Doreen Carvajal
Londres (Inglaterra)
Médica segura recém-nascida abandonada pela mãe no Rio de Janeiro |
A unidade de cirurgia plástica no Hospital de Chelsea e Westminster recebe os pacientes numa sala de espera com cadeiras azuis acolchoadas e uma fileira de faixas amarelas no chão, como num cruzamento de ruas.
É o cruzamento para ser atendido pela médica Shweta Aggarwal, uma cirurgiã plástica em treinamento, que chama seus pacientes para consultas que vão desde queimaduras e reconstrução dos seios a lipoaspirações e implantes.
Em todo o mundo ocidental, é a sua geração de jovens mulheres que está transformando a medicina, que costumava ser um reduto dominado por homens, enchendo as faculdades e rumando para a linha de frente da clínica geral.
Um número cada vez maior de mulheres usa estetoscópios e bisturis: elas respondem por 54% dos médicos abaixo dos 35 anos no Reino Unido, 58% na França e quase 64% na Espanha, de acordo com os últimos números da Organização de Cooperação Econômica e Desenvolvimento, que acompanha a tendência em mais de 30 países.
“É uma espécie de trabalho social – ser capaz de fazer alguma coisa que tem um significado, ser capaz de ajudar alguém enquanto você está trabalhando”, disse Agggarwal, 36, mãe de uma criança de um ano e portadora de cidadania indiana e inglesa. Ela se formou numa faculdade de medicina da Índia mas disse que escolheu estudar cirurgia plástica em Londres por que o treinamento e as oportunidades eram melhores, além de poder ter rotina mais flexível.
Enquanto o mundo celebra cem anos de Dia Internacional da Mulher nesta terça-feira, as mulheres no campo médico podem se orgulhar de ter feito grandes avanços.
Ao longo das últimas três décadas, a proporção de mulheres nas escolas de medicina aumentou na Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália e África do Sul. A maioria das faculdades de medicina da Inglaterra tem mais estudantes mulheres do que homens, com quase 56%, ou 5.170 estudantes, nas aulas para ingressantes este ano. Levando em conta os índices atuais, o Royal College of Physicians acredita que as mulheres serão a maioria dos médicos no Reino Unido até 2017.
Mas o avanço constante das mulheres, normalmente elogiado no Ocidente e cada vez mais maior por toda, também deixou o establishment médico da Inglaterra e de outros países preocupado com o futuro, desencadeando estudos e debates acirrados sobre a tendência.
Será que a feminilização da medicina levará à perda de renda e status? Será que os países precisam treinar melhor os médicos e pagar mais para recompensar as licenças-maternidade, empregos de meio-período e empregos compartilhados, que normalmente são buscados pelas médicas que tentam conciliar o trabalho com a vida pessoal?
Alguns especialistas estão intrigados com outra questão: será que as médicas estão dando lições de como cuidar melhor dos pacientes?
O National Clinical Assessment Service, que acompanha e avalia as queixas de pacientes no Reino Unido, está pedindo mais estudos sobre as diferenças. No mês passado, ele divulgou um relatório que revia as suspensões de médicos clínicos gerais durante os últimos nove anos, um campo que será dominado pelas mulheres em 2013. Os números, ajustados para refletir a composição de toda a força de trabalho do setor, mostraram que os homens têm cinco vezes mais chances de serem suspensos do que as mulheres por causa de queixas de pacientes. Eles também costumam ser alvo de queixas de pacientes com mais frequência.
“A pergunta de US$ 64 mil é: por quê?”, diz o médico Alastair Scotland, diretor do serviço de avaliação. “Temos algumas teorias não comprovadas de que as mulheres atendem de forma diferente. Elas costumam assumir menos riscos do que os homens. Quem é cauteloso e evita os riscos tem uma probabilidade maior de buscar a ajuda de seus colegas para falar sobre os problemas, interagindo como uma equipe.”
Alguns pesquisadores alemães também detectaram sinais de um “fator feminino” nos tratamentos. Um estudo publicado em 2008 no Jornal de Medicina Interna revelou que os pacientes com diabetes Tipo 2 respondiam melhor sob os cuidados de uma mulher, mostrando uma melhora maior na pressão sanguínea, no exame de colesterol e na ingestão de medicação. Os pesquisadores disseram que as médicas mulheres provavelmente se comunicavam bem e cuidavam pessoalmente dos pacientes.
A Federação de Médicas Mulheres (MWF, na sigla em inglês), a maior organização de médicas da Inglaterra, reluta em traçar diferenças entre as técnicas de tratamento de médicos homens e mulheres, e resistiu a propostas que surgiram em suas próprias conferências para declarar que há mulheres demais no campo. Na visão da liderança, as mulheres não estão tomando conta da profissão, mas apenas alcançando os homens.
“Todos os médicos saíram do velho estilo patriarcal de 'eu sou o médico inteligente, e eu é que digo o que você deve fazer'”, disse a médica Fiona Cornish, clínica geral que trabalhou meio período enquanto cuidava de seus quatro filhos, e é presidente eleita da MWF. “Se alguém quiser fazer alguma generalização, as mulheres são mais cautelosas. As mulheres passam mais tempo falando com o paciente e ouvindo. Se você é um bom ouvinte, consegue a história exata.”
Alguns pacientes ainda têm restrições, apesar dos bons cuidados das médicas. “Os homens consideram muitos consultórios de clínica geral como ambientes muito femininos, como por exemplo, as salas de espera cheias de revistas femininas e cartazes sobre temas de saúde da mulher”, disse Colin Penning, porta-voz da Men's Health Forum, uma organização sem fins lucrativos de Londres que atua na conscientização sobre problemas de saúde dos homens. Ele acrescentou que as médicas mulheres normalmente trabalham menos horas, fazendo com que seja difícil para que os homens saiam do trabalho para se consultar com elas.
A primeira onda de mulheres estudantes de medicina na Inglaterra começou nos anos 80, e em 2007, jovens mulheres correspondiam a 57% de todos os estudantes de medicina que entravam na faculdade. Em 2010, os números começaram a se nivelar em cerca de 56%. Mais homens estavam buscando carreiras em tecnologia da informação, engenharia e matemática – campos em que a proporção de mulheres quase não mudou, ficando em menos de 20%, diz um relatório sobre as mulheres e a medicina do Royal College of Physicians.
Especialistas suspeitam que os homens sejam atraídos para os campos que pagam mais, como a engenharia da computação, que exige menos treinamento.
As mudanças de salário e gênero preocupam o médico Bernard Ribeiro, ex-presidente do Royal College of Surgeons of England e recém-nomeado lorde britânico. Numa conferência da Medical Women's Federation em 2009, ele levantou a questão de que talvez houvesse mulheres demais na medicina.
Ribeiro disse numa entrevista que ainda acreditava que era preciso fazer um trabalho para salvar “a tribo perdida da medicina”, que ele descreveu como aqueles homens que são atraídos por carreiras mais lucrativas como a indústria de serviços financeiros.
“A medicina deixou de ser uma vocação, o que é triste”, disse Ribeiro. “Rapazes inteligentes que saem da escola estão olhando para a medicina como qualquer outro emprego – quais são as perspectivas em termos de remuneração”. Ribeiro disse que é necessária uma pesquisa para explorar porque os meninos são superados pelas meninas nas primeiras séries da escola.
Entre as médicas mulheres que terminaram a formação na Inglaterra, 44% são pediatras, 49% estão na saúde pública e apenas 8% são cirurgiãs, de acordo com relatório do Royal College of Physicians. Dentro das especialidades de cirurgia, as mulheres são atraídas para trabalhos delicados como cirurgia plástica, em vez de cirurgia ortopédica, que exige muita força.
“As mulheres escolhem especialidades que lidam mais com pacientes externos e menos com emergências, porque seus empregos são mais planejáveis, enquanto os homens escolhem especialidades que envolvem tecnologia e são excitantes”, disse Jane Dacre, médica e vice-reitora do University College Hospital Medical School, que também observa que os médicos jovens, homens e mulheres, compartilham o mesmo desejo de reduzir as horas de trabalho.
Normalmente, as médicas mulheres acham mais difícil chegar a posições de liderança em hospitais e escolas de medicina. Também é mais provável que elas ganhem menos do que seus colegas homens. A Associação Médica Britânica detectou uma diferença de salário de 15 mil libras, ou US$ 24 mil, em 2009, entre médicos homens e mulheres do Serviço Médico Nacional.
Com muitas mulheres procurando empregos de meio período, novos desafios organizacionais estão surgindo, incluindo a possibilidade de que alguns países precisarão de mais médicos. A França e a Alemanha, por exemplo, já alertaram sobre a falta de médicos no futuro, à medida que os médicos mais velhos se aposentam e são substituídos por mulheres que trabalham meio período. A Associação Médica da Alemanha disse que esta é uma ameaça urgente, principalmente nas áreas rurais. Na França, alguns médicos estão tentando montar um projeto piloto para criar uma “maison medicale”, ou Casa de Medicina, onde médicos de meio período podem passar para oferecer diferentes disciplinas.
“É difícil conseguir um equilíbrio perfeito entre o trabalho e a vida particular. Faz parte do desafio”, disse a médica Beryl De Souza, cirurgiã-plástica no Hospital Chelsea e Westminster e mãe de três fihos, que trabalha com Aggarwal e duas outras cirurgiãs, Effie Katsarma e Sherine Ravenderan.
A doutora Aggarwal, cirurgiã plástica, conta com seus pais que vieram da Índia para ajudar a cuidar de seu filho. De Souza, cujo marido também é cirurgião, também buscou a ajuda dos pais. Outras mulheres criam outras estratégicas, compartilhando o emprego e trabalhando menos de três dias por semana. Alguns hospitais oferecem creches para as crianças – mas isso não é uma solução para as médicas que têm que trabalhar de madrugada.
No final do ano passado, a conferência dos médicos juniores da Associação Médica Britânica pediu ao Departamento de Saúde para começar a se preparar para uma transformação demográfica, criando um sistema regional de empregos.
Eleanor Draeger, médica vide-presidente da conferência, que estuda medicina genitourinária em Londres e tem dois filhos, lembra-se que quando teve seu primeiro filho em 2007, quatro das 11 estagiárias de sua equipe saíram de licença maternidade. Numa equipe de médicos de uma unidade pediátrica que ela conhece, nove das 10 mulheres que trabalhavam lá engravidaram no ano passado e anunciaram planos de trabalhar meio período depois de dar à luz.
A maioria dos estudos publicados na Inglaterra mostram que as mulheres acabam voltando para o trabalho, aumentando as horas à medida que os filhos crescem. Enquanto seus quatro filhos cresciam, Cornish, presidente-eleita da Medical Women's Federation, fez exatamente isso.
“Acho que a maioria dos lugares está muito mais receptiva à família agora. Quando eu comecei, eu ficava muito nervosa ao dizer que precisava sair para assistir a uma peça escolar. Agora o que me diverte é que os homens estão anunciando com orgulho que precisam ir para uma peça escolar”, diz ela.
Mas enquanto as médicas se dedicam a suas carreiras – além de cuidar dos filhos e dos pais – alguns pesquisadores na Espanha e na França descobriram que as as médicas mulheres são mais vulneráveis à pressão da carreira e da vida familiar combinadas.
No ano passado, um estudo da União Europeia com mais de 3 mil médicos franceses revelou que as mulheres tinham uma taxa de estresse maior do que a dos homens no setor de emergência. A falta de cooperação nas equipes contribuía para os surtos de estresse, de acordo com o relatório.
“Quando você corre de um paciente para o outro, você se sente culpada pela sua família. Quando você sente que o trabalho não está sendo feito como deveria, você se sente culpada”, disse a Dra. Madeleine Estryn-Behar, uma das autoras do relatório e médica do Hopital Hotel-Dieu em Paris. “O apoio social protege dos surtos de estresse. As pessoas que trabalham bem juntas têm menos problemas.”
Tradução: Eloise De Vylder
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