Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Faculdade de Serviço Social – UERJ
Problemática e delimitação
A problemática deste estudo prende-se à construção de ações assistenciais e sócio-educativas na Comunidade de Terreiro Ilê Omiojuaro. Esta comunidade é dirigida por Beatriz Moreira da Costa, conhecida como Mãe Beata de Yemanjá, yalorixá dirigente do culto e responsável pelos projetos sociais. O terreiro situa-se à rua Francisco Antonio Nascimento, 42, Miguel Couto, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil.
– Conhecer as representações sociais sobre pobreza e seus sujeitos sob a perspectiva religiosa do candomblé.
– Identificar e analisar os principais temas presentes no discurso Mãe Beata de Yemanjá motivadores das ações assistenciais e sócio-educativas realizadas no Terreiro Ilê OmiOjuaro.
1ª) A realização de projetos sociais na Comunidade de Terreiro Ilê Omiojuaro responde à ausência de projetos governamentais na área social em atenção às necessidades da população pobre.
2ª) Os projetos realizados na Comunidade de Terreiro Ilê Omiojuaro são construções da cidadania popular e afirmam a memória e identidade negro-brasileiras.
Procedimentos metodológicos
Para esta pesquisa, utilizamos as seguintes fontes documentais:
a) arquivo pessoal de Mãe Beata de Yemanjá (discursos proferidos em palestras e seminários, documentação referente às atividades desenvolvidas no terreiro);
b) ABC (arquivo da Biblioteca Nacional), seção de microfilmagem para levantamento de fontes coletivas, dentre as quais a imprensa negra do RJ;
c) oral: entrevistas com Mãe Beata, realizadas em sua residência entre junho de 1997 à julho de 1998. O material gravado foi transcrito e submetido a posterior análise.
O pobre na cidade: imaginários em confronto
Vivemos hoje um período de profundas transformações provocadas pelo processo de globalização. Com a modernização contemporânea, todos os lugares se mundializam. A cidade, dada a sua natureza, é o espaço onde vetores de diferentes ordens se manifestam buscando finalidades diversas, que se entrelaçam, se opõe, se reconstroem cotidianamente.
Para Milton Santos, os pobres, “por serem “diferentes” [...] abrem um debate novo, inédito, às vezes silencioso, às vezes ruidoso, com as populações e as coisas já presentes. É assim que eles reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encontrando novos usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva. [...]
Trata-se, para eles, da busca do futuro sonhado como carência a satisfazer – carência de todos os tipos de consumo, consumo material e material, também carência de consumo político, carência de participação e cidadania. Esse futuro é imaginado ou entrevisto na abundância do outro e entrevisto, como contrapartida, nas possibilidades apresentadas pelo mundo e percebidas no lugar.”
Nesse sentido, é na dinâmica das relações sociais que os grupos sociais, movidos por interesses antagônicos, constroem suas identidades e memória.
Brancos e negros – a cidadania hierarquizada
Aposentada da TV Globo, hoje Mãe Beata além do sacerdócio, desenvolve atividades assistenciais e sócio-educativas em sua comunidade de terreiro, o Ilê Omiojuaro. É escritora, publicou o livro Caroço de Dendê, sobre história de terreiro, contribuindo para valorização da tradição oral. Reconhecida nacional e internacionalmente, pela sua importância no meio do candomblé, assim como pelas atividades que vem desenvolvendo em parceria com outras instituições sociais, optamos por conhecer também a sua visão de pobreza.
Essa questão da pobreza vem em toda minha vivência, desde a minha formação com o “gente” aqui no universo. Eu tenho mania de dizer que eu nasci da fome, porque a minha mãe estava grávida e deu vontade de comer peixe e não tinha o que comer em casa e foi pescar no rio, e lá, a bolsa se partiu, tingiu a água do rio toda de sangue e ela saiu do rio e aí eu nasci. Então, eu conheço a fome é desde aí. É por isso, o meu grande interesse em trabalhar a questão das necessidades dos meus semelhantes, em cima, pensando, principalmente no meu povo, do povo negro, do povo africano, de tudo o que eles passaram aqui na sua vinda de África para o Brasil, e a religião tem uma grande parcela dentro disso, porque o comer e o beber, na religião afro, é muito importante. É uma comunhão com os deuses, com a natureza, com tudo isso. É muito importante.
Nota-se, que em suas idéias o fator motivador da identidade com os “seus semelhantes” passa pelo reconhecimento histórico de sua cultura, da memória fragmentada pela dominação e exploração do trabalho escravo no Brasil.
Diz Mãe Beata:
“Quando nós fazemos esse sacrifício, nós não fazemos como se faz no açougue, que mate o boi a espetada para depois abrir em filé mingnon, isso e aquilo para vender, nós não matamos o frango por matar, ficar “empendurando”, sangrando no espeto, nos fazemos o sacrifício, é uma troca através de cânticos, orações, lamentos. Em cima daquela troca está toda uma vivência, então, esta troca são trabalhos de revitalização.”
Em seu discurso há também uma forte presença da solidariedade comunitária na busca de soluções para os problemas da população. Em sua concepção, o processo de auto-ajuda é fundamental já que o Estado não responde adequadamente às demandas das populações.
“Eu, há vários anos, fazia aqui um trabalho social por minhas custas e com as pessoas da comunidade, com as mulheres da comunidade, com os próprios filhos-do-terreiro. (...) Todas essas pessoas procuravam me dar ajuda, não só o meu esforço, porque eu sou capaz de não esperar, se eu tiver de pedir, eu vou pedir, se eu tiver de pedir a Deus eu não vou pedir a Santo Antônio, eu vou direto a Deus. Eu bato nas casas de negócio, nos vizinhos, na vizinhança, eu peço para ajudar àqueles que têm mais, ajudar àqueles que têm menos. Aí, eu comecei fazendo esse trabalho, procurei pessoas que passaram a trabalhar junto comigo.
Eu não gosto muito de pedir ao político, porque eu não gosto de dever a minha cabeça a ninguém, porque se errar comigo, eu reclamo na “cara”. Eu tenho essa casa de candomblé construíds as minhas custas e dos meus orixás, eu não tenho um político que chegasse aqui e me desse um cano, uma telha, então ele não pode chegar e dizer que amanhã vai fazer um na minha porta. Se vier, eu vou dizer não quero, não pode botar faixa, pode ser até do PT (Mãe Beata é filiada ao Partido dos Trabalhadores) mas se eu não quiser que eu não devo nada a ele.”
Em seu discurso, enfatizas a necessidade de uma postura de relativa autonomia política:
“(...) Não devo a minha cabeça, não tenho um filho empregado porque político arrumou emprego, eu não viajo porque político arrumou, eu viajo por reconhecimento do trabalho cultural que eu faço. Agora mesmo, viajei para a Califórnia pela URI, o Fórum Global das Religiões do Mundo, fui para Califórnia, São Francisco, Nova York, Memphis, já há reconhecimento do meu trabalho.”
A noção de cidadania, exige, segundo Mãe Beata, um despertar da consciência de negritude e de gênero. Essa consciência que orientará as atitudes críticas diante da discriminação e dominação de gênero e raça.
“Nós é que somos os culpados de existir esse preconceito porque se eu chegar no palácio eu não vou querer entrar pela porta da cozinha porque eu moro na Baixada Fluminense. Eu vou querer entrar pela frente, não é porque moro na Baixada que eu vou chegar em Copacabana para visitar uma amiga e vou entrar pela porta dos fundos, sou negra, eu vou me identificar e entrar pelo elevador.
(...) Você por si não constrói o seu direito dentro de você, você não bota na cabeça que você tem esse direito, está na Constituição, não mostramos as pessoas que nós conhecemos esse direito, às vezes até porque as pessoas têm vergonha – não, vai me dar trabalho – me chamou de neguinha, se respeite meu nome é Dona Beatriz, briguei muito na TV Globo Baiana, – meu nome é Beatriz Moreira Costa, eu tenho nome e fui batizada, a mesma coisa aqui no Brasil, eu tenho um poema onde eu digo – me chame de jambo/ de sapoti/ me chame do que quiser/ mas eu sou negra/ sou mulher e estou aqui. Olha que coisa linda, que sonzinho gostoso – Sou negra! Mulher negra! é o mesmo que uma mulher ser mãe solteira e ter vergonha de dizer que é mãe solteira, mulher que tem direito de conceber, de ter um filho, de parir um filho, vai ter vergonha? Ela deve ter é dignidade, vou criar meu filho, vou ensinar para ele ser um cidadão, mas um cidadão brasileiro.”
“Fui convidada para ver a campanha do Betinho, questão da cidadania, da fome, aí eu fui convidada para fazer parte do grupo do ISER. Nós tínhamos discussões todas as semanas, aí o Betinho me conheceu e o grupo todo me conheceu. Sabendo do meu trabalho, fizeram primeiro uma pesquisa sobre mim, e me convidaram para ser uma das conselheiras. Acho que eram 14 ou 15 conselheiros e eu como mulher fui reconhecida como quem tinha um trabalho de base, porque todas as pessoas que trabalhavam, que fosse conselheira, e tivesse um trabalho e quisesse melhorar este trabalho, podia fazer um projeto que teria ajuda de custo. Aí eu fiz um projeto “Ação e Viver” e nesse projeto eu recebi quatro mil dólares e eu mantive aqui em 8 meses, porque depois que o dinheiro acabou, porque era somente para 6 meses, e eu ainda continuei mais 3 ou 4 meses levando o pessoal, era curso de manicure, cabeleireira, costureira, pintura em tecido, as crianças vinham para aqui, passavam o dia, tinham lanche, curso de capoeira, alfabetização, eletricidade industrial.”
Atualmente, a Comunidade de Terreiro Ilê Omiojuaro, desenvolve o projeto “Rumo ao Terceiro Milênio”, financiado pela Comunidade Solidária.
“(...) agora eu fiz um projeto para o Comunidade Solidária que é “Rumo ao Terceiro Milênio”, graças a Deus ganhei e vamos abrir um curso de informática para adolescentes, que é criança de 15 a 18 anos, que tenha da 5ª a 8ª série, são 6 meses e a criança vai ter aula de História, Geografia, Português, Matemática e Informática. Para adolescentes da comunidade, para que essas pessoas tenham a sua auto-estima. Veja que a Baixada Fluminense não é só de marginalização, que tem pessoas que querem fazer e às vezes não acham ajuda.”
Conclusão
Por razões históricas as Comunidades de Terreiro de Candomblé concentram-se em regiões urbanas periféricas, nas quais a maioria da população vizinha não dispõe de uma estrutura coletiva básica (hospitais, lazer, escolas, transporte coletivo regular), dentre outros direitos sociais. Esses terreiros, originários no período colonial, são produtos da organização negra e se constituem espaços destinados ao culto religioso.
Quanto à segunda hipótese, os projetos realizados na Comunidade de Terreiro Ilê Omiojuaro são construções da cidadania popular e afirmam a memória negro-brasileira também é confirmada na medida que quase todas as atividades valorizam o encontro com a tradição africana.
Daremos destaque as duas últimas por se tratar de experiências que valorizam a tradição oral.
O Encontro da Floresta: IPADÉ NIGBE, realizado em 1990, ao valorizar o verde, comunga com a ideologia do candomblé, pois, sem o verde, sem as plantas e sem a natureza, a religião africana não tem sentido: “a religião dos orixás é muito ecológica”, diz Mãe Beata.
Bibliografia:
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SANTOS, MILTON. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
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SPOSATI, ALDAÍZA DE OLIVEIRA et al. Os direitos (dos desassistidos) sociais. São Paulo: Cortez, 1989. Vida urbana e gestão da pobreza. São Paulo: Cortez, 1988, p. 19.
VERGER, PIERRE FATUMBI. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII à XIX. São Paulo: Corrupio, 1987.
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