci considera que a origem desse conservadorismo é o ressentimento: “Algo que Richard Sennett já havia esboçado teoricamente no livro O Declínio do Homem Público. O ressentimento se dá contra toda estrutura pública (incluindo as autoridades) que sempre a relegaram à pobreza. Nunca leram, coisa de ilustrados que sempre os humilharam. Só acreditam em sua família e nos grupos íntimos. E acredita que chegou sua vez. Enquanto o lulismo lhe garantir este consumo, o apoiará. Mas o conservadorismo é maior que o apoio a um político. O que cria um campo de tensões e uma espécie de bomba relógio (que já explodiu com o Tea Party, nos EUA e no movimento de classes médias da Espanha). Veremos se Dilma conseguirá desarmar ou ao menos lidar com esta bomba de efeito retardado, latente”.
Rudá Ricci conclui: “Creio que vai surgir no Brasil, a exemplo do que ocorre nos EUA e na Espanha, um movimento de classe média ultraconservador que já apareceu no final do primeiro turno. Nós já temos o discurso e a liderança e, por isso, é bem provável que no final do governo Dilma apareça um movimento social deste tipo. A Igreja ultraconservadora voltará a ter força no Brasil”.
Antiga classe média sente-se ameaçada
A antiga classe média vê com desconfiança a emergência de uma nova classe média. Sente-se ameaçada e reage de forma conservadora e preconceituosa contra esse novo estrato social que ascende economicamente.
O sociólogo Rudá Ricci traça uma comparação entre a antiga classe média e a nova classe média e sinaliza para os riscos políticos. Segundo ele, “a classe média tradicional se vê vilipendiada, tendo seus direitos adquiridos com trabalho sugados pela política de transferência de renda. Já a nova classe média é ressentida, pragmática, desconfiada, religiosa, quase fundamentalista. A classe média tradicional é mais convicta na oposição que faz ao lulismo. Já a emergente é mais pragmática”.
Em sua opinião, “a classe média tradicional está em pé de guerra com o governo federal, já que perde poder aquisitivo. E é justamente o grosso dos leitores da grande imprensa paulista e carioca. Daí a partidarização da grande imprensa brasileira: além de linha editorial, trata-se de estratégia de mercado. Já a classe média emergente é desconfiada de tudo e muito conservadora. Sempre foi pobre, até pouco tempo, e é ressentida por isto. Agora chegou a sua vez de consumir tudo e, por isto, não é afeta ao desenvolvimento sustentável”.
Na avaliação do sociólogo, “não será sempre assim, mas estes dois segmentos da classe média brasileira criam, no momento, o caldo de cultura para a emergência de movimentos sociais ultraconservadores. Não posso assegurar que ele se efetivará, mas o caldo de cultura está dado”.
Na opinião de André Singer, a classe média média tradicional expressa um traço reacionário e reage contra a emergência de uma nova classe média: “Não houve uma política econômica que prejudicasse frontalmente a classe média tradicional, mas também não houve uma política econômica de favorecimento desse setor. Talvez eles reajam ao fato de que, pela ascensão social produzida nessa camada mais baixa, as diferenças relativas estejam diminuindo um pouco. E, ao diminuírem, os privilégios também diminuem, porque os ‘de baixo’ estão subindo, mesmo que os ‘de cima’ não estejam descendo”.
O economista Waldir Quadros avalia que “os setores mais conservadores, de direita, parte da classe média, estão irritados com essa mudança na estrutura social”. Em sua opinião, “se esse mal-estar não for bem trabalhado, esses setores acabam indo para a direita e passam a se colocar contra os grupos mais frágeis, como os nordestinos”.
E qual seria a saída? Para Wadir Quadros, “a intelectualidade, os formadores de opinião respeitados por esses setores precisam vir a público para discutir a questão, trabalhar essas ideias e fazer a mentalidade avançar no mesmo ritmo da economia. Se não fica bem ruim. Esse é um problema social que vem junto com o crescimento econômico e a ascensão das camadas mais baixas”.
O economista considera que o problema pode ser tornar uma solução (...) “se a classe média não acha mais babá, então será preciso criar mais creches, implantar a escola em tempo integral, aumentar a licença maternidade, enfim, criar e implantar políticas públicas que atendam a nova realidade. Uma realidade mais justa”.
Uma sociedade cada vez mais conservadora?
A caracterização da nova classe média associada à antiga classe média sinaliza para o fato de que a sociedade brasileira é cada vez mais conservadora. Esse conservadorismo expressa-se em vários episódios das últimas semanas e dos últimos dias.
Nas eleições, setores da classe média reagiram com virulência ao voto majoritário do nordeste em Dilma Rousseff. Os comentários da estudante paulista de direito Mayara Petruso sugerindo o “afogamento dos nordestinos” e a divulgação de um manifesto contra os nordestinos são emblemáticos de uma classe que se vê ameaçada pelo protagonismo de outra.
A economista Tânia Bacelar de Araujo fala em uma visão preconceituosa que cerca esse tipo de interpretação. Segundo ela, “a ampla vantagem da candidata Dilma Rousseff no Nordeste reacende o preconceito de parte de nossas elites e da grande mídia face às camadas mais pobres da sociedade brasileira e em especial face ao voto dos nordestinos. Como se a população mais pobre não fosse capaz de compreender a vida política e nela atuar em favor de seus interesses e em defesa de seus direitos, não ‘soubesse’ votar”.
A polêmica em torno do tema do aborto, a forma como veio à tona e o simplismo como foi discutido nas eleições e na mesma esteira as manifestações preconceituosas contra as mulheres candidatas – Dilma Marina – e o rebaixamento do debate de gênero – temas abordados na conjuntura especial sobre as eleições – são outras manifestações do crescente conservadorismo da sociedade brasileira.
Nessa mesma perspectiva e reveladora desse crescente traço conservador é a relevância que assumiu no país, e também em todo o mundo, o debate sobre o uso de preservativos a partir do recente pronunciamento do papa Bento XVI. É de se estranhar que em uma sociedade que afirma com tanta convicção sua condição laica, um tema de ordem moral abordado pela Igreja tenha tanta repercussão.
Outra manifestação latente do conservadorismo da sociedade brasileira vê-se nacrescente homofobia, como a suposta ação homofóbica de jovens na Avenida Paulista estilhaçando lâmpadas fluorescentes no rosto de outros jovens.
O mais recente episódio demonstrativo de características marcadamente conservadoras da sociedade brasileira foi o acompanhamento embevecido de certa espetacularização da ocupação do Complexo Alemão, no Rio de Janeiro: “Por toda parte - TVs, jornais, internet -, há uma tendência compulsiva para transformar a realidade em enredo de ‘Tropa de Elite 3’, o filme do acerto de contas final. A dramatização meio oficialista e meio ficcional do conflito parece se beneficiar de uma fúria coletiva e sem ressalvas dirigida aos morros, como quem diz: sobe, invade, explode, arregaça, extermina!”, diz Fernando de Barros e Silva. Segundo o jornalista, “é quase possível ouvir no ar o lamento pela ausência de traficantes metralhados diante das câmeras”.
Nesse caso e, para surpresa de muitos, a ação policial se deu em um padrão civilizado. Analistas reconhecem uma nova postura nas operações. Especialista em segurança pública, Julita Lemgruber se diz surpresa com o resultado da operação: "É louvável que não tenha havido baixas. Foi um alívio”.
Cada vez mais a sociedade brasileira assume ares de crescente conservadorismo. Os exemplos são muitos. Até ambientalmente a sociedade é conservadora. Apesar do bombardeiro sobre a gravidade da crise ecológica, ninguém admite sacrifícios ou reduzir seus padrões de consumo. Recente pesquisa revela que a população do País está atenta às questões ambientais, mas tem dificuldade de colaborar, especialmente se tiver de gastar – mais de 90% dos brasileiros não estão dispostos a desembolsar mais por produtos ecologicamente corretos, como eletrodomésticos econômicos e alimentos orgânicos. A pesquisa mostra ainda que é baixo o porcentual de brasileiros dispostos a reduzir os deslocamentos por automóvel particular. Nos últimos 12 meses, apenas 13% buscaram reduzir o uso do automóvel no dia a dia.
Lulismo. Um fenômeno em debate
A passagem de Lula pelo comando do país por oito anos tem sido denominada de “lulismo”. Há um intenso debate sobre o significado desse fenômeno e sua implicação nas esferas política, ecônomica, social, cultural e junto ao movimento social. A revista IHU On-Line dessa semana – Lulismo. Um fenômeno político em debate – contribui para o seu balanço. Contribuem na discussão André Singer, Rudá Ricci, Francisco de Oliveira, José Dari Krein e Carlos A. Gadea.
O propósito aqui não é retomar a complexidade desse debate, apenas sinalizar para o que dizem os entrevistados. O debate do lulimo tem como uma de suas fontes principais o ensaio Razões sociais e ideológicas do lulismo do cientista político André Singer. Como entrevistado da IHU On-LineSinger destaca que “o lulismo é um movimento informal que aparece entre 2002 e 2006 e que tem como característica responder a um conjunto de políticas públicas que, vistas de maneira unificada, conformam um programa político que atende a uma certa base social e que acabou se traduzindo em votos. Essa base social é o que chamo de subproletariado, usando um conceito sugerido pelo professorPaul Singer na década de 1980. São esses eleitores de baixíssima renda que, grosso modo, recebem em torno de até dois salários mínimos de renda familiar mensal que, a meu ver, respondem a um programa de distribuição de renda com intervenção do Estado. Por outro lado, eles querem que essa mudança importante na sociedade brasileira seja feita sem ameaça da ordem estabelecida”.
Em sua opinião, “o lulismo, em resumo, seria isso: um movimento político informal que, eleitoralmente, responde a esse conjunto de políticas públicas e que se manifestou de maneira clara, pela primeira vez, na eleição de 2006, no momento em que determinados setores que, tradicionalmente, apoiavam o PT se afastam e esse novo setor se configura como principal suporte eleitoral das candidaturas Lula; e agora esse fenômeno se repetiu na eleição de 2010 com o tipo de base social que sustentou a candidatura Dilma”.
Na opinião do sociólogo Carlos A. Gadea, o lulismo “é simplesmente uma prática particular de gerenciamento do Estado e de governabilidade política, algo a meio caminho entre os populismos clássicos e as socialdemocracias de tom pragmático. Aglutina-se ao redor de uma imagem carismática que outorga à cultura política um ar de certo personalismo caudilhista. O lulismo é o resultado da possibilidade política produzida num contexto determinado do país, em que a negociação intra e interpartidária e políticas sociais que possibilitaram o aceso ao consumo a amplas camadas da população teve como corolário uma modificação política tão substancial que é possível falar hoje de um momento histórico pós-Lula”.
O sociólogo Rudá Ricci, por sua vez, destaca que “o lulismo não se limita a Lula. Não forma uma doutrina e não cria uma legião de seguidores. É um modelo gerencial e de estrutura de poder político a partir do Estado. Está circunscrito ao conceito de modernização conservadora”.
Segundo ele, caracteriza a modernização conservadora o fato de que “o Estado passa a se impor sobre os interesses dispersos e criar um pacto, que é conservador, porque não altera o processo decisório, não altera o mando das oligarquias políticas regionais, mas dá uma nova configuração nacional. Em outras palavras, a inclusão se faz pelo consumo e não pela política, o que alimenta o conservadorismo e a rejeição ao conflito ou embates reivindicatórios”.
Na sua visão, “a pedra de toque do lulismo é a fragmentação de pautas da sociedade civil. É o Estado que engendra uma peculiar articulação destes interesses em agenda”. Segundo ele, o lulismo será lido pela historiografia brasileira “como um dos mais importantes modelos de gestão do Estado Republicano brasileiro. Estará ao lado do getulismo”.
O sociólogo Francisco de Oliveira, outro entrevistado pela IHU On-Line, considera o lulismo “uma regressão porque ele fez a política voltar para o culto da personalidade”. Segundo ele, “as democracias mais modernas não têm esse culto da personalidade. Isso é anticidadão. Lula deveria ter aprendido, como ele veio ‘de baixo’, que todos os cidadãos são iguais, não só perante a lei, mas perante as possibilidades e as perspectivas que o mundo oferece. O mandato que Lula recebeu foi para reverter o que ele mesmo chamava de ‘herança maldita’ de Fernando Henrique Cardoso, e ele não fez isso. Aprofundou na direção do privatismo os negócios públicos, o que já era característica do governo FHC. Ele foi mais longe. Lula, na verdade, não é estatizante; ele é um privatista”, comenta o sociólogo.
Francisco de Oliveira considera que com o lulismo “a política deu um passo atrás”.
Os movimentos sociais, o lulismo e o futuro governo
Qual foi a relação do lulismo com o movimento social? Significou a sua despolitização, fragmentação, desmobilização, institucionalização ou fortalecimento? Os entrevistados pela IHU On-Line abordaram a relação do lulismo com o movimento social e as perspectivas do mesmo na relação com o próximo governo.
Na opinião do sociólogo Carlos A. Gadea, professor da Unisinos, “o lulismo modificou não só a estrutura dos movimentos sociais, mas também o sistema político em seu conjunto”. Segundo ele, nos últimos anos, o governo manteve uma relação “ambígua com os movimentos sociais, engolindo-os na maquinaria institucional ou subordinando-os às políticas de compensação na participação direta ou indireta no próprio aparelho do Estado”.
Gadea considera que nos últimos oito anos, os movimentos sociais “reduziram a marcha e muitos se incorporaram como por efeito de osmose ao que seria o lulismo, restando neles o esvaziamento das suas bases e o aparelhamento dos seus dirigentes. Abandonaram o anti-institucionalismo em prol de somar-se aos destinos políticos do governo”.
Na análise do sociólogo, “há já toda uma maquinaria muito bem azeitada a respeito, e não me parece que os movimentos sociais sofrerão modificação na sua relação com o novo governo”. “De todas as maneiras, diz ele, Dilma não tem o mesmo perfil ‘negociador’ deLula e, inclusive, a sua visão de gestão política administrativa não é tão semelhante à deLula. Pode ser que tenham um menor protagonismo, inclusive ficando de lado antigos líderes incorporados ao lulismo na sua tarefa política de intermediação. Pouco se sabe a respeito, pois se especula muito sobre a nova presidente”.
Segundo Gadea, “parece-me que teremos uma leve transição do que se denominou lulismo para um petismo, processo com um traço menos hábil para a negociação, mais tecnocrata, talvez algo mais verticalista nas decisões políticas e com a base política de sustentação em quadros do PT que não haviam sido muito felizes na época do lulismo. Assim, penso que o lulismo é mais do que o PT, e estaremos governados, talvez pela primeira vez, não por uma pessoa, e sim por uma estrutura partidária. Inicia-se uma nova etapa, em que Lula estará presente, mas não creio que da maneira em que muitos supõem”.
O sociólogo André Singer, indagado sobre a relação entre o lulismo e o movimento social, considera que os movimentos sociais foram para o Estado: “Dentro da ideia do realinhamento, existe essa visão da formação de uma nova maioria e, dentro desta, que surgiu a partir de 2002, estão os movimentos sociais. Portanto, é inevitável que eles passassem a ter muito mais relação com o Estado, e, em alguns casos, até participação mesmo, não formalizada, mas por parte de militantes, que passaram a fazer parte do aparelho do Estado. Além do mais, os dois mandatos de Lula fizeram mais de duas dezenas de conferências nacionais, que são também formas de participação dos movimentos sociais. É claro que isso tem seu preço. Os movimentos perderam o caráter oposicionista que tinham antes e que era mais autônomo com relação ao Estado. São contradições do próprio processo”.
Singer avalia ainda que com “a melhora das condições de vida e, em particular, o aumento do emprego, criam condições mais favoráveis para os movimentos sociais, que passaram por um período muito difícil nos anos 1990, porque o neoliberalismo, ao desempregar em massa, precarizar e flexibilizar destrói as condições de sociabilidade que permitem o avanço dos movimentos sociais. Agora, como os movimentos sociais irão aproveitar este momento que está posto, com estas contradições, só o tempo poderá dizer”.
Indagado sobre o mesmo tema, Rudá Ricci formula: “Vamos tentar definir melhor, pois eu não chamaria de movimentos sociais, mas organizações populares. Isso porque grande parte não é movimento social. É o caso das pastorais sociais. Elas se articulam, mas não são movimentos sociais. As organizações populares hoje no Brasil podem ser divididas em dois grandes blocos. Umas são as organizações populares com uma concepção mais à esquerda. Estas são, talvez, 80% das organizações populares do Brasil, incluindo aí alguns movimentos sociais, como é o caso do movimento ambientalista”.
Continua ele: “Essas organizações populares mais à esquerda podem ser divididas em dois campos: a primeira tem uma relação muito tencionada com o lulismo. As pastorais sociais ligadas à Teologia da Libertação têm uma dificuldade muito grande de se relacionar com o governo Lula. Ao mesmo tempo, por terem um compromisso mais à esquerda, no momento de crise eles acabam apoiando o governo, mas as relações do dia a dia são muito conflitivas por parte dos dirigentes que dizem que o Lula rasgou os compromissos históricos. Neste caso, vai ser como foi com o governo Lula”.
“O segundo bloco, destaca Ricci, vive do financiamento público. Em tese, não é nada que deponha contra eles. O que ocorreu é que nos anos 1990 nós tivemos um fortíssimo corte de financiamento externo para as organizações populares no Brasil, o que vai continuar, e houve uma busca de estratégia de sobrevivência. E aí todos os governos entraram. E grande parte dos técnicos contratados pelas Ongs hoje nem fala em política, falam em profissão”.
Na análise de Rudá Ricci, “no processo de redemocratização do país, os movimentos sociais que surgiram naquele período queriam alterar o Estado. Hoje, parecem mais engolidos pela lógica do Estado que queriam alterar”.


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